Pandemia agrava violações de direitos nas prisões brasileiras

Quase 60 mil infecções pelo coronavírus já foram registradas no sistema carcerário; segundo Pastoral Carcerária, dado é subnotificado – Foto: Divulgação/OAB-CE

Por Lu Sudré.

A proliferação do novo coronavírus trouxe uma realidade ainda mais perversa para a população em unidades prisionais de todo o país, segundo o relatório A pandemia da tortura no cárcere, lançado na sexta-feira (22) pela Pastoral Carcerária Nacional. 

A organização recebeu denúncias relacionadas, principalmente, à violação do direito ao atendimento de saúde e condições degradantes de sobrevivência em meio à contaminação pelo vírus, a exemplo da notória superlotação das celas que impossibilita o cumprimento dos protocolos sanitários.

Das 90 denúncias de violações de direitos monitoradas pela Pastoral entre 15 de março de 31 de outubro do ano passado, 74,4% dizem respeito à negligência na prestação da assistência à saúde.

As violações ocorreram e seguem sendo registradas em um momento em que o coronavírus segue avançando em alta velocidade dentro dos muros das prisões.

De acordo com o último boletim informativo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado em 18 de janeiro, 57.454 infecções pela covid-19 foram registradas nas unidades, entre servidores e presos.

Somente nos primeiros 22 dias de 2021 foram confirmados mais de 2,3 mil contaminações.

No total, o número de pessoas privadas de liberdade que testaram positivo para o vírus é de 43.799, com o registro de 130 óbitos. Entre os trabalhadores foram relatadas 13.655 contaminações e 99 vítimas fatais.

As denúncias de tortura apresentada pelo relatório englobam também 53 agressões físicas, 52 relatos de condições humilhantes e degradantes de tratamento.

Entre elas a ausência de banho de sol, racionamento de água, convívio irrestrito entre presos enfermos e saudáveis e a obrigatoriedade de permanecerem em “posição de procedimento”, com cabeça abaixada e mãos para trás, por longos períodos.

Mais de 50 denúncias envolveram negligência na prestação da assistência material, o que abrange o precário fornecimento de alimentação, vestuário, produtos de higiene pessoal e produtos de limpeza.

Mayra Balan, do setor jurídico da Pastoral Carcerária e uma das autoras do relatório, critica posicionamentos tomados pelo governo federal e a ausência completa de um plano de combate ao vírus no cárcere.

“A pandemia e o desgoverno que enfrentamos proporcionaram que a covid-19 fosse usada como um outro instrumento de tortura dentro do cárcere. Quando Jair Bolsonaro vetou o uso obrigatório de máscara dentro das prisões, com uma canetada, ele evidenciou a política de extermínio que segue em curso”, afirma Balan.

Dados do Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontam que atualmente a população carcerária do Brasil é de 812.564 pessoas.

Segundo a advogada, a fiscalização das condições subumanas às quais os presos estão submetidos na pandemia, também foi insuficiente por parte dos órgãos da Justiça, do governo federal e gestões estaduais, assim como a urgência na proteção das pessoas presas.

Um exemplo disso é o vaivém relacionado à inclusão da população carcerária entre os grupos prioritários para a imunização.

“Ficou claro que o alto escalão [desses órgãos] entende que as vidas presas valem menos. Quando não há uma política de vacinação efetiva, assistência à saúde, fica claro que as vidas presas não são passíveis de preocupação pelos governos”.

Realidade desconhecida

O relatório da Pastoral Carcerária alerta que a subnotificação de dados e informações relacionadas à pandemia e seu impacto nas prisões é flagrante.

Até outubro do ano passado, conforme contagem do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), apenas 9,71% da população carcerária havia sido testada para o coronavírus.

Além do descaso histórico do próprio Estado, a suspensão das visitas familiares e de assistência religiosa para evitar o contágio impediu que as denúncias chegassem aos órgãos externos como a própria Pastoral.

“Esses são os principais canais de recebimento das denúncias. É alta a probabilidade que a realidade seja ainda pior”, lamenta Balan.

“O cárcere ficou fechado, o mundo vivendo uma anormalidade e enquanto isso as incursões e intervenções continuaram acontecendo. A política de extermínio seguiu firme e forte. Para além do vírus que tem uma letalidade alta, a letalidade que o Estado proporciona dentro das prisões e das favelas Brasil afora continuou operando”, ressalta a advogada.

Ela destaca que entre as denúncias de tortura são frequentes os relatos de que os presos que apresentaram sintomas não foram colocados em isolamento ou não receberam o material necessário para a profilaxia, como água, sabonete e álcool gel.

Há ainda depoimentos sobre agravamento do sofrimento mental dos presos e desenvolvimento de adoecimento psicológico em razão da própria brutalidade do cárcere mas também da desinformação sobre familiares durante a pandemia.

Outras denúncias relataram a interrupção de tratamentos de saúde para doenças crônicas e ainda surtos de outras doenças como tuberculose, que assim como a covid também afeta o sistema respiratório.

Resolução 62/2020

No início da pandemia, o CNJ alertou para os perigos da proliferação do coronavírus no cárcere e incentivou magistrados a reverem prisões de pessoas de grupos de risco e em final de pena que não tenham cometido crimes violentos ou com grave ameaça.

A adaptação para prisão domiciliar ou monitoração eletrônica sugerida pela Resolução 62/2020 é, justamente, para evitar as aglomerações e barrar o contágio nas prisões. O texto também sugere a reavaliação das prisões provisórias, com prioridade para mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por crianças de até 12 anos.

Pessoa com deficiência, idosos, indígenas ou outras pessoas que se enquadrem no grupo de risco também podem ser beneficiadas pela resolução, que tem validade até março.

No entanto, levantamento feito pelo CNJ em junho do ano passado mostra que apenas 32,5 mil pessoas foram retiradas das unidades em razão da pandemia.

O número é irrisório e compreende somente 4,8% do total de pessoas em privação de liberdade, excluídos o regime aberto e presos em delegacias.

Mayra Balan acrescenta que mesmo com as orientações da Resolução, juízes e desembargadores continuaram decretando novas penas em regime fechado, insuflando a população carcerária e ignorando completamente a alta transmissibilidade do vírus dentro das celas.

“É uma classe altamente punitivista e que não reflete o sistema prisional. Uma classe majoritariamente branca com perspectivas machistas e racistas”, comenta a integrante do setor jurídico da organização, enfatizando que “a única forma de parar o contágio da covid é desencarcerando”.

Pelo mundo

O relatório da Pastoral traz ainda um panorama internacional das medidas adotadas para com os presos durante a pandemia.

O documento da Pastoral também reúne artigos de ativistas e pesquisadores que refletem sobre a questão prisional a partir do racismo e das diferentes vulnerabilidades  da população privada de liberdade, como as mulheres, indígenas, a população LGBTI+ e adolescentes inseridos no sistema socioeducativo.

Leia mais:

Conjuntura nacional em tempos de fúria. Por José Álvaro Cardoso

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