Os fantasmas submersos. Por Carlos Weinman.

Imagem Ilustrativa. Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

O sol estava perdendo a sua força, parecia cair do horizonte, era nada menos que o crepúsculo anunciando a chegada da noite, já não havia mais a luz natural para iluminar o  percurso de uma combi, cujo apelido carinhoso indicava a esperança dos seres no seu interior, fazia frio, ventava, um zunido estranho que vinha da mãe natureza soava como natural e, ao mesmo tempo, sobrenatural. A tensão tornou-se maior quando, repentinamente, a combi começou a balançar, o pneu dianteiro havia estourado, todos ficaram aflitos, a esperança e a coragem haviam dado espaço ao pavor.

Ulisses teve muita dificuldade para controlar o veículo. Do mesmo modo, a calma e a serenidade estavam longe dos espíritos dos viajantes, ainda mais pelo motivo de estarem sobre a ponte do Rio Guaíra. Embora o rio demonstrava grande exuberância e beleza, o único sentimento era a inquietação provocada pelo medo, por isso, a beleza havia se convertido em pânico, devido ao problema com o pneu, o que dava a impressão de não serem apenas quatro quilômetros de percurso, mas sim, milhares.

Quando a situação aparentemente estava contornada, saindo da ponte, um segundo pneu estourou, dessa vez o traseiro, o que levou a um terror generalizado, faltou pouco para o veículo tombar. Para piorar, os viajantes tiveram o pressentimento que estavam sendo acompanhados pela presença de fantasmas, o que gerou mais terror, quando finalmente Ulisses parou a combi, no acostamento, Perséfone imaginou o número sete no para-brