Os Itinerários de José Eduardo Degrazia

Por Marco Vasques, especial para Desacato.info.

O poeta Mario Quintana já disse que a melhor maneira de se conhecer um escritor é lendo sua obra. Paulo Leminski, no seu poema “Limites ao léu” reúne vozes de poetas e filósofos com definições sobre a invenção poética. É verdade que morar na linguagem de um criador consiste no modo mais seguro de apreender o cosmos que delimita sua criação. Contudo, também pode ser verdade que dialogar e instigar o artista a desvelar alguns de seus caminhos pode trazer chaves para a compreensão de seu universo. A obra de José de Eduardo Degrazia tem a feição de um caleidoscópio, pois apresenta sendas diversas ao leitor. Ele é tradutor, contista, poeta, romancista, ensaísta e dramaturgo, por isso, procuramos abordar, na entrevista que segue, todas as experimentações do artista numa tentativa de explorar, ao máximo, os itinerários e os labirintos de sua arte. Boa leitura!

Antes de entrarmos no campo das suas múltiplas atividades artísticas, penso ser importante conhecer um pouco da sua infância, do seu ambiente familiar e das memórias afetivas dessa primeira etapa da vida?

Nasci em Porto Alegre onde passei os meus primeiros anos. Vivíamos numa rua muito movimentada, com moradores de várias classes sociais. Da janela e na rua, eu via o mundo dos carroceiros, dos leiteiros, dos verdureiros, dos trapeiros (compravam roupa velha), dos geleiros (vendiam gelo para aquelas pessoas que, como nós, ainda não tinham geladeiras modernas), dos afiadores de facas com suas flautas monocórdicas. Era uma algaravia, uma rua pautada por canções, reclames, gritos de gol da gurizada que jogava futebol num campinho das imediações. Anos depois encontrei, num autor do neorrealismo italiano, Vasco Pratolini, descrições de ruas e bairros que me levavam a lembrar da rua Sarmento Leite da minha infância. Era um bairro classe média com muitos artesãos e pequenos comerciantes, inclusive italianos. Penso que essa variedade de vidas e comércios povoaram a minha imaginação desde então. Isto foi no início dos anos 50. Depois nos mudamos para Santa Maria onde outra realidade se apresentou, a do campo, que era muito próximo dos bairros da periferia. Via os gaúchos nos seus cavalos passarem diante da minha porta. E, por ser mais próxima, viajávamos mais para Itaqui, a cidade dos meus avós, onde presenciei a vida das estâncias com suas atividades pastoris. Penso que esta experiência entre a cidade e o campo moldou muito da minha personalidade de escritor.

Existe algum fato entre a infância e a juventude que o direcionou para o campo das artes?

Acredito que, além da minha experiência narrada na resposta anterior, teve muita importância o fato de meus pais serem professores, e terem em casa uma biblioteca (também na casa do meu avô em Itaqui). Os livros eram sempre presentes no nosso dia a dia. Meu pai falava mais de ciências, filosofia, e minha mãe de história e literatura. Meu pai e minha mãe, como era costume naqueles tempos, gostavam de contar histórias e causos, que, muitos deles, aproveitei depois em meus contos. No colégio em que estudava, de irmãos maristas, apesar de estarem muito ligados ao romantismo e ao parnasianismo, havia muita leitura de poetas e contistas. Quando voltei para Porto Alegre é que fui encontrar os modernistas e os romancistas da geração de 30. Fui estudar, no final dos anos 60, num colégio de Jesuítas, e tive professores que estimulavam a escrita e a leitura dos escritores contemporâneos. Nesse colégio comecei a escrever no jornal do grêmio estudantil. Já estava direcionado para a literatura.

Parte de sua adolescência e fase de formação escolar se dá durante o Regime Militar que teve seu início com o golpe de 1964. Pode falar um pouco sobre essa experiência?

Quando o golpe ocorreu estava ainda em Santa Maria, tinha 13 anos, e acompanhava à distância o que acontecia, as prisões, as intervenções nas Universidade, o medo dos mais velhos de se pronunciarem. E, por outro lado, via a indiferença ou colaboracionismo de muitos. Alguns casos desses serviram para contos sobre aquela época. Mesmo em Porto Alegre, pouco participei do movimento político, pois estava imerso já numa turma de contracultura e de movimento hippie. Quando fui para Pelotas estudar medicina, entre os dezoito e dezenove anos, é que me liguei à oposição ao regime, participando intensamente do MDB jovem que era muito atuante politicamente. Na mesma época criamos um grupo literário-político, o Grupo Vereda, que organizava os escritores de esquerda e liberais que eram contra a ditadura militar. Desse Grupo fizeram parte Aldyr Garcia Schlee, Moacyr Scliar, Sergio Faraco, Tarso Genro, Dilan Camargo e muitos outros. Nos encontrávamos no Clube de Cultura onde organizávamos lançamentos de livros e palestras em colégios e faculdades, onde vendíamos o nosso peixe, os nossos livros, e defendíamos a Democracia.

Estamos em 2022 e em véspera do segundo turno das eleições. O Brasil passa por um processo de criminalização dos artistas e pela escalada da violência generalizada. Misoginia, homofobia, xenofobia, racismo e ataque aos povos originários são apenas alguns dos absurdos anuídos por quem tem o dever e a obrigação constitucional de criar políticas públicas para dirimir tais violências. Qual o papel da arte e do artista num cenário desses?

Estamos vivendo num dos piores momentos políticos deste país desde a redemocratização (Quando este livro for publicado a questão já estará decidida, ou terá vencido Lula e trará de volta a Democracia, ou mergulharemos cada vez mais na barbárie e no obscurantismo). O atual governo, ligado aos movimentos conservadores e fascistas internacionais, optou por todos os retrocessos possíveis e imagináveis, destruição da natureza, fundamentalismo religioso, armamentismo e violência, racismo e xenofobia, antissemitismo (não se enganem por alguns ativistas fascistas carregarem a bandeira de Israel!) e homofobia. Sem falar na corrupção que será, com certeza, desvendada quando as autoridades tiverem liberdade de investigação, o que foi impedido nesse governo. O papel dos artistas é de fazerem o que sempre fizeram, entregarem-se cada vez mais às suas produções procurando beleza e verdade no que fazem. Com total liberdade de criação e de pensamento, ressalvadas as questões de idade e de agressões já contempladas e penalizadas em lei, cabe aos artistas problematizarem e pensarem a instância política e social e mostrarem suas mazelas, injustiças e violências. Não é questão de o artista ser filiado a algum partido, mas ser ligado aos direitos mínimos da humanidade e da Democracia.

Como funcionava o Grupo Vereda? Há algum estudo sobre esse coletivo? Hoje a publicação de livros se tornou algo corriqueiro e fácil, mas não época o processo era muito mais demorado, como vocês viabilizavam a produção do grupo?

Naquele início dos anos 70 tínhamos poucas editoras que publicassem novos escritores, e o Grupo Vereda procurava ser uma alternativa a isso, publicando, de forma cooperativada, nossos membros do Grupo. Publicamos as antologias Histórias ordinárias, de prosa, e as antologias Em mãos, de poesia. O grupo reunia autores iniciantes e autores já consagrados como Moacyr Scliar. Além do mais, o Grupo Vereda se colocava politicamente contra o regime militar e militava na cultura através de palestras em universidades e escolas. Escrevi um texto sobre a trajetória do Vereda, publicado originalmente no livro Relendo Vereda Grupo de edições cooperativadas, Ed. Bestiário, Porto Alegre, 2017, pp. 315-319.

Estou relendo seus textos teatrais, publicados no livro A Casa dos Impossíveis e outras peças, em 2018. Os textos foram escritos em 1970 e carregam algumas questões daquele tempo: autoritarismo, prisão, confinamento, charlatanismo, corrupção, privilégios sociais, alpinismo social, por exemplo. Ainda assim, você mesmo admite que os textos são “datados”. Depois de publicado você continua com a mesma percepção? Não acha que o atual momento político, de certo modo, tem dado uma certa vida à sua dramaturgia?

Escritos nos anos 70 e 80 esses textos teatrais refletem muito daquela época em que vivíamos sob o autoritarismo e o arbítrio de um regime golpista e violento. Por isso, em 2018, fiz aquela declaração de que aqueles textos seriam “datados”. Não imaginava, na época, a avassaladora onda conservadora e fascista que abalaria muitas das democracias ocidentais, a contar dos USA, chegando até ao Brasil no período Bolsonaro – violência, racismo, xenofobia, golpismo antidemocrático, movimentos contra a ciência e a cultura e as Universidades, e a liberação da destruição da natureza. Acredito que, talvez até infelizmente, esses textos podem ter se tornado novamente expressivos de uma realidade atual. Mas, o papel de toda a literatura não é mesmo este? Ser o retrato de momentos sociais e políticos através de personagens e dramas que os representam?

A Casa dos Impossíveis traz dois personagens aprisionados. Antonio Hohlfeldt já fez aproximações com Samuel Beckett (Fim de Partida) e Sartre (Entre Quatro Paredes). Acresceria a aproximação com Fando y Lis e O Arquiteto e o Imperador da Assíria, do Fernando Arrrabal, e, também, com o cinema o filme O Anjo Exterminador, do Buñuel. Qual era a sua relação com teatro na época desses escritos? Como se relaciona com as artes cênicas hoje?

Penso que as apreciações acima mencionadas são bem fundamentadas no que eu pretendia ao escrever as peças. Cenas de situações que vivíamos no dia a dia que beiravam o absurdo, a falta de sentido, procurando mostrar o grau de tensão e opressão a que éramos submetidos. Também havia a questão da censura e da autocensura que nos obrigava a escrever peças com duplo sentido, com algum nonsense. Comecei a escrever estas peças estimulado pelo teatrólogo e contista Carlos Carvalho e, depois, pelo teatrólogo Ivo Bender. Assistia todas as peças de teatro que passavam em Porto Alegre e acompanhava o que era feito na província e no Rio e em São Paulo. E, mais ainda, lia muito teatro. Meu interesse ia das peças do Plínio Marcos ao teatro do Absurdo, como o Arrabal, citado. Depois, me afastei um pouco do teatro, mas continuei a escrever alguns textos – ainda precisam de algum trabalho para serem editados –, e tenho uma peça em desenvolvimento que ainda é cedo para dizer se será terminada ou não. Mas continuo um apaixonado pelo teatro e a ler e reler os grandes autores. Agora estou relendo o Shakespeare e o teatro clássico grego. São poucos os que gostam de ler textos de teatro, eu sou um deles.

A peça O Jornalista Sacana, O Jornalista Honesto traz, além da relação entre poder, dinheiro e imprensa, uma outra questão muito debatida no momento, isto é, as notícias falsas. Há quem diga que a realidade está matando a ficção. O que o ficcionista Degrazia pensa sobre?

Essa peça eu a pensei e escrevi como algo paródico, beirando o humor exagerado, para denunciar exatamente a guerra pelo poder através da mentira, o que hoje chamaríamos de fake news. Parece que a realidade ficou muito mais agressiva, nesse sentido, com os novos meios de comunicação, potencializados pela internet, tornando-se uma terra de ninguém onde vaidade e golpismos de todos os tipos (é só ver o que têm sido as campanhas políticas dos últimos anos) procuram confundir e alienar antes de ensinar e esclarecer. Poderíamos entrar aqui numa discussão do que é a verdade, pelo menos a verdade comunitária, a socialmente aceita numa sociedade democrática. Mas aqui não é o lugar. A peça, de certa forma, reviveu com esses últimos acontecimentos arbitrários e violentos de luta pelo poder e pelo dinheiro. Quanto se a realidade está matando a ficção é só pensarmos em Shakespeare e sua época, que representava tão bem o mundo social em luta contínua no palco da vida. Em todas as épocas a realidade tenta sobrepujar a ficção, matá-la, talvez. Mas a ficção resiste porque é o espelho em que essa mesma realidade se reflete.

Além da leitura da peça “A casa dos impossíveis” realizada pela Revista de Teatro, da Associação Brasileira de Autores Teatrais – SBAT, em 1976, você nunca pensou em provocar algum grupo de teatro a encenar algumas de suas montagens?

Na época eu ainda morava em Pelotas, terminando o curso de medicina. Não tínhamos nada parecido com o que hoje a internet nos proporciona de facilidades e contatos. Estava isolado lá, sem contato com os poucos grupos que existiam na cidade, e distante dos amigos do teatro de Porto Alegre. Sem falar da abissal distância do que acontecia no Rio e São Paulo. Mesmo com a SBAT não tive contato pessoal nenhum. No ano seguinte voltei para Porto Alegre e me ocupei basicamente de minha residência em oftalmologia – mas não parei de escrever e publicar poemas e contos em revistas, jornais e livros –, e isso me afastou muito dos contatos com o pessoal do teatro, o que foi distanciando a possibilidade de ser encenado. Só recentemente, através da publicação do livro com meus textos para o teatro, é que esta possibilidade voltou a se abrir, e algumas pessoas mostraram interesse, como é o caso deste trabalho que estás fazendo.

Você é considerado por alguns especialistas como um dos grandes dominadores da técnica do chamado minicontos. Poderia falar um pouco mais sobre a estrutura dessa narrativa?

Comecei a escrever minicontos na década de setenta quando ninguém sabia bem o que era aquilo. Não o entendiam, pois não o consideravam conto, e não era poema nem crônica nem prosa poética. E, apesar deste desconhecimento, eles tinham um pouco de razão, porque o miniconto não é o conto, não é poema, não é prosa poética e muito menos crônica. O miniconto é um novo gênero – inicialmente híbrido do conto e do poema – que aproveita pontos dos vários gêneros em questão. Do conto tem personagens, localização espacial e temporal. E do poema um fecho que o resume ou decide. Mas sua brevidade faz com que tudo leve a uma epifania, a uma intensa participação do leitor que tem de subtender e preencher as linhas que não foram escritas. É, portanto, uma estrutura ficcional extremamente breve, intensa. Assim como se diferencia o romance da novela em número de páginas, poderíamos fazer o mesmo em relação ao conto e ao miniconto (as interpretações, segundo estudiosos é variável) comparativamente à sua extensão. O miniconto, no geral, não passa de uma página, no máximo uma página e meia. Desde Monterroso e outros autores fundadores, pode-se escrever minicontos de poucas linhas, uma linha, algumas palavras. O microconto entraria nessa perspectiva. Mas mais importante do que sua extensão é a capacidade que tem o autor de sugerir ação e drama numa narrativa breve. O leitor completa a história com seus referenciais. No entanto, o miniconto, por menor que seja, tem que ter localização, tempo e ação. Só assim ele pode contar uma história que faça sentido para o leitor.

Qual a origem do minicontos no Brasil? Quais autores destacaria como fundadores do gênero?

