Os feminismos islâmicos e o necessário rompimento com as bases liberais

Foto: Chan Factory em Pixabay

Por Gilliam Nauman Iqbal.

Palavras Chave: Feminismo – Liberalismo – Feminismo Islâmico – Política – Movimento Sociais.

O pensamento político moderno tem sido a base ocidental para a teorização e práticas políticas ao redor do mundo.

Romper com essa base de pensamento, pode ser a possibilidade de criação de instituições realmente libertadoras ao feminismo, pois o liberalismo é um sistema que viabiliza vários mecanismos de opressão e que afetam, direta ou indiretamente, os diversos grupos de mulheres.

A forma como o pensamento moderno concebe o que seria razão traz em seu corpo conceitual aquilo que seria a imparcialidade como principal característica de um pensamento racional. Mas ser imparcial pressupõe abrir mão de seus interesses e particularidades, logo compromete também a sensação de pertencimento e identidade. Pensar em um conceito de razão, suprimindo o que sugere o conceito de imparcialidade, é algo completamente ilusório e opressor do pensamento.

Se pensarmos o real conceito de razão, sugerido pelo pensamento moderno, é possível tatear a ideia de que este conceito busca planificar diretrizes universais que expliquem todos os fenômenos dentro das sociedades em detrimento das diversas particularidades. Pode soar violento, mas estruturar um conceito em tais bases, significa eliminar as mais diversas experiências e trajetórias que conectam pessoas em seus processos identitários.

É a partir do estabelecimento dessas diretrizes liberais, e que se propõem universais, que outros parâmetros são criados como civilidade x barbárie, bom x mau, público x privado, e até liberdade x opressão.

Na criação desses parâmetros, a esfera pública e privada norteia os agentes sociais de controle. O pensamento moderno designa ao Estado, tudo que seria de foro público e desta forma, deve adotar uma postura pautada em pensamento racional e imparcial, possibilitando a criação de políticas excludentes, que desconsideram as experiências individuais e evidenciam as diferenças. Os particularismos e aspectos individuais da existência, caberiam à esfera privada, apartado mesmo da dinâmica política. Como consequência, cria- se um Estado excludente, que estabelece políticas que contemplam um modelo de indivíduo.

O que estaria fora do escopo público e, portanto, fora dos interesses das representações políticas, abrange em quase sua totalidade as necessidades pertinentes às mulheres. É na esfera privada que encontramos as fronteiras do universo feminino, pois o pensamento ocidental racional, imparcial e de base liberal, exclui as necessidades de mulheres da vida pública, e exclui ainda mais, quando desconsidera os processos identitários dessas mulheres.

Ainda que as reações aconteçam em resposta às políticas que padronizam um modelo de cidadão a ser beneficiado pela esfera pública, os movimentos precisam entender os mecanismos que combatem e quais as bases das práticas políticas. Os movimentos sociais no Ocidente, como práticas políticas, também se baseiam nos mesmos conceitos liberais que os excluem. Eis a necessidade de análise da engrenagem liberal, para com ela romper e tomar novos rumos.

A partir dessa reflexão, penso que o movimento feminista necessita visualizar suas limitações entendendo que toda sua operacionalidade ocorre em um arcabouço teórico liberal. Mesmo que tenhamos a necessária fragmentação traduzida em feminismos, e estes buscam considerar as experiências em grupo para instrumentalizar suas lutas e reivindicações, ainda assim, os mesmos caminham na direção das instituições e práticas idealizadas pelo liberalismo.

A grande dúvida que ocorre é se esse fenômeno também foi perversamente calculado por esse sistema, já que muitos movimentos sociais, e principalmente o movimento feminista, acaba se tornando um instrumento de ação do liberalismo, ou se apenas segue um curso natural.

Quando os movimentos feministas internalizam os parâmetros liberais, e isso ocorre quando pensamos conceitos como os citados no início do texto, como civilidade x barbárie, opressão x liberdade, criam-se ações excludentes dentro desses movimentos. Assim, mulheres que estão fora da caixa dos parâmetros liberais Ocidentais, não encontram identificação e aceitação no movimento feminista. Este é o caso das mulheres muçulmanas.

