
Por Betânia Ramos Schröder e Stephane Ramos da Costa, Geledés.
Estreado no fim de 2024, o filme “Ainda estou aqui” já se consolidou como uma importante ferramenta de enfrentamento ao negacionismo histórico, que insiste em reduzir e silenciar os horrores da Ditadura Cívico-Militar. Dentre os diversos aspectos que impressionam na adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, o que nos interessa aqui é a perspectiva familiar e o âmbito privado daqueles que têm sua vida atravessada por este período.
Este texto é escrito por duas primas. Duas mulheres negras, duas gerações de pesquisadoras que fazem da escrita uma forma de ser no mundo, uma encruzilhada de possibilidades e construções para se pensar e resgatar a nossa história familiar comum. Esta família que tem na geografia, na migração, no movimento das pessoas uma ligação. Nosso elo sanguíneo e do movimento está em Joventino Cândido Ramos, nosso avô paterno e bisavô materno. Joventino nasceu em 5 de maio de 1905, no Engenho das Areias, mas conhecido pela família como o Engenho das Marrecas. Tinha entre seus grandes traços identitários pertencer ao Sindicato dos Estivadores de Recife e ser membro de uma célula do Partido Comunista.
A história deste homem retinto se assemelha com a de Eunice Paiva pelo fato de ele ter sido preso por militares durante o regime ditatorial. Ao mesmo tempo, essas duas histórias se diferenciam, especialmente sobre a forma como classe e raça determinam quais histórias serão contadas. Nesse lugar do aparente “oculto”, as formas de registro, de contar histórias negras, seja na oralidade ou em diferentes formas de registro escrito, episódios históricos atravessam gerações em resistência para que a história do Brasil possa também refletir suas mãos negras, parafraseando Beatriz Nascimento.
Mesmo após conseguir sua aposentadoria, ele continuava ativamente sua rotina diária e assídua de ida ao sindicato. É possível fabular sobre as reuniões, leituras e demais práticas de sociabilidade que aconteciam naquele local, muito embora detalhes a respeito eram guardados com certo sigilo, como se um espectro de repressão ainda pairasse no ar.
As experiências de pessoas negras pertencentes a movimentos de esquerda na ditadura representam uma face que recentemente vem ganhando importantes contribuições acadêmicas (com destaque para Gabrielle Abreu e Lucas Pedretti). Outrossim, para nós duas, que tivemos uma família atravessada por uma figura central como a do nosso avô, essas vivências se confundem como parte de nossas próprias trajetórias.
No seio da memória familiar, o desaparecimento de Joventino se deu em meio à repressão estabelecida no país logo após a deflagração do AI-5. E um dia, ele simplesmente sumiu. Logo em seguida, seus filhos descobriram que o mesmo havia sido detido pelo Exército. Sempre houve um interesse autobiográfico de Joventino, mas nossas duas gerações experimentaram algo diferente quando se tratava de falar do desaparecimento do nosso avô: o silêncio.
O medo foi a principal arma operacional do aparelho repressivo na ditadura militar. Isso resultou com que Joventino pouco falasse sobre os dias e o local exato da detenção. Documentos que comprovem sua prisão, testemunhos sobre o caso, a prisão do nosso avô se transformou num grande tabu familiar, marcado por incertezas, mas também por injustiças. Graças a este silenciar, é muito difícil que nosso avô seja inserido dentro das medidas reparatórias para as vítimas da ditadura militar.
Assim como segue até hoje uma grande incógnita sobre a razão pela qual ele foi preso. O que se sabe é que Joventino contou com o auxílio do advogado que, à época, também se dedicou ao apoio dos presos políticos. José Paulo Cavalcante conseguiu sua soltura.
Stephane Ramos da Costa é escritora, doutoranda em História pela UnB, pesquisadora das memórias de famílias negras e Guardiã de Comunidades no movimento Mulheres Negras Decidem.
Betânia Ramos Schröder é socióloga, ativista, mãe e residente em Frankfurt. Trabalhou como cooperante internacional e consultora nas áreas de desenvolvimento local e reconstrução nacional pós-conflitos armados. Autora e editora do Blog Vozes da Diáspora.