No Brasil temos alguns autores importantes, eu citaria a Marina Colasanti, Elias José, Drummond, e poucos outros. Dalton Trevisan, um grande contista e minicontista genial, não foi o introdutor do gênero no Brasil. Hoje, com as pesquisas universitárias, estão aparecendo outros pioneiros no gênero, que foram desconsiderados em sua época. Eu, como disse acima, comecei a escrever minicontos no início dos anos 70 sem conhecer o que o grupo mineiro de Guaxupé estava fazendo, pois a minha influência inicial eram os latino-americanos, o Monterroso, o Arreola, o cubano Virgilio Piñera. Já sabia, no entanto, que o gênero se chamava miniconto, como posso comprovar em publicações feitas por mim nos anos setenta e oitenta em jornais. No Rio Grande do Sul, quando eu comecei a escrever e publicar minicontos ninguém o fazia. Há textos do final dos anos sessenta do Caio Fernando Abreu que podem ser considerados minicontos, mas ainda estão muito próximos da prosa poética. E, depois, que eu saiba, ele nunca mais publicou algo parecido. O miniconto no Brasil teve um início difícil e desconsiderado pela crítica, só entrando no radar da universidade a partir, principalmente, dos anos dois mil. Hoje, posso dizer, mesmo que ele não seja um gênero vitorioso no gosto da média dos leitores, se tornou uma maneira de contar histórias breves e brevíssimas das mais atrativas no mundo ocidental. Tendo muitos cultores no Brasil, inclusive, principalmente a partir dos anos dois mil.

Há várias teorias modernas sobre a tradução. Você faz muita tradução. É um dos tradutores do Pablo Neruda, tendo vertido para o português inúmeros títulos do poeta chileno. Gostaria que falasse um pouco sobre o ofício da tradução.

A tradução veio para mim aliando dois interesses, o estudo de línguas e a necessidade e gosto de ler poetas de variada cultura, geografia e origem linguística. Traduzir passou a ser um prazer e uma maneira de estudar os autores que lia trabalhando suas formas estilísticas e tentando trazê-las para o português numa maneira que funcionasse esteticamente. Comecei a traduzir primeiramente para meu deleite próprio e depois para divulgar autores que eu gostava e que não eram conhecidos no Brasil. Traduzi principalmente do espanhol, do italiano e do inglês. Atualmente tenho lido muita poesia alemã e tenho tentado traduzir alguns poetas. Nas traduções do inglês e do alemão tenho a valiosa colaboração da minha filha Carolina que viveu na Inglaterra e agora vive na Alemanha há muitos anos. Quando as minhas traduções ficaram mais conhecidas recebi convites para traduzir poetas consagrados, como foi o caso de Pablo Neruda (sou leitor de Neruda desde a minha adolescência, imagina a alegria que foi traduzi-lo!); traduzi sete livros dele para a editora L&PM e dois para a José Olympio. A tradução para mim é um trabalho ao mesmo tempo lúdico e dura faina e estudo sobre não só a forma como o autor se expressa, mas, também, sobre o mundo em que vive e que sua literatura identifica. Temos que ter, no entanto, a humildade de saber que o original sempre será mais perfeito que a tradução. Mas, penso também, que isto não invalida o esforço feito pelos tradutores: eles nos proporcionam entrarmos em contato com literaturas que, por não conhecermos as línguas, jamais teríamos acesso.

O tema da própria escrita volta e meia ressurge em seus livros. Na novela “O reino de Macambira” o personagem Fernando diz “um poeta só é grande quando tira da vida, da própria substância da vida, a poesia”. Pode falar um pouco sobre o seu processo de criação?

Acredito que a literatura tenha duas dimensões importantes, como tudo na vida, o consciente e o inconsciente. Das imagens ancestrais, das vivências subterrâneas, da essência do “coração”, vêm os motivos fundamentais da nossa escrita. Tudo o que está marcado indelével nas nossas vivências, as relações familiares, os contatos com a comunidade em que estamos imersos, as paixões e os amores. De outro lado, a consciência, a razão, o fazer, o estudar, o ler os grande autores, o exercitar-se escrevendo – escrevo sempre, diariamente, ou se não posso escrever por algum motivo, tento guardar na memória o que penso para desenvolver depois –, o encarar a atividade literária não somente como um hobby, mas como um labor (mesmo que exista nele, e é importante, o lado lúdico, feliz e alegre de trabalhar formas e imagens), que busca um fim, o expressar o mundo em que vivemos, em sua integralidade social e psicológica.

Você transita por muitos gêneros: novela, romance, teatro, literatura infantil, poesia, enfim, ainda sobre o processo de criação: quais as diferenças exigidas por cada gênero?

Eu sempre li de tudo, sempre fui aberto às mais variadas influências. Já escrevia antes de ser médico, mas, como estudante de medicina, e até antes, estudava biologia, química, física. Lia, ao mesmo tempo, obras literárias de vários gêneros, história e filosofia. E tinha como meu ídolo literário Machado de Assis, que transitava tranquilamente entre vários gêneros. Um parêntese: uma pessoa me disse uma vez, que não se poderia escrever em vários gêneros. Quando eu mencionei Machado de Assis, ela respondeu, mas ele era um gênio; a minha resposta foi: quando Machado começou a escrever ele não sabia que era gênio, escrevia o que bem queria e o que bem entendia, tendo sucesso maior em alguns gêneros que em outros, mas tentava e, provavelmente, se divertia em fazê-lo.

Continuando. No entanto, temos que entender que cada gênero tem suas características próprias que devem ser respeitadas, limites a serem observados – mesmo que no pós-moderno estes limites não sejam tão importantes. Esse domínio das formas e gêneros só é dado através da leitura intensa e imersiva em vários gêneros, poesia, crônica, conto, romance, teatro. Sei de poetas que não leem romances e de romancistas que não leem poesia. O que, penso eu, é uma grande perda para ambos. A literatura é, no fundo, uma obra poética que se subdivide em gêneros e subgêneros. Quanto a mim, em particular, procuro focar no gênero que estou escrevendo, tento fazer a oficina de trabalho conhecendo os materiais e as ferramentas necessárias. É claro que, nem sempre se consegue o máximo em cada forma, como nem Machado conseguiu. Até aceito, de certa forma, a crítica de que a pulverização de formas dificulta o leitor em identificar um autor. Mas, por outro lado, no meu caso, se eu me dedicasse a um só gênero, não seria eu, seria um outro escritor.

O mercado da arte também aparece em alguns de seus textos, como no seu teatro, por exemplo. Num mundo tão mercantilizado e voltado para o lucro nem a arte parece resistir aos encantos do capitalismo. Como combinar criação e sobrevivência sem um certo grau de corrupção nas relações?

É realmente muito difícil essa questão. Por um lado, queremos ser profissionais, sobrevivendo ao vender nossos textos para o mercado, de outro, romanticamente, queremos ficar intocados, fora do sistema. No mundo atual, com raras exceções, poucos países estão fora do capitalismo. A dificuldade é, portanto, para o indivíduo escritor, como conciliar seus ideais humanistas, ou quem sabe, socialistas, com a realidade da economia. Eu, pessoalmente, nunca tive nada contra escritores que se tornam bestsellers, mesmo que possa não gostar da maneira como escrevem. Acho até que eles podem, atingindo um público leitor não acostumado à literatura, abrir caminho para que leiam autores mais sofisticados. Mas é certo que existe toda uma máquina dominada por grandes meios de comunicação, grandes editoras e alguns prêmios literários dirigidos, que mantém um grupo no domínio das manifestações artísticas e literárias. É, no fundo, a velha luta pelo poder e pelo dinheiro, mesmo que para o autor, em geral, sobre muito pouco.