Há ainda um outro fenômeno, que sob a luz desta análise, fica claro como o movimento feminista se torna uma arma do Ocidente liberal no desvirtuamento da luta de uma mulher muçulmana. Obviamente que, as pautas do movimento de mulheres que pertencem às sociedades Islâmicas, tem reivindicações de acordo com suas vivências nessa organização social e as diretrizes dos movimentos feministas dentro do Ocidente, acabam por não atender essas pautas. Fica claro que o movimento feminista nos moldes liberais causa distúrbios em alguma instância, na organização desses movimentos, o que evidencia mais uma vez, o calculismo liberal no desmantelo do Oriente.

Um terceiro fenômeno ocorre e este parte da observação de recortes no Brasil. Nos últimos anos, foi possível perceber uma maior visibilidade de mulheres muçulmanas na sociedade brasileira. Junto a essa visibilidade despontam as muçulmanas que, na busca pela aceitação de sua condição de revertida ou nascida em berço islâmico enquanto indivíduos sociais participativos, entrem na luta pela pauta das politicas públicas que contemplem o respeito à diversidade religiosa, o respeito aos símbolos identitários, e há uma luta mais silenciosa que diz respeito aos códigos comportamentais nos quais estas mulheres estão inseridas, e que está completamente fora da caixa ocidental. Isso remete, por exemplo, a uma postura de distanciamento de homens nos espaços públicos, nas linguagens relacionais como, o cumprimentos sem o tocar no corpo desta mulher, a liberdade da vestimenta, que pressupõe recato e muitas vezes, esse código é ferido no mercado de trabalho (isso quando encontram um espaço nesse nicho) e vários outros pontos que não entram na esfera pública, exatamente porque, segundo o ideal liberal, não é papel do Estado a interferência naquilo que é considerado nesta sociedade, pertinente à vida privada.

Ainda sobre esse movimento de mulheres islâmicas brasileiras, é necessário observar se este não se deixa deformar pelas bases do pensamento liberal, tal qual os demais movimentos existentes no Brasil e em outros lugares do mundo.

Há pouco tempo, tivemos a situação do Afeganistão, em que pouco se considerou a relação destas mulheres com as bases islâmicas de seu país, sobrepondo-se a isso, o heroísmo ocidental. Nesse contexto, o movimento feminista buscou muito mais um discurso alinhado ao imperialismo opressor deste país (o que é vexatório), do que a análise da trajetória das afegãs.

A composição das mulheres muçulmanas no Brasil, é em sua maioria, formada por mulheres pretas e periféricas. Há uma parcela “branca” e mais abastada socialmente, algumas de ascendência árabe. Cabe a este pequeno movimento, cuidar em fazer essa análise, observando que as experiências individuais e trajetórias dessas mulheres, não são homogêneas.

Há de se considerar as questões ético- raciais, as realidades sociais, as tradições familiares e os elementos em comum, como a religião, o preconceito que sofrem, em maior ou menor grau, e isso é determinado por fatores raciais e sociais, o símbolo identitário dessas mulheres, como o hijab, e outros elementos. Logo, temos aí o desafio de não criar representações que se coloquem como forma para as lutas das muçulmanas brasileiras, a não tentativa de qualquer discurso salvacionista, recaindo na prática liberal, e de não permitir imposições de modelos e padrões para um grupo tão heterogêneo e que traz nessas diferenças, uma complexidade que exige o rompimento com o pensamento liberal e seus elementos, para reais conquistas.

*Gilliam Nauman Iqbal é graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão, pós graduada em Sociologia das Interpretaç?es de Povos e Comunidades Tradicionais, estudante de Fotojornalismo na Universidade Cruzeiro do Sul, presidente do Instituto de Estudos e Solidariedade para a Palestina Razan al-Najjar, muçulmana, feminista, ativista política e pró Palestina.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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