Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Quero tratar hoje de um tema de vital importância: a agenda ambiental. O Brasil tem tudo para desempenhar papel de liderança nesse tema, como fez aliás em períodos anteriores. No atual governo, porém, o nosso país tem se destacado por sua postura anticientífica e negacionista. No tema ambiental, assim como na pandemia. Ficamos isolados e fomos transformados em párias internacionais, inclusive nesse tema que é objeto de atenção crescente no mundo inteiro.
As camadas dirigentes brasileiras – não me refiro apenas e nem principalmente ao governo federal – só parecem se sensibilizar com o assunto, quando americanos, europeus e principalmente investidores estrangeiros pressionam e reclamam, como tem acontecido no passado recente. Aí o vira-latismo do brasileiro dá os célebres arrancos triunfais de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues (outra vez esta figura fatal!). Ou, para variar a metáfora, podemos dizer que o brasileiro se deixa facilmente transtornar pelo “medo atávico dos olhos azuis”, como sempre notava o embaixador Álvaro Alencar, grande brasileiro que foi um dos negociadores da dívida externa com os ministros Francisco Dornelles e Dilson Funaro, entre 1985 e 1987.
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Mas o meu “gancho”, como se diz no jornalismo, é uma carta aberta sobre a questão ambiental, divulgada em 14 de julho e assinada por 17 ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes de Banco Central. Entre os signatários, há várias pessoas de valor. Por exemplo, os ex-ministros Rubens Ricupero e Bresser-Pereira, que têm se destacado por críticas corajosas e pertinentes ao governo Bolsonaro. Outro exemplo: o ex-ministro Nelson Barbosa, excelente economista, ainda relativamente jovem, que tem grande futuro pela frente.
O vira-latismo econômico nacional
Mas também assinam a carta alguns dos mais vistosos vira-latas nacionais, entre eles, em primeiro lugar, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi também ministro da Fazenda no governo Itamar Franco. Além de FHC, encontramos, por exemplo, Ilan Goldfajn e Maílson da Nóbrega. Permita-me, leitor, abrir um parêntese para tratar desse aspecto estritamente folclórico.
De FHC nada direi hoje. Fiz críticas a ele, quando era mais difícil, na época em que ocupava a Presidência da República. Os outros dois são economistas celebrados nos meios financeiros locais e pela mídia, mas não é tão fácil entender por quê. Não se tem notícia de que Goldfajn, ex-presidente do Banco Central, tenha feito alguma vez qualquer consideração original, ou mesmo apenas interessante, sobre economia ou políticas públicas. Em certa ocasião, caminhava pela rua quando tropeçou numa ideia, mas conseguiu se recompor rapidamente, disfarçou e seguiu caminho, imperturbável. O leitor dirá que estou fazendo aqui um exagero caricatural. Sim, mas pela caricatura também se chega à verdade. Dentro do mesmo campo político, o seu sucessor no Banco Central, Roberto Campos Neto, é mais inteligente e ágil.
Maílson da Nobrega foi possivelmente o pior ministro da Fazenda da história econômica do Brasil. Desenvolveu a medíocre política do “feijão com arroz”, fez o desastrado Plano Verão em 1989, uma cópia aguada dos congelamentos anteriores de preços e salários. Acabou levando o país à hiperinflação. Além disso, para agradar os credores, retomou prematuramente o pagamento da dívida externa com bancos privados estrangeiros e logo teve que voltar uma suspensão envergonhada dos pagamentos. Mas ainda consegue ser levado em conta. Com signatários dessa qualidade, dificilmente a carta poderia ir muito longe.
Outro que merece um teco é Affonso Pastore, economista também celebrado nos meios financeiros locais e pela mídia. Trata-se de sujeito arrogante e com tendência pronunciada ao dogmatismo. No entanto, pia fino quando lida com americanos e europeus. Foi presidente do Banco Central no início da crise da dívida externa da década de 1980 e aturava verdadeiros vexames em reuniões com os bancos estrangeiros. O Brasil, recorde-se, ficara naquela época sem reservas internacionais e estava à mercê dos credores e do FMI. Certa feita, em reunião com bancos privados em Nova York, Pastore recebia com crescente exasperação as pressões e exigências dos credores – até que não aguentou e desabafou: “Daqui a pouco vocês vão querer que eu saia correndo de cuecas pela 5ª Avenida”. O representante de um banco comercial alemão (que foi quem me relatou o caso às gargalhadas) retrucou: “Não seria má ideia”. Pastore, zonzo, rodopiou e beijou a lona.
De repente, entretanto, me dou conta de que Pastore não está, infelizmente, entre os signatários. Paciência. Ficou bom o parágrafo anterior, não quero cortá-lo. E vai assim mesmo.
A questão ambiental no Brasil
Mas estou perdendo o fio da meada. Era do meio-ambiente que queria falar. A tal carta não tem, a rigor, nada demais. É até razoável. Está repleta de homenagens ao Conselheiro Acácio, verdade. Porém, as homenagens se tornam necessárias, em face da absurda ignorância com que o tema tem sido tratado pelo atual governo.
A carta sofre de um pequeno problema, devo dizer. Parece traduzida do inglês, sintomaticamente. A certa altura, por exemplo, fala-se em “endereçar” os problemas sociais. Isso não existe em português, leitor, é mera tradução canhestra do inglês “to address”, que significa “abordar”, “tratar de”. É o tal sotaque espiritual de que falava Nelson Rodrigues.