Tenho uma afeição especial pelo seu livro de poemas “O súbito vento”. Pode falar um pouco sobre ele e sobre a parceria com Shogoro Nomura?

Sempre tive interesse na literatura feita pelos japoneses, e, principalmente, pelos autores clássicos dos haicais daquele país. Também, sempre gostei dos introdutores brasileiros, desde Afrânio Peixoto e Guilherme de Almeida, e de toda a variedade e criatividade que criou um poema muito original no Brasil, que se vale da tradição, mas procura inovar, trazendo novas formas e metáforas. Tenho escrito, desde há muito, haicais, mas só vim a publicar um livro no gênero, em 2018, O súbito vento, que contou com a tradução e com as belíssimas ilustrações do artista japonês Shogoro Nomura. Nos tornamos amigos num encontro organizado pela Associação Internacional Mihai Eminescu, na Romênia, em Craiova. Ele estava sendo premiado como artista plástico e eu como poeta por meu livro Love is geometry, traduzido ao romeno como Iubirea este geometrie. Ficamos muito amigos e planejamos manter algum tipo de colaboração, que está vindo à luz agora, com o meu livro antes citado, e com a antologia de haicais Oscilações de partida, com um grande número de cultores do haicai. Isso só seria possível porque apresentei o Shogoro para Roberto Schimitt-Prym, da editora Bestiário, que junto com o professor Andrei Cunha levaram o projeto adiante. Quanto ao Shogoro, é um grande artista plástico, ceramista, e um pintor dos traços tradicionais japoneses, delicado e expressivo. É também tradutor e escritor. Shogoro tem ateliê em Florença, e lá faz exposições e ensina muitos iniciantes na arte da cerâmica.

Você disse que escreve diariamente e quando não consegue tenta gravar algo na memória para exercício posterior. Há um horário específico estabelecido em sua rotina para escrita? Como ocorre esse gravar na memória para exercício posterior?

Trabalhei como médico desde os meus vinte e poucos anos até quase os setenta, quando me aposentei. Trabalhava das oito da manhã às sete, oito horas da noite. Fui criando um método de trabalhar a literatura, que era a minha outra profissão e paixão, conforme essa realidade, conforme dizia o médico e psicanalista Cyro Martins, escrevendo no rabo das horas. Sempre que não tinha algum compromisso, começava a escrever no final da tarde e ia até meia noite, uma hora da manhã, não mais do que isto, porque no outro dia tinha que acordar às seis horas da manhã. Interessante, é que agora que estou aposentado, não mudei muito o meu ritmo de escrever, porque mesmo tendo mais tempo, em geral, uso as horas livres durante o dia para ler, ver filmes, ouvir música, passear, ver gente, e acabo escrevendo no mesmo horário a que já estava acostumado. Mas estou procurando lentamente, mudar esse ritmo. Quanto à questão de guardar o que me vem à cabeça, quando não posso anotar na hora, o tema fica martelando até que, quando estou em casa, no tempo propício, transfiro para o papel ou para a tela do computador. Nem tudo se guarda na sua integralidade, é verdade, mas pode ser mudado, transformado, numa imagem nova. Sempre gera novas criações. Existem pessoas que guardam livros inteiros na memória, e depois os escrevem. Não é o meu caso. Mas para mim, pequenas imagens, conversas, histórias, me permitem criar enredos e poemas.

Gostaria que falasse sobre a experiência de escrever um livro com sua filha? Como se deu essa experiência?

A minha filha Carolina há muitos anos mora na Europa, e fizemos muitas viagens juntos. A formação dela é turismo, e ela sempre proporcionou para nós viagens inesquecíveis. Há alguns anos ela vinha escrevendo suas experiências de viagens num blog, e, eu vinha escrevendo minhas lembranças de viagens em crônicas. Juntar nossas duas maneiras de ver o mundo, num livro, foi uma alegria. Penso que as crônicas se harmonizam, mesmo tendo a questão da percepção geracional de permeio, diferenças de ver o deslisar dos acontecimentos e paisagens. Mas o encontro de pai e filha na viagem, no mundo que se abre à experiência, está na aventura que se descortina em cada trajeto, conhecimento de culturas e histórias as mais diversas. Além é claro, de viver tudo isso em família. E tudo é crônica, vivência e tempo.

Você fala com frequência em arte, literatura e sociedade. Por que, na sua concepção, um país como o Brasil, tão rico e tão diverso na criação literária, ainda tem índices baixos na prática da leitura?

Existe, é claro, uma questão estrutural, antiga, de baixa cultura e baixo índice de escolaridade. Tudo isso tem de ser combatido para que consigamos atingir um nível mínimo para o consumo da cultura. Existe, por outro lado, uma guerra aberta contra a cultura e a ciência, que tomou corpo nos últimos anos do governo Bolsonaro e que nos levou a uma penúria em relação às verbas, e um ataque reiterado a tudo o que significa independência artística e científica, num claro objetivo de destruir tudo o que é feito aqui de melhor, culturalmente e cientificamente, em nome de um modelo que privilegia a ocupação e destruição da natureza. Dizem eles, queremos o progresso rápido, o dinheiro chovendo, danem-se os resultados a médio prazo. Isso significa a dependência tecnológica de outros países. Destruir a natureza e a cultura faz parte de um mesmo pacote ideológico de destruição da democracia. A literatura, portanto, dentro deste contexto, só terá apoio e desenvolvimento quando as áreas humanísticas tiverem apoio governamental e da iniciativa privada. Quando a sociedade como um todo encarar a cultura, a literatura, o livro, como bases da construção do indivíduo dentro da nação e da democracia.

As artes, de um modo geral, sempre estiveram nas mãos de homens majoritariamente brancos. Vivemos um momento muito rico e pulsante no surgimento de escritores pretos, mulheres, indígenas e da comunidade LGBTQIAP+. Há uma linha mais dura da crítica literária que tende a desconsiderar a origem do texto e tratá-lo como ente puro. Como você vê essa questão?

É uma pergunta complexa e difícil, neste momento em que vivemos, em que a cultura está sendo atacada por todos os lados, e, por outro lado, existe uma renovação espetacular vinda desde as bases da sociedade. Nunca vimos tantos autores negros, mulheres, e da comunidade LGBTQIAP+ com obras importantes e memoráveis. Isso representa um avanço, uma abertura de temas e de criatividade que só podem enriquecer o panorama da nossa literatura, antes restrito a vozes dominantes da hierarquia branca e masculina. No entanto, devo dizer, que me filio a um meio termo, isto é, que tenho para mim que a qualidade literária é um aspecto essencial, independente de quem esteja escrevendo. Num segundo momento entram, é claro, as especificidades e diferenças de raça e sexo. Se o texto trazido por algum representante das minorias, também mostra, além da qualidade literária, uma importância cultural e social, a obra se torna necessariamente importante. Já fui parte de conselhos editoriais em que se propunha a edição de textos de minorias. Participei deles porque acreditava que eram importantes. Porém, nunca abdiquei da escolha dos melhores. No meu crivo passavam os que melhor conseguiam aliar sua mensagem cultural aliados à melhor forma literária. Trocando em miúdos, na medida em que as condições de nossas populações marginalizadas melhorarem, cada vez mais teremos autores e autoras cultos, escritores que ocuparão um vazio dentro da literatura brasileira.

Então, a literatura está há séculos sob o domínio da figura masculina branca. É preciso que outras identidades tenham tempo para criar, espaço para o exercício e a permanente experiência de vivência a arte. Caso contrário, podemos incorrer no risco de cair num discurso da meritocracia e na falsa simetria. Essas pessoas foram excluídas, de forma propositada, do fazer artístico e estão, em certa medida, recuperando o espaço perdido.

