Indenização por terra nua em demarcações é inconstitucional

Em artigo e nota técnica, Assessoria Jurídica do Cimi analisa inconstitucionalidades e riscos da proposta de condicionar demarcações de terras indígenas a indenização prévia por terra nua

Manifestação indígena em Brasília (STF), junho de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Por Paloma Gomes, Nicolas Nascimento e Rafael Modesto, Assessoria Jurídica do Cimi.

Publicado originalmente no JOTA.

No último dia 7 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Tema 1031, que tem como objetivo definir a interpretação da Constituição na parte que trata da demarcação das terras de ocupação tradicional indígena.

Com dois votos já proferidos até aquela data, um a favor e outro contra a tese do marco temporal, o voto-vista foi apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes. Além de ter acertadamente afastado o marco temporal, o ministro apresenta elementos novos que exigem uma profunda reflexão, a exemplo da viabilidade constitucional da compensação de áreas de ocupação tradicional por outras equivalentes e da indenização pela terra nua, esta como requisito prévio para a posterior posse plena aos indígenas.

Antes, no entanto, vale resgatar uma passagem do documentário Os direitos indígenas na Constituinte, que desnuda os bastidores da Assembleia Constituinte e evidencia que o marco temporal saiu derrotado e jamais foi inserido na Constituição brasileira pelo constituinte originário. Vejamos a transcrição de trecho do documentário:

No segundo turno de votação em plenário, a mobilização dos índios, principalmente vindas do Nordeste e Kayapó, conseguiu que se eliminasse do projeto um dispositivo que considerava de propriedade dos Estados as terras de extintos aldeamentos indígenas. Esse dispositivo, se fosse mantido, impediria a luta de muitas nações indígenas, pela recuperação de áreas de aldeamentos ilegalmente extintos no passado[1].

Foram 497 parlamentares constituintes[2], que fizeram aprovar o texto do artigo 231 da Constituição, com apenas 5 votos contrários. Isso garantiu aos indígenas o direito à demarcação e à especial proteção de suas terras, não sendo admitida, em função da tradicionalidade, a compensação por áreas similares ou equivalentes, ou mesmo a validação dos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras originárias. Também não foi admitida a exploração das riquezas naturais existentes em terras indígenas por terceiros, mesmo que de boa-fé, bem como foi definido que o usufruto é exclusivo das comunidades.

Deste modo, a tese anacrônica do marco temporal, diante dos votos já apresentados desde o início do julgamento pelo STF, tende a submergir junto com o assimilacionismo, o regime tutelar e a ideia de integração dos indígenas à “comunhão nacional”. Como ficou devidamente registrado nos anais da Constituinte, o texto constitucional foi elaborado para que todas as terras fossem demarcadas num prazo de cinco anos a partir da sua promulgação, inclusive aquelas de aldeamentos extintos.

Embora o marco temporal já se mostre absolutamente indefensável perante a Corte e a sociedade brasileira, o texto constitucional foi flexibilizado por interpretação que não se harmoniza com o que foi fixado em 1988, nos seguintes itens da tese proposta pelo vistor, o ministro Alexandre de Moraes:

IV – Inexistindo a presença do marco temporal CF/88 ou de renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada que tem haver por objeto a posse, o domínio, ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nela existentes, assistindo ao particular direito à indenização prévia, em face da União, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua, quanto às benfeitorias necessárias e úteis realizadas;

V – Na hipótese prevista no item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância;

Não obstante a busca do ministro pela harmonização de direitos e a pacificação de conflitos, a sua tese, em verdade, permite que a vontade constituinte seja modificada e restringida por processo hermenêutico. E não só isso, ela rompe com a jurisprudência há muito firmada no plenário do STF. Isso porque a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 já declaravam nulos e sem efeitos jurídicos os títulos incidentes sobre áreas indígenas, nos termos dos §§ 1º e 2º do seu art. 198. E a Carta de 1988 manteve essa previsão, com ainda mais pujança, no seu art. 231, § 6º.

Além disso, o ministro Alexandre de Moraes já havia se posicionado de forma contrária à indenização das terras de ocupação tradicional indígena, quando do julgamento das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362/MT e 366/MT, em 2017, seguindo a jurisprudência do STF:

Não é possível, insisto, falar em terras devolutas ocupadas por silvícolas. Ou são “devolutas”, e aí seriam do Estado. Ou são “indígenas”, e aí seriam da União.

Dessa forma, se não cabe falar, no caso, em terras devolutas, consequentemente, a propriedade, o domínio, não passou para o Estado em momento algumEsse domínio foi caracterizado e, posteriormente, consagrado da União, e a União não precisa indenizar, seja o Estado, sejam particulares, pela utilização das suas próprias terras para uma destinação constitucionalmente prevista, que é o reconhecimento dessas áreas indígenas (ACO 366, acórdão-voto Alexandre de Moraes, 2017, pg. 22).

