Por Rafael Modesto dos Santos.
Os povos indígenas no Brasil não conquistaram apenas dois artigos na Constituinte de 1987/1988 – art. 231 e 232. Os povos originários das terras brasílicas conquistaram muito mais que isso, pois ambos artigos da Carta Política de 1988 atendem as necessidades mais íntimas, no âmbito dos usos e costumes, de cada comunidade, de cada povo.
O constituinte originário foi convencido, pelos próprios indígenas, que seu direito territorial devia ser constitucionalmente assegurado. Adiante, o constituinte originário foi arrebatado pelos povos originários pela sua força e pela sua cosmovisão, ao que fez constar do texto constitucional, na literalidade, pralém da oralidade, o direito escrito ao direito consuetudinário.
No art. 231 é fácil identificar a garantia da manutenção do bem viver indígena e da edificação de 305 realidades diferentes, com modos próprios de cultuação de divindades, de mitos, de acidentes geográficos que lhes são sagrados; é fácil de constatar a vontade soberana do constituinte originário de fazer o Estado do Brasil respeitar as 305 formas de “organização social” dos índios: por isso a “Constituição Cidadão” de 1988 também ficou conhecida como “Constituição do índio”, porque dentro do seu art. 231 existem 305 diferentes Constituições, com 305 formas diferente de cosmovisões, além das suas formas de direito costumeiro, de seus sistemas políticos próprios, sistemas econômicos – dos mais simples aos mais complexos – e sistemas sociais notáveis, com hierarquia religiosa, política, feminina, etc. Também garantiu aos índios o seu direito de resolver por seus usos e costumes o que lhes for considerado como ilícito penal.
Contudo, nossa Constituição Federal de 1988 não foi compreendida pela sociedade brasileira e, ademais – pior – não foi compreendida pelo sistema jurídico e judiciário. Ou, quem sabe, foi mal entendida. Opinamos pela falta de clareza e esquecimento, ou quem sabe pela pobreza cultural da nossa educação jurídica.
Dizemos isso porque nos deparamos com uma apreensão de indígenas por cortar um pé de taquara[1] (bambu[2]) numa área gravemente afetada por uma hidrelétrica. O local é caracterizado como de preservação ambiental, mas que sofreu largo impacto do dito empreendimento. É local de os Guarani em tempo não muito longe no passado foram expulsos. É inegável que a área abrange o território de ocupação tradicional dos Guarani (art. 231, §1º).
Entenda o caso
Em nota, o Conselho Indigenista Missionário Regional Sul denunciou o caso:
Os cinco indígenas presos em flagrante delito pela Polícia Ambiental do Estado do Paraná teriam mesmo cometido crime ambiental?
Não! Não cometeram crime ambiental e o ato de prisão, vale dizer, é ato de expressiva deselegância em face da Carta Política de 1988, pois a gravidade afeta quem mais a CF/88 procurou preservar – os indígenas –, o que atesta a violação direta contra o Estado Democrático de Direito.
Estamos a falar de uma área com bambus num cenário artificial criado por um empreendimento de expressiva envergadura e impacto ambiental.
Os indígenas, nos termos da Lei Maior, se utilizam, se utilizaram e vão continuar se utilizando dos recursos naturais disponíveis para sua subsistência física e cultural; o bambu era para ritual na Casa de Reza; o único crime é alegar crime a quem deveria nos educar sobre respeito ao meio ambiente equilibrado e honestidade ambiental. Estamos a falar de uma área com bambus num cenário artificial criado por um empreendimento de expressiva envergadura e impacto ambiental.
Do relaxamento da prisão dos cinco indígenas
Ante o constrangimento ilegal e o encarceramento dos cinco Guarani, os indígenas foram colocados em liberdade após audiência de custódia – “deverão responder ao processo por crime ambiental em liberdade” (sic). Também tiveram a fiança retirada, já que a condição de hipossuficiente comoveu o juízo analítico da 5ª Vara Federal de Foz do Iguaçu-PR, não antes em obstar condições:
Destarte, não se fazendo presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, aliado ao fato de que o valor da medida acautelatória não pode revestir-se, na prática, de obstáculo à liberdade (…) entendo possível a substituição da medida cautelar imposta como requisito para a concessão da liberdade provisória.
Desta forma, SUBSTITUO o pagamento da garantia arbitrada pela Autoridade Policial pelas seguintes condições:
- a) deverão comparecer perante este Juízo ou perante a Autoridade Policial sempre que necessário, sendo intimados por intermédio de seus Advogados;
- b) não poderão se ausentar da aldeia sem prévia solicitação de autorização a este Juízo;
Significa dizer, sem mais, que os indígenas cometeram crime algum em cortar a taquara? Mais uma vez não! Estão exercendo o que está previsto no art. 231 da Constituição Federal de 1988. Se valeram de um direito constitucional que lhes é assegurado – foram soltos, mas estão penalizados com as condições dadas em troca da sua liberdade de ir e vir (comparecer frequentemente em juízo e não se ausentar da comunidade).
Depois, a taquara que para nós é um expediente natural, quase sem muita utilidade prática, para os Guarani faz parte do uso tradicional, do trato cotidiano. A taquara, ou bambu, é utilizada nos sues utensílios de pesca e caça tradicionais, nas suas engenharias e construções, é algo que a cultura indígena adaptou e entranhou como instrumento necessário seu.
Adiante, tem-se que a criminalização dos indígenas, ademais de não encontrar guarida na legislação brasileira, passa por uma superproteção do sistema econômico e político, o que coloca o Estado contra as leis para dar garantia a uma ordem vazia e para ninguém.
Ao contrário, com esse tipo de ação coercitiva, o Estado garante apenas o aumento do preconceito, da marginalização dos indígenas e da utilização do sistema judiciário-carcerário contra quem nunca cometeu crime algum contra o meio ambiente, ao inverso, são os povos tradicionais os que mais cultuam esse totem sagrado indianista – a taquara.