Por Nara Lacerda.
Um conceito debatido por filósofos, acadêmicos e economistas há pelo menos dois séculos e que passou a ser pauta de discussão entre governos com mais frequência a partir da década de 1980, a renda básica universal volta à mesa com mais força em tempos de coronavírus.
A política prevê a garantia de um pagamento mínimo para os cidadãos, independentemente da situação socioeconômica, mas há poucos exemplos do mundo de aplicação nesse modelo. No entanto, há diversas nações que estabeleceram um benefício financeiro utilizando como critério as condições socioeconômicas de determinada população.
Com as consequências econômicas da pandemia o estabelecimento políticas de renda emergencial para o período, principalmente entre os mais vulneráveis, defensores da universalidade ganham espaço. A tese de que a renda mínima deveria ser um direito permanente se baseia principalmente na construção de segurança econômica, não só para a população, mas para o próprio mercado. A garantia de renda para todos tende a diminuir a desigualdade social, o que causaria reflexos não só no consumo, mas também em fatores como a violência e a exclusão.
“Orçamento a serviço da população”
A economista Iriana Cadó, especialista em economia social e do trabalho e mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que no Brasil a medida poderia ser aplicada se as políticas econômicas tivessem como foco a população e não o mercado financeiro.
“Nós temos travado nos últimos meses uma extrema batalha no âmbito orçamentário. Nós suamos a camisa tentando rebater os argumentos da reforma da Previdência, por exemplo, que tinha como grande justificativa a falta de dinheiro para pagar essas pessoas. Em termos políticos era um deserto bastante árido para a gente travar essa batalha. Mas não é nenhuma surpresa que o governo vista a camisa do mercado financeiro. Essas medidas vêm no sentido de responder aos anseios do mercado financeiro. Essa batalha precisa mostrar que o orçamento tem que estar a serviço não do mercado financeiro e do rentismo, mas sim dos anseios da população brasileira. Um capitalismo no qual as pessoas não têm capital para concretizar a compra é um capitalismo meia boca. Isso se torna um gargalo para o próprio processo de desenvolvimento da economia nacional.”
Essa batalha precisa mostrar que o orçamento tem que estar a serviço não do mercado financeiro e do rentismo, mas sim dos anseios da população brasileira. Um capitalismo no qual as pessoas não têm capital para concretizar a compra é um capitalismo meia boca.
De acordo com a economista, mecanismos como a emissão de dívidas, poderiam ser utilizados para financiar políticas dessa natureza. Ela explica que o Brasil tem autonomia para emitir dívidas e tem autonomia para conseguir ditar as políticas monetárias que vão organizar a emissão de dívidas, para definir a taxa de juros, os prazos, e também os mecanismos de rolagem.
“Por exemplo, vamos fazer uma política para renda emergencial e precisamos de dinheiro, então vamos emitir dívida com juros baixos. Não vai ser tão oneroso para o governo. Mas o Brasil sempre teve um compromisso em tornar nossa dívida pública um negócio bem proveitoso para as instituições financeiras, não era só um elemento para subsidiar nosso orçamento em prol da efetivação de políticas públicas. Era um grande sustentáculo do capital internacional financeiro”, argumenta Cadó.
A lei já existe
Desde 2004, o Brasil tem com uma lei que determina a renda básica universal, mas o texto nunca foi colocado em prática pelo executivo. O autor do projeto, Eduardo Suplicy (PT), que na época era senador, ressalta que até mesmo o então deputado federal Jair Bolsonaro votou favoravelmente ao texto.
Suplicy acompanha o assunto no mundo todo e participa ativamente de discussões sobre o tema. Em 1991, ele apresentou uma proposta de imposto de renda negativo para os brasileiros que ganhavam até 2 salários mínimos. Com o tempo, o economista de formação conta que percebeu as vantagens da renda mínima sobre a proposta.
“Apresentei o projeto nesse sentido em 2001. Foi designado relator o Francelino Pereira, ex-governador de Minas Gerais, ex- presidente da Arena e que um dia ficou famoso por ter dito a frase ‘Que país é esse?’. Ele me disse o seguinte: ‘Suplicy, eu tenho 80 anos, não vou ser mais candidato e quero estudar essa proposta com seriedade.’ Francelino considerou a ideia boa, mas alertou que eu precisava torna-la compatível à Lei de Responsabilidade Fiscal, que diz que para cada despesa é preciso haver a receita correspondente.”
O petista, que hoje é vereador na cidade de São Paulo, conta que foi buscar base para a ideia no escritor James Edward Meade, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1977. No livro Agathotopia, Meade faz fala sobre uma ilha que não busca a utopia de uma sociedade perfeita, mas sim um lugar com boas políticas para seres humanos e realidades imperfeitas.
“No capítulo final, Meade diz que o importante é seguir firmemente na direção do que você almeja. Porque se você colocar todos os instrumentos de uma vez, vêm as instabilidades políticas. Eu guardei isso para mim na minha memória. Na hora que o Francelino Pereira sugeriu que eu colocasse o projeto passo a passo, instituir por etapas, a critério do poder executivo e começando pelos mais necessitados eu achei de bom senso e aceitei. E graças a esse parágrafo, o Senado aprovou o texto em 2002.”
O importante é seguir firmemente na direção do que você almeja. Porque se você colocar todos os instrumentos de uma vez, vêm as instabilidades políticas.
Quando o projeto foi sancionado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o célebre economista brasileiro Celso Furtado enviou uma mensagem ao governo, que hoje está no livro de Suplicy Renda de cidadania: a saída é pela porta.
“Com essa medida nosso país se coloca na vanguarda daqueles que lutam pela construção de uma sociedade mais solidária”, escreveu Furtado.
Ao comentar a mensagem, Suplicy reafirma o compromisso com o tema: “Pois bem, desde então, obviamente, eu continuo batalhando para que a lei seja instituída.”
Atualmente, um grupo que reúne professores, pesquisadores, ativistas sociais, voluntários, entusiastas e cidadãos defende a implementação da Renda Básica no Brasil. A Rede Brasileira de Renda Básica ressalta que essa seria a maneira mais viável de alcançar a justiça social e evitar o colapso do mercado de consumo.
O caminho para isso pode ter começado no Bolsa Família, que garante renda a brasileiros em situação precária e foi essencial para mudar indicadores sociais e tirar o Brasil do mapa da fome mundial nas últimas décadas. Projetos sociais dessa natureza vêm sendo enfraquecidos pelas políticas de austeridade da equipe econômica do governo atual. Ironicamente, é justamente uma situação de emergência global que dá forças novamente à discussão. Um exemplo é a possibilidade de ampliação da renda emergencial já aprovada para compor os ganhos de trabalhadores informais durante a crise, que pode ser votada na Câmara ainda nesta semana.
Suplicy lembra que, ao tomar posse, Bolsonaro jurou cumprir a Constituição, que determina a construção de uma sociedade justa e igualitária, a promoção do bem de todos e a erradicação da pobreza e da marginalização. Além disso, o programa de governo do capitão reformado, apresentado durante a campanha, previa a renda universal por meio do imposto de renda negativo. Baseada em ideias do economista liberal Milton Friedman, a medida segue a lógica de que os gastos do Estado com programas sociais iriam diminuir.
“Se Jair Bolsonaro quiser atender seus objetivos principais, ele pode, perfeitamente tornar a renda básica não apenas emergencial, mas definitiva, universal e incondicional”, finaliza o petista.