Mas isso é o de menos. O problema maior é o que a carta deixa de dizer ou não diz com a necessária clareza. Seleciono alguns pontos. Primeiro, a Amazônia não é “patrimônio da humanidade”, mas dos países da Bacia Amazônica e, principalmente, do Brasil que é detentor da maior parte. Mas afirmá-lo desta maneira ofenderia os brios do nosso vira-latismo. E poderia cair mal nos ouvidos dos investidores estrangeiros.
Claro está que dizer que a Amazônia é nossa não implica desconsiderar preocupações legítimas com os efeitos em outros países do que ocorre em nosso território. E muito menos ignorar que uma exploração predatória da Amazônia traria prejuízos para o clima e para a economia do próprio Brasil. De acordo com os especialistas, o desmatamento da cobertura vegetal amazônica, se continuar para além de certo limite, pode provocar mudança irreversível no regime de chuvas do Centro-Sul, com fortes prejuízos para a economia e a população dessas regiões do país.
Segundo ponto: não se deve perder de vista que o ambientalismo é, sim, um biombo para praticar o protecionismo contra produtores brasileiros e favorecer nossos concorrentes nos mercados internacionais. Os europeus são experts nisso. Nossos concorrentes dos Estados Unidos e na Austrália, também. Há que cuidar para, ao mesmo tempo, combater a destruição do meio ambiente, no nosso próprio interesse como país, e evitar que a agropecuária brasileira seja criminalizada por seus concorrentes estrangeiros. No nosso próprio interesse nacional, repito, e não para aplacar investidores estrangeiros.
Daí que não cabe em nenhuma hipótese facilitar a vida dos concorrentes estrangeiros e dos interesses protecionistas agredindo gratuitamente, com retórica tosca, as legítimas preocupações internacionais sobre meio ambiente, como tem feito o presidente Bolsonaro e seu incompetente ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O Brasil corre perigo, também nessa área.
Terceiro e último ponto: a Amazônia não pode ser vista como um santuário, que ficará intocado para “benefício da humanidade”, como se diz às vezes. A Amazônia tem, sim, que ser explorada, mas antes de tudo em benefício dos brasileiros e dos outros povos da Bacia Amazônica. Explorá-la do ponto de vista econômico, não significa, de certo, desmatar para produzir soja e gado, visão eminentemente ultrapassada.
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, representante política que é do agronegócio brasileiro, deixou esse ponto claro em entrevista, publicada em 5 de julho, pelo Uol e pelo Estadão, quando afirmou taxativamente que a agropecuária não precisa desmatar a Amazônia para crescer, em função do grande aumento da produtividade nas áreas já exploradas. A Amazônia com seu clima e terras diferentes, além de não contar com infraestrutura logística, não é atraente para o agronegócio, observa ela. A ministra declara-se, assim, tranquilamente, defensora de zerar o desmatamento ilegal, ponto ecoado na carta dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central. O principal potencial econômico da Amazônia parece ser não o uso de terras para agropecuária ou garimpo, mas sim a biotecnologia, que pode tirar partido da imensa diversidade de espécies vegetais e animais na região, potencial ainda desconhecido em sua maior parte e que depende, justamente, da preservação da floresta.
Mas, insisto, a Amazônia não é “patrimônio da humanidade”. Não se deve nunca perder de vista que a chamada humanidade é uma espécie de ficção. “A ‘humanidade’ não progride”, dizia Nietzsche (e aspeava ironicamente a palavra). Como poderia? – perguntava ele, se a “humanidade” sequer existe. Trata-se de uma daquelas abstrações inócuas, um conceito universal vazio, “a última fumaça da realidade evaporada”, para lançar mão de outra expressão de Nietzsche.
No meu modo de ver (já não estou falando de Nietzsche, que tinha horror ao nacionalismo), o que existe são as nações, os povos com suas culturas, línguas e identidades. Fernando Pessoa estava mais próximo do que quero dizer quando escreveu que “a existência da humanidade, se por ela se entende algo mais do que a simples espécie animal chamado homem, é tão hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus”. E afirmou em outra ocasião: “Só existem nações; não existe humanidade”.
Fico com o realismo frio de Nietzsche e Pessoa. A tal carta dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central derrapa quando se refere a uma mítica “comunidade internacional”. Trabalhei mais de dez anos em organismos internacionais, em Washington e depois em Xangai, fui também delegado brasileiro no G20 e nos BRICS, e posso garantir, leitor: não existe tal coisa. Tratei dessa experiência em livro que publiquei no final de 2019, pela editora LeYa Brasil, com o título O Brasil não cabe no quintal de ninguém: Bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
A realidade, como escreveu Pessoa, é a existência de nações. Mais ou menos fortes, mais ou menos soberanas, acrescento, que defendem seus interesses e se juntam, quando possível, para lidar com problemas comuns. As possibilidades de cooperação internacional são limitadas e sempre sujeitas à lei dos mais fortes. Cada país deve defender seus interesses com unhas e dentes. Na questão ambiental, assim como em todas as outras que envolvem negociação e cooperação internacionais.
Uma versão resumida deste texto foi publicada como artigo na revista Carta Capital, em 24 de julho de 2020.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final do ano passado, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
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