Novo relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) é taxativo sobre o Brasil: o país é racista, pratica “limpeza social, exterminando seus indesejáveis”, além de manter uma estrutura de discriminação contra contra as camadas sociais mais vulneráveis.
Em 200 páginas de críticas duras, a Comissão Interamericana da OEA, principal órgão multilateral dedicado ao tema dos direitos humanos em todo o continente, aponta problemas estruturais do país e centenas de falhas do Estado brasileiro, por “omissão, ineficiência ou ação direta de governos”.
O documento aponta ainda que o país pratica e permite “discriminação histórica” citando episódios confirmados de mortes e impunidade ligados à violência policial em todo o seu território. A Comissão considera “alarmantes” os altos números de homicídios de pessoas pretas. O relatório lembra que 73,1% dos 618 mil homicídios registrados no país, entre 2007 e 2017, foram cometidos contra homens negros.
A OEA classifica a violência do Estado contra a população preta como um “processo de limpeza social destinado a exterminar setores considerados indesejáveis, que conta com a anuência estatal”. “Os últimos anos, pelo Ministério de Justiça e Segurança Pública, mostram que a abordagem policial é feita de ‘maneira seletiva, discricionária e subjetiva, pouco porosa ao controle ou regulação pública’”, aponta o texto.
Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública, afirma que o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos evidencia a desestruturação das políticas de direitos humanos promovidas pelo atual governo. “A OEA manifesta preocupação principalmente com o recrudescimento do racismo, da violência contra as mulheres e outros grupos vulneráveis, como os LGBTs e indígenas. Do aumento das perseguições e agressões contra ativistas sociais e defensores de direitos humanos. Da violência contra jornalistas e a ampliação da brutalidade policial contra jovens, pobres e negros, que conta com a conivência de setores do Judiciário”, afirmou.
Discriminação
A análise da Comissão da OEA sobre o Brasil é especialmente enfática em relação ao racismo, à discriminação e à violência de gênero. Fenômenos descritos como “motores de um ciclo histórico e perverso de desigualdade, pobreza e crimes”.
Segundo a entidade, o país dá invisibilidade e nega a identidade da população quilombola, pois o Estado “não possui dados exatos nem da dimensão dessa população, nem das características de seus integrantes”. “A negação da identidade histórica, cultural e de direitos dessas pessoas é resultado da discriminação racial estrutural a que sempre estiveram submetidas no Brasil”, alerta a OEA.
A discriminação, afirma o relatório, também atinge os indígenas. Em uma das páginas, a entidade lembra que há mais de 100 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que objetivam a restrição de direitos indígenas, especialmente em matéria de demarcação de terras.
A Comissão detectou também o enfraquecimento de políticas e instituições de licenciamento ambiental, o que tem impacto direto nos direitos dos povos indígenas. O relatório ressalta ao Estado “que a discriminação étnico-racial sofrida pelos povos indígenas levou a que essas pessoas estejam expostas a violações diversas, como a violência experimentada nos territórios por grupos ilegais de extração de recursos naturais, assim como a ausência de uma política robusta que garanta a essas populações o acesso adequado aos seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”.
Jair Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro não é citado nominalmente, porém o relatório critica diversas políticas adotadas pelo seu governo, como a facilitação promovida no acesso a armas de fogo. Segundo o órgão, a política armamentista de Bolsonaro deve aumentar a criminalidade, além de “minar a confiança dos cidadãos em relação ao Estado e aprofundar fissuras históricas do tecido social”.
“A Comissão vê com extrema preocupação as tentativas do Estado de ampliar, mediante o uso de decretos presidenciais, o acesso dos brasileiros às armas de fogo, que poderiam, ademais, incrementar exponencialmente a violência perpetrada contra as mulheres”, ressalta a entidade.
No relatório, a Comissão Interamericana também mostra preocupação em relação ao negacionismo de Bolsonaro sobre a ditadura militar no Brasil e a tortura, condenando a “negação desse passado histórico por parte do Estado brasileiro” e a impunidade da “maioria dos crimes” cometidos no período.
“A CIDH reitera sua especial preocupação com o Decreto Presidencial nº 9.831, de 10 de junho de 20192, que determinou a destituição dos membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e, consequentemente, a execução de seu mandato a favor da proteção das pessoas privadas de liberdade”, alertou o texto.
O órgão também critica as medidas tomadas pelo governo de Bolsonaro, como a extinção do ministério do Trabalho, “o que poderia enfraquecer esforços para erradicar o trabalho em condições semelhantes à escravidão e ao trabalho infantil”. Desde a posse de Bolsonaro até o fim do ano passado, o Brasil havia sido alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do relatório especial em fase de finalização. Em nenhum outro governo, o Brasil foi alvo te tantos chamados.
Mulheres e LGBTQI+
Os feminicídios, com maior frequência entre mulheres negras, também são levantados pela Comissão Interamericana. O órgão informa que recebeu uma série de denúncias sobre piora em níveis de violência contra as mulheres.
Segundo a OEA, “o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no Brasil”.
A Comissão também reiterou recomendações sobre a importância de se “promover leis e políticas públicas que busquem, por meio da educação em direitos humanos, abordar e eliminar preconceitos estruturais, a discriminação histórica, bem como os estereótipos e conceitos falsos sobre mulheres”. O machismo e a misoginia no Brasil, segundo a OEA, continuam relegando a mulher a uma posição secundária na economia e nos assuntos públicos.
Em outra página, a entidade também observa uma “tendência de regressão na proteção e promoção dos direitos das pessoas LGBTI no país”, bem como “o aumento do uso de discursos que incitam ao ódio e que tendem a aumentar as taxas de ataques contra pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero”.
O relatório faz referência ao bolsonarismo, citando a atuação de “um dos candidatos à presidência do Brasil” em outubro de 2017, e resgata a controvérsia em torno de uma cartilha educacional sobre diversidade criada para combater o bullying nas escolas que veio a se tornar pejorativamente conhecida como “kit gay”.
“O Brasil continua registrando elevadíssimos índices de violência contra pessoas LGBTI, em especial lésbicas e mulheres trans; e que, na medida em que uma retórica de “defesa da família” e das tradições ganha tração no âmbito na sociedade, diversos direitos dessas pessoas encontram-se sob ameaça”, aponta o relatório.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos finaliza o texto com uma série de recomendações “para consolidar um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado nos âmbitos interamericano e internacional.”