Mesmo tendo tido na história da literatura brasileira representantes destas categorias – Machado de Assis, o nosso maior escritor, é um exemplo –, nunca ocuparam o espaço que, pelo seu número, mereciam. Com a democratização e a melhora da educação as camadas marginalizadas passam a ter voz em todos os setores, inclusive na literatura. Isso é, sem dúvida, um enriquecimento, pois traz à tona camadas submersas que antes não podiam expressar-se. Hoje temos um número importante de autoras, negros e índios que escrevem sobre suas realidades. Passados os quatro anos de governo de ultradireita, que fez de tudo para destruir a cultura e as categorias civilizacionais, podemos almejar que nos próximos anos mais e mais autores e autoras se façam presentes, abrangendo todo o nosso universo cultural.

Outra coisa que gostaria de problematizar, ainda na questão, é que o critério de qualidade não é absoluto, pois é também cultural. Por isso penso que, muitas vezes, podemos deixar escapar preciosidades artísticas por estarmos prendidos a certos parâmetros de qualidade. Aproveito para fazer uma provocação, o que define a qualidade de uma obra para você?

O fato de procurarmos uma abrangência maior e mais representatividade popular na cultura, não significa falta de critérios ou tornar o fazer artístico e literário um vale-tudo. Um técnico em máquinas tem de conhecer o mecanismo com que trabalha, ou não será produtivo e poderá, até, causar acidentes. Um músico tem que conhecer seu instrumento e estudar música para tocar e compor com qualidade; o mesmo acontece com o escritor que tem de aprimorar a linguagem com que escreve para produzir textos de qualidade – isso se consegue lendo os grandes autores e estudando a língua que é a nossa melodia. Quanto ao critério da qualidade temos de diferenciar o que é manifestação legítima popular, às vezes feita por pessoas que não tiveram acesso à educação formal, da manifestação culta. A primeira, pode ser rica em caracteres e expressividade mesmo sem a totalidade do domínio formal, conhecendo intuitivamente ou pela observação e cópia de modelos; a segunda, sempre terá um grau de exigência maior baseada no conhecimento formal. Poderíamos usar o exemplo das catedrais góticas, construídas muitas vezes por pessoas cujos nomes se perderam na história, mas tinham conhecimento de matemática e de materiais para poderem erguer em sua glória estética aqueles monumentos para durarem séculos. O acesso à educação e, principalmente à universidade, é um divisor de águas nesse sentido. Nem todos os que frequentarem cursos se transformarão em artistas e escritores, mas serão apreciadores, consumidores e críticos.

Começamos a entrevista com o governo sombrio de Bolsonaro. Felizmente, como você previu em uma das respostas, estamos em outro momento e com um governo que defende a arte, a democracia e a cultura. O que você espera dos próximos 4 anos?

Penso que conseguimos sair de um pesadelo fascista contrário a tudo o que é civilizacional, com seu culto às armas, à tortura e à morte, sua visão anticultural e contra a ciência e sua política de terra arrasada em relação à natureza. O governo que conseguimos tirar agora fez um mal enorme ao país, com destruição sistemática da educação, da história e da arte. Teremos mito trabalho pela frente para reconstruir todo esse arcabouço de proteção aos indivíduos, aos trabalhadores – precarizados por um neoliberalismo desumano –, e, no qual está inserida a manifestação cultural e artística. Não se trata de comunismo, como os bolsonaristas atacavam toda e qualquer visão de mundo fora do baixo entendimento fundamentalista religioso e ultra liberal, mas de direitos mínimos e garantias sociais a toda a população. Só com este entendimento poderemos redimensionar a importância da cultura e da ciência para o desenvolvimento do nosso país e para o aprimoramento da nossa população.

Se tivesse que escrever uma carta a um jovem artista ou poeta, à maneira de Rilke, o que diria?

Diria para que escrevesse desde cedo e procurasse ler os grandes autores. Só a partir da prática (o fazer literário) e do estudo, podemos alcançar o máximo de nossas possibilidades. Os vocacionados, tenho certeza, sempre encontrarão o seu caminho e o seu público. Diria, também, que ouvisse sua voz interior para encontrar o que deve ser manifestado artisticamente, que ouvisse o conselho dos mais experientes mas procurasse o seu próprio caminho, dando importância às críticas favoráveis ou desfavoráveis mas sem que elas o afastem do seu destino. E que o aprender é contínuo, não só os jovens devem estar abertos a ele, mas também os velhos, que, se não o fizerem, cairão na repetição de formas consagradas. Diria mais, que esteja sempre aberto ao experimento sem desdenhar do que já foi construído e que é a base da nossa cultura. E, por último, diria que continue a escrever desde que este fazer represente dor, mas também alegria, sofrimento, mas também prazer, conhecimento, mas também fantasia.

O livro Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai e Outros Contos de Guerra, Sonho e Amores oferece ao leitor muitas camadas de leitura. Nei Duclós acentua, entre outras questões, que o livro é uma espécie de relato geracional. Luiz Antonio de Assis Brasil acentua a excelência literária e o namoro com a poesia. Há, ainda, a questão geográfica, que moldam em certa medida a constituição dos personagens, além de um amplo retrato cultural, digamos, do vivente fronteiriço. Destaco, ainda, a escrita precisa, a poesia verbal, visual e humana presente no livro. É provável pensar num híbrido entre o ficcional e o real. Pode falar um pouco sobre essas questões?

Praticamente todas as narrativas dos contos ou foram vividas ou presenciadas por mim. Outras, me foram contadas pelos meus pais e tios que viveram aquela fronteira há quase cem anos. Desde pequeno passava férias nas casas dos meus avós em Itaqui e escutava aquelas histórias de guerra, revolução e contrabando. Via, também, a faina nas estâncias, e o movimento das barcas no rio Uruguai, que transportavam pessoas e mercadorias. Também, o meu tio Jorge era cônsul do Brasil em Alvear, cidadezinha argentina que alcançávamos depois de atravessar o rio de chalana, e de pegarmos um carro/coche que era uma diligência puxada por um ou dois cavalos. Carro de praça, em Itaqui, por exemplo, eram carruagens puxadas por cavalos, isso nos anos 50 e início dos 60. Tudo aquilo, sons, imagens, cores, movimentos, fábulas, ficou gravado. Os contos tentam reproduzir aquela realidade vista e escutada. Onde a realidade e a imaginação – ou não seria ficção –, estão juntas. Como bem dizes, procurei criar quadros com escrita clara, personagens bem delineados e ligados ao meio. Na segunda parte do livro, os contos se passam nos anos 70, período de ditaduras militares pelo continente. Eu e a minha namorada, que depois viria a ser a minha esposa, pegamos mochilas e saímos a descobrir a América profunda, o Peru, A Bolívia, o norte da Argentina. Às vezes, nos meus sonhos, ainda escuto o rolar dos trens que nos levavam através dos Andes. Foram muitos os sonhos e as desilusões, que procurei retratar nos contos que se passam fora do Brasil, naquela época tão difícil que deixaram tantas cicatrizes na nossa alma latino-americana.

Você usou uma expressão bastante explorada por Octavio Paz, que é a questão da “voz interior” do artista. Qual a sua relação com o campo teórico? Rilke, no livro citado, diz que se deve evitar os críticos e os teóricos?

Não sei se a minha avaliação poderá ser a mais certa nesse quesito, mas eu sempre achei a teoria fundamental em toda e qualquer ciência, seja ela humana ou aplicada. Sou um leitor de ensaios e sempre procurei entender os processos que utilizo e os que outros escritores usam. Sempre fui contra aquela ideia romântica de que saber os fundamentos das coisas e dos processos empana a fantasia e a criação. Muito antes pelo contrário, o saber abre novas portas para o imaginário, para o mundo das formas e das novas possibilidades, seja em arte, em ciência, ou no artesanato. Por isso li muito sobre literatura e arte, e todos os ensaios que li fazem parte de mim, da minha trajetória. Gosto muito do ensaio como forma de interpretação de textos e da própria realidade humana e física onde estamos inseridos. Escrevi, e continuo escrevendo, textos ensaísticos – ainda não publicados em livros, mas em jornais e revistas do Brasil e de Portugal –, pois procurar entender o fluxo cultural e científico que trouxe a humanidade até aqui, é apostar na civilização contra a barbárie.

Na minha percepção o exercício crítico e teórico também é exercício de criação. Oscar Wilde já disse isso em um de seus textos famosos. Essa tendência binária que temos sobre as coisas precisam de novos olhares, não acha?

Com certeza. Não podemos ficar presos ao imobilismo dos que propugnam que o conhecimento é um mal que impede as forças criadoras. Penso exatamente ao contrário dessas teses obscurantistas. O Conhecer o porquê de nossas obras serem criadas, usando ferramentas sociológicas e psicológicas, em nada empana a beleza e a perenidade da obra de arte, que tem vida própria. As pessoas, algumas vezes, confundem o fazer artístico/literário com a fé. Quando acreditamos num, ou em muitos deuses, não queremos discutir sobre a legitimidade deles, e transferimos esse sentimento para a obra de arte, como se o artista fosse um médium, e sua razão mais profunda, por isso, devesse ficar para sempre no mundo mágico. Mistérios existem para serem esclarecidos, e a literatura e a arte não fogem disso. Não podemos confundir o prazer estético que temos, no momento que o contemplamos, com a obra de arte em si. Portanto, penso que estudar o fenômeno artístico não é diminuí-lo, mas engrandecê-lo, e, para isso, novos olhares sempre são bem-vindos.

Conceição Evaristo, por exemplo, diz que pensa o texto por imagem. Que é motivada pela imagem. Como é o surgimento ou, se quisermos, a gestação primeira de um texto?

São muitas as maneiras de serem criados os textos, conforme forem ligados à poesia, à prosa, ou mesmo ao ensaio. No fundo tudo é linguagem, fala, palavra, a imagem é alicerçada com o tijolo da palavra, quando falamos da escrita literária. A imagem, guardada no inconsciente, na memória, ressurge instantaneamente em forma de palavra para o poeta. Uma imagem cria uma palavra, a palavra puxa a outra, o consciente preenche as lacunas com ideias e vivências. Por isso não bastam as imagens que temos, ou nossas vivências, mas precisamos dominar uma língua para que ela se torne expressiva. Podemos diferenciar isso quanto aos gêneros, pois na prosa o que ouvimos de narrativas, desde a infância, formam blocos de imagens em movimento, como no cinema, e a narrativa se desenrola a partir desses mitos ancestrais. Quando contamos o que vimos ou lembramos, na escrita, aquele imago ancestral se transforma em algo novo: cada escritor, de certa forma, inaugura uma nova realidade. Primeiro vemos e ouvimos, depois, com a educação, o aprimoramento, e a vivência individual, nos expressamos e criamos mundos.

Pode falar um pouco mais sobre essas andanças que você e sua esposa fizeram por parte da Pátria Grande?

Entendendo-se a Pátria Grande como o mundo, e a visão de mundo a cosmogonia que o acompanha, vim fazendo da viagem um momento ao mesmo tempo lúdico, de prazer e encantamento, mas também a forma de conhecimento do outro, do diverso, do diferente, que se manifesta nas culturas. Desde criança, quando viajava de trem através do pampa, ou quando de carro atravessava de balsa os rios da minha terra, a poesia veio se fazendo em mim não como paisagem, sim abertura para o meu interior, espelho e lente de aumento, não exotismo, mas espírito e poesia. Voltando à pergunta, viajamos muito através do mundo, eu e Virginia e a nossa filha Carolina. De cada país trouxe imagens, sons, cores, palavras, poemas. Tudo isso informou a minha poesia e faz parte dela inexoravelmente. A poesia vem conquistando de volta o mundo que palmilhei, recebendo prêmios importantes, principalmente na Europa. Por isso, para mim, viagem é vida, cultura, conhecimento, o que faz que internamente se realize, e procure se expressar, a visão de mundo que falei acima. Sem a visão de mundo, a poesia cai, ou no puro formalismo, ou na catarse romantizada.

Ainda sobre Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai e Outros Contos de Guerra, Sonho e Amores: o livro vem recebendo uma série de escritos em diversos lugares e espaços, como você avalia o momento da crítica literária de um modo geral no país?

A crítica literária nos espaços públicos, fora do mundo acadêmico, já teve melhores dias. Ocupava muitas páginas de jornais, suplementos e revistas. Aos poucos esse espaço foi sendo ocupado pelo entretenimento (aqui não estou fazendo juízo de valor, pois, por exemplo, a música popular e o espetáculo podem ser bons ou ruins). Por outro lado, o meio universitário se abriu mais para a literatura contemporânea e tem, de certa forma, ocupado um espaço para o público mais escolarizado e culto. Há, no entanto, meios que resistem, alguns cadernos culturais de jornais e revistas ainda em circulação. Nesse âmbito, entre o ensaio acadêmico e o artigo de jornal, a minha literatura tem conquistado algumas apreciações qualificadas, principalmente no que concerne ao miniconto e ao conto; mais proximamente, com os prêmios internacionais mais recentes, também a minha poesia tem merecido avaliações importantes.

Ainda há, em vários campos, embora seja uma fronteira cada vez mais borrada, uma espécie de disputa no campo da arte com a ensaística produzida nas Universidades. Como você vê essa questão?

Como respondi acima, penso que a análise acadêmica tem ocupado cada vez mais espaço no meio literário, não ficando restrita à Universidade, sendo lida não só pelos professores, mas, também, pelos escritores e pelo público leitor culto. Não creio que exista uma disputa propriamente dita; como explanei acima, o que aconteceu foi o retraimento do setor mais acessível ao público, principalmente nos jornais – que foi ocupado de forma inicialmente precária pelos meios da internet –, e o interesse da academia pela literatura viva, contemporânea, o que antes quase não acontecia. Sou leitor de ensaios e livros de crítica e análise; penso que a crítica não deixa de ser, mesmo tendo metodologia, teoria e cientificidade nas suas análises, uma forma de literatura. Se estão conquistando mais público leitor, não me parece algo negativo, muito antes pelo contrário. Os autores universitários chegarem ao público médio pode significar – se é que isso está realmente acontecendo – uma melhora do conhecimento, uma maior necessidade de compreensão do fenômeno literário.

Você vive em Porto Alegre. Na última década os jornais impressos minguaram, os cadernos de cultura, em sua grande maioria, se tornaram espaços de release e fofoca. As mídias sociais, embora sejam uma alternativa, também se constituem em território delicado. Qual a sua experiência com essas mudanças? Como avalia esse processo?

As respostas anteriores já abordaram, em parte, essa situação, mas posso aduzir que, na ausência de espaços adequados, a literatura dos novos, principalmente a poesia, migrou para as mídias sociais. De certa forma, repete-se o fenômeno de cinquenta anos atrás, quando nós jovens publicávamos nos jornais e ficávamos esperando a repercussão, que sempre vinha. A partir daí, com a visualização do texto, e com os retornos, trabalhávamos mais a forma e o conteúdo que queríamos expressar. Acredito que os meios sociais não são um mal em si, pois trouxe grandes facilidades, inclusive para os escritores veteranos, de alcançarem uma visibilidade internacional, quase instantânea, nunca sonhada. Através das novas mídias conhecemos escritores e leitores, editores e ensaístas, e podemos nos comunicar com eles, rapidamente, mesmo que estejam do outro lado do mundo. A Literatura viaja, assim, de uma forma que nós, escritores antigos, não poderíamos imaginar. No entanto, não por saudosismo, mas por acreditar que a mídia impressa tem, e ainda terá por muito tempo um papel importante, penso que deveríamos valorizar e apoiar os veículos impressos que divulgam a cultura e a literatura.

Você tem razão ao afirmar que a mídias sociais encurtam distâncias, provocam novos encontros e facilitam, em muito, a comunicação imediata. No entanto, também traz em seu bojo problemas outros como o excesso de comunicação, o distanciamento humano, enfim, o filósofo coreano, radicado em Berlin, Byung-Chul Han vem dedicando alguns livros sobre uma sociedade do cansaço e do esgotamento ampliada pelo uso descomedido das mídias sociais.

Estamos vivendo um momento de grande mudança nas comunicações e na educação também. A questão das mídias sociais é algo que tem de ser dimensionada, e, penso eu, controlada pelas leis de cada país. Não é possível que essas empresas – são, evidentemente, empresas poderosas e milionárias – tenham liberdade absoluta de manipular dados, e, por outro lado, não controlar mensagens de violência e de inverdades sociais e políticas. Se, por um lado, essa maravilha de instantaneidade e de facilidade de contatos é bem-vinda, por outro, não pode ser aceitável que os nossos dados sejam manipulados no interesse de empresas, e que essas empresas permitam, visando o lucro (e aí mistificam, querendo dizer que é liberdade de expressão, quando na verdade estão permitindo o crime, a desinformação, e a veiculação de fake news), o domínio total sobre os conteúdos, e o direcionamento dos gostos e desejos da população. É um tema complexo que abarca questões jurídicas, filosóficas e éticas. A sociedade deve encontrar um meio adequado para que possamos usufruir e utilizar dos meios eletrônicos, mas com responsabilidade.

Rio Grande do Sul tem uma longa tradição poética e você é um estudioso dessa tradição, pode falar um pouco sobre ela?

O Rio Grande do Sul teve uma história tardia em relação aos principais centros do Brasil Colônia, é só pensar que podemos dar a data de 1737 – com a fundação do forte de Jesus Maria José – para a fundação do que seria a futura província e atual estado. Só para ter uma ideia dessa formação tardia, Gregório de Matos, o poeta baiano, nasceu em 1636, quase cem anos antes do nascimento do estado mais meridional do Brasil. Por isso, a poesia do Rio Grande do Sul, mesmo com poucos – ou quase nenhum –, representantes clássicos, começou mesmo no romantismo, tendo o poeta pelotense Lobo da Costa como um dos seus luminares. No simbolismo, e no parnasianismo, no final do século XIX e início do século XX, tivemos grande movimento poético com poetas importantes como Zeferino Brasil, Alceu Wamosy e Eduardo Guimarães. Mas foi a partir do Modernismo que a poesia do Rio Grande do Sul atingiu a sua maioridade, com poetas como Augusto Meyer, Mario Quintana, e outros. A transição desse período, junto com a geração de quarenta e cinco, teve poetas importantes, como Walmir Ayala e Paulo Hecker Filho. A grande expansão da poesia nos anos 60 e seguintes, trouxe uma explosão de criatividade com nomes como Carlos Nejar, Armindo Trevisan, Maria Carpi, Luiz de Miranda, Oliveira Silveira, e outros., que consolidaram o fazer poético no estado, sendo nomes nacionalmente e internacionalmente conhecidos. A partir do século XXI uma diversidade de talentos jovens invadiu a cena, trazendo um grande número de poetas, com grande predomínio da poesia feita por mulheres e por autores negros. Para não cometer injustiças, não citarei nomes, mas devo dizer que é um movimento muito forte e de qualidade, e um grande número desses autores, com certeza, permanecerá no gosto dos leitores e na História da Literatura.

E os poetas de hoje, o que você acompanha da produção atual? Ronald Augusto, por exemplo, tem travado um longo diálogo como a produção atual, além de estar sempre buscando as referências de poetas pretos, como é o caso do Oliveira Silveira.

Já respondi um pouco dessa pergunta anteriormente, mas penso que a nova safra de poetas no Rio Grande do Sul tem de ser olhada com carinho, pois existem nomes que estão trazendo mensagens e formas novas, que só enriquecem o meio literário. Sempre procurei manter contato e conhecimento com as novas gerações, que sempre estão trazendo maneiras de entendermos pela sensibilidade e pelo trabalho da linguagem o que acontece no mundo e com as pessoas. Quanto ao Ronald Augusto, ele realmente cumpre esse papel, tanto como poeta quanto como crítico da sua geração, valorizando grandes poetas que não eram devidamente levados em conta, como Oliveira Silveira, e com a produção literária poética que se faz aqui e agora, procurando entender o que realmente tem valor e expressividade. Acredito que ao acesso aos meios de divulgação de toda uma geração de mulheres (tínhamos poucas poetas, hoje são dezenas) e de etnias e de gênero, é um avanço para a nossa compreensão multicultural. Muitas dessas vozes estavam há séculos abafadas e agora estão vindo à luz trazendo suas verdades. É claro que o tempo, julgando inclusive os críticos, é que terá a palavra final, em termos de qualidade; mas acredito que muitos desses autores e autoras vencerão a barreira do tempo.

Gostaria de entrar mais especificamente construção poética. Vamos começar pelos livros Matemática para Centauros, A Flor Fugaz, O Súbito Vento e Sopa de Cebola. Numa primeira leitura, salta aos olhos a diferença estética entre eles. Você vai do soneto ao haicai, vais do poema lírico ao experimentalismo. São quatro livro muito distintos. Pode falar um pouco sobre essa distinção, já que, via de regra, como bem atestou Auden, o poeta persegue uma voz, uma linguagem específica que o identifique e o diferencie?

Para mim, escrever é experimentar. A literatura é tão rica, e a realidade é tão variável, que o poeta tem de se espantar diante do mundo. Esse espanto se materializa em imagens e formas que tentam traduzir o sentimento e a intelecção. Isso se traduz na fórmula que diz que o assunto procura a sua forma. Por isso, experimento formas variadas, do lírico e sentimental ao metafísico e abstrato. Do descritivo ao concreto. O texto reflete na sua forma o seu sentido. Penso que aqui cabe aquela fórmula da arquitetura: forma e função. Uso formas da tradição, como o soneto e o haicai, assim como poemas que procuram o ritmo da sua própria respiração, como nos poemas polimétricos, ou livres. Essa maneira de escrever faz com que, aparentemente, não haja unidade. Mas, quem se der ao trabalho de ler os meus livros verá que em cada livro procuro enfeixar textos que tenham afinidade. E, inclusive, quando temas e formas ultrapassam o primeiro livro, tornam-se cúmplices de outros, repetidos em trilogias ou tetralogias, como nos livros experimentais da série Lições de geometria fantástica, Matemática para centauros, Parábola para unicórnios. Ou livros que venho escrevendo sobre a viagem e a visão de mundo, como O rio eterno, A nitidez das coisas, Memórias da febre, Cidades condenadas. A poesia para mim, portanto, é um eterno inquirir sobre o inconsciente que nos preenche, e sobre as formas que nos informam.

O livro Sopa de Cebola dialoga muito com alguns aspectos de sua prosa e explora uma temática bastante discutida na poesia e na arte, ou seja, a infância. Lembro de ter lido em algum lugar uma declaração do Graciliano Ramos em que ele diz que um escritor escreve sempre sobre si mesmo, ainda que consiga se esconder pelos labirintos escorregadios da linguagem. Como é para você essa questão?

Este livro vem de um debruçar-se sobre a memória, a lembrança de momentos da minha infância e da minha juventude. Aqui, não de forma totalmente consciente – pois os poemas foram nascendo ao longo do tempo –, foram adquirindo formas narrativas próximas ao miniconto, pois eles vinham à minha memória como quadros, onde eu era um dos personagens. Significa isso que eu era um figurante entre outros, nem sempre o principal. Porém, as formas se resolviam mais poeticamente do que ficcionalmente. Os poemas até podem ter enredos, mas são principalmente quadros, fotografias com tendência à impassibilidade, nas quais, no poema, eu crio o movimento – igual acontece no cinema. Tendo a concordar com o mestre Graciliano Ramos, na medida em que tudo o que se escreve vem de uma fonte única, o inconsciente do escritor. Posso, no entanto, fazer algumas considerações a respeito. Nossas singularidades (familiares, genéticas) são alteradas pelas condições e pelo mundo em que vivemos. Esse mundo é diferente para cada um de nós e nos marca de forma indelével à medida que crescemos, da infância até a velhice. Essas marcas do mundo em nós, fazem toda a diferença.

Octávio Paz, no início do livro o Arco e a Lira, faz um longo testemunho sobre a força vital da poesia e do ato poético. Qual o sentido e o lugar da poesia nesse mundo fragmentado e poluído por ruídos por todos os cantos?

A poesia sempre terá o seu lugar entre os homens, na medida em que ela representa o fundamento, a base, do que é mais importante no relacionamento de cada pessoa com o mundo e com os outros seres. Representa a linguagem, a fala, o idioma, que conecta tudo o que existe enquanto processo civilizacional. Da palavra vem a cultura e as obras que se erguem sobre estamentos frágeis se não tiverem como liga, solda, o sol da palavra. Uma humanidade muda é impensável, assim como seres sem poesia se tornam opacos, sem vida interior, de certa forma, mortos-vivos. Só a alegria da poesia, da palavra, da música, das artes, pode iluminar e dar sentido à ciência, à concretude dos dias. Isso é, a vida humana, a vida de cada um de nós, só tem sentido quando alia o conhecimento prático ao sonho, sendo que só a poesia tem o poder, de pelo menos tentar, ser a manifestação de uma sensibilidade tocada pelo mundo.

Paulo Leminski, no poema Limite ao Léu, traz uma série de definição sobre a poesia e o ato poético em si. Usa dizeres de músicos, filósofos e poetas de várias tradições. Qual seria a sua definição sobre a linguagem e o ato poético?

A poesia é ligada ao sentimento, ou à alma, como queiram, mas se torna concreta enquanto fala ou escrita, e aí já é outra coisa, outra maneira, outra fala, outra fábula. Poesia e conhecimento, poesia e saber, quando trafegam juntos trazem ritmos novos, encontram morada no âmago do ser. Poesia e ciência, poesia e conhecimento, poesia e saber, não são antagônicos. Por isso, o estudar as formas e manifestações poéticas, nunca foram para mim um sacrilégio. O estudar o como se entende e o como se faz, não tira a “magia’ da poesia. Pelo contrário, traz novas matérias para que o inconsciente do poeta trabalha sobre a existência e sobre o tempo. Dessa mistura sempre nasce uma cosmogonia.

Não faz muito tempo perdemos Roberto Piva e Cláudio Willer, que são poetas que sempre admirei. Ambos deixaram contribuição importante para a nossa cultura. Sabe-se que ambos morreram em condições econômicas difíceis. Por que, na sua concepção, o exercício poético raramente dá meio de subsistência ao poeta?

A maior parte dos escritores no Brasil, e, não só no Brasil, tem profissões que os sustentam enquanto podem trabalhar, como um segundo ofício (mesmo que o levem extremamente a sério!), a literatura. São raros os que conseguem viver só de suas publicações (aqui teríamos que entrar no assunto econômico, em que parceiros dos livros têm sucesso em termos de ganho financeiro, enquanto os autores ganham, relativamente pouco, ou nada. Alguns, entre eles eu me incluo, ficam felizes quando não têm de pagar a própria edição. Eu venho de um tempo em que ser escritor não era uma escolha para a maior parte da sociedade. Tinha-se a ideia de que o escritor, poeta, era sempre um boêmio, um sujeito que vivia à margem da sociedade e que teria, necessariamente – como alguns, infelizmente, ainda tem (lembraria, também, do Luiz de Miranda) –, um mau fim. Enfrentávamos muito preconceito por isso. Se tínhamos outra profissão, tínhamos que provar, que mesmo sendo poetas, também éramos bons no que fazíamos na prática. Alguns, até, escondiam que eram poetas, escritores. Hoje tudo mudou, e ser escritor passou a ser um título almejado. Nunca tivemos tantos escrevendo e publicando, e alardeando que são poetas, contistas, romancistas, cronistas. Quanto a isso, houve é certo, um progresso, tirou-se o estigma do ofício de escritor. Mas tenho minhas dúvidas se melhorou a qualidade de vida daqueles verdadeiramente predestinados ao ofício de escrever.

Para terminar, como dizia minha avó, a única certeza da vida é a morte. Como você gostaria de ser lembrado?

Essa foi a mais difícil das perguntas a serem respondidas. Porque, obviamente, não temos certeza de nada quanto à imortalidade do corpo e da alma (com todo o respeito às pessoas religiosas), e, muito menos quanto à “imortalidade” das obras literárias. Quando visitamos as ruínas de velhas civilizações, que tiveram trabalho, canto, poesia, e que hoje são a poeira, a desolação e o esquecimento – vemos a precariedade de tudo o que somos. Sei que a literatura é uma forma que encontramos para encontrar em nós o que subsiste, não morre, a memória do que vivemos, ouvimos, vemos, e que não queremos deixar que pereça com os antigos, e, depois, que não morra quando da nossa própria morte. A história da literatura, por outro lado, mostra que livros escritos há mais de dois mil anos, como a Odisseia e a Ilíada, e a Bíblia, estão aí conosco, fundamentais. A literatura, assim, permanece por dezenas de gerações, quem sabe até o final do mundo. Mas uma coisa é a “literatura” como um corpo feito de ligas de metal precioso (os grandes gênios que a constituíram através dos séculos), e outra é a “nossa” literatura individual, ligada ao momento em que vivemos, ao mundo que temos aqui e agora, precária. Terá ela a possibilidade de respirar nos séculos vindouros? Encontrarão nela, as gerações futuras, alguma coisa que as emocione, as leve a estudar e pensar? Não sei. Não sei, portanto, como gostaria de ser lembrado, se é que serei lembrado, como pessoa, como ser humano, como cidadão, como escritor. Talvez como uma pessoa que dedicou o melhor de si para estar entre as pessoas, ver as paisagens do mundo, e, nalgumas vezes, traduzir tudo isso em palavras. Que o vento as leve.

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