O art. 231, no seu parágrafo 6º, é taxativo ao negar validade aos referidos títulos de propriedade e ao estabelecer que “[s]ão nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicosos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”. O texto constitucional determina ainda que a nulidade e a extinção dos títulos não geram “direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”, mesma previsão do art. 62 da Lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio), ainda vigente.

Não há nenhuma possibilidade de romper com a vontade do Constituinte de 1988 e permitir a indenização pela terra nua. A nossa Carta Política já tem um caminho aberto para possível reparação a terceiros em função das demarcações, caso exista boa-fé na ocupação. O que ela não permite é que a União pague, na forma de indenização, por um bem que já é de sua propriedade.

Ato contra o marco temporal em junho de 2023, em Brasília (DF). Foto: Hellen Loures/Cimi

Ato contra o marco temporal em junho de 2023, em Brasília (DF). Foto: Hellen Loures/Cimi

Isso significa que, por serem as terras indígenas de propriedade da União, além de não ser possível a indenização pela terra nua, não seriam elas passíveis de desafetação para compensação, pois seguem a mesma regra do usufruto exclusivo, prevista no §2º do art. 231. Também vedam essa possibilidade os institutos da indisponibilidade e imprescritibilidade do direito territorial indígena, bem como da sua inalienabilidade, segundo o que consta do §4º do mesmo artigo.

De outro lado, se fosse o caso de assegurar indenização a terceiros de boa-fé, como pretendeu o ministro, poder-se-ia aventar a possibilidade de indenização por evento danoso, sustentada no art. 37, §6º, da Constituição Federal, o que não conflitaria com o texto constitucional e nem com a jurisprudência do STF. O dano se daria em função do ato de titulação, doação ou estímulo ao apossamento de terras indígenas, feito pelo agente público, gerando a responsabilidade objetiva dos estados e da União.

No mesmo sentido que apontamos, é o voto do ministro Edson Fachin na ACO 1.100, referente à demarcação da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng, de Santa Catarina – povo que teve suas terras tradicionais entregues pelo estado e pela União a terceiros:

A possibilidade de indenização por ato ilícito na venda de terras a non domino, em ação própria de natureza eminentemente reparatória, é questão a ser amadurecida pela doutrina e pela jurisprudência, mas não aparenta colidir, em meu sentir, com a vedação da concessão de indenização pelo fato de encontrar-se a área inserida em terra indígena (fls. 64 do voto) – grifos no original.

Do teor do art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988 que ampara a indenização por evento danoso, temos que “[a]s pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Não há nenhuma possibilidade de romper com a vontade do Constituinte de 1988 e permitir a indenização pela terra nua. A nossa Carta Política já tem um caminho aberto para possível reparação a terceiros em função das demarcações, caso exista boa-fé na ocupação. O que ela não permite é que a União pague, na forma de indenização, por um bem que já é de sua propriedade.

Ao reconhecer a legalidade das ocupações por terceiros e, ao mesmo tempo, sustentar que o direito indígena é declarado, congênito e pré-existente, o vistor faz ocorrer uma espécie de sobreposição de direitos. Na lógica do voto-vista, em caso de inexistência de condição orçamentária da União para pagamento prévio da terra nua, ademais da vedação constitucional, o risco de haver conflito em função do reconhecimento de dois direitos onde só caberia um é enorme. Essa solução não tem as condições suficientes de fazer reinar a paz no campo, mas tão somente de criar risco de grave conflito possessório a envolver indígenas e particulares.

Se a solução da matéria tiver que passar inevitavelmente pelas indenizações, essa resolução deve ocorrer em uma modalidade que não torne ainda mais moroso o processo de demarcação, que resguarde o §6º do art. 231 da Constituição, que não conflite com a jurisprudência do STF e, por fim, que impeça conflitos em função de sobreposição de direitos.

Deste modo, a fim de resguardar os direitos firmados na Constituinte, seria razoável, portanto – e se fosse o caso –, a indenização regulada pelo art. 37, §6º, da Constituição Federal, a ser apurada em procedimento administrativo ou judicial próprio, fora do processo demarcatório, mas nunca aquela da terra nua.

Clique aqui para acessar a nota técnica da Assessoria Jurídica do Cimi.


[1] Documentário: “Os direitos indígenas na Constituinte”. Realização Cimi – Conselho Indigenista Missionário. Apoio: Coordenadoria Ecumênica de Serviços – CESE. Produção: Vídeo Lontra. 1987/1988. Acervo Cimi.

[2] Foram 594 Parlamentares constituintes, sendo 559 titulares e 35 suplentes, assim representados:512 Deputados constituintes, sendo 487 eleitos no pleito de 15 de novembro de 1986 e 25 suplentes; 82 Senadores constituintes, sendo 49 eleitos no pleito de 15 de novembro de 1986, 23 eleitos em 1982 e 10 suplentes – vide mais em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/deputados-constituintes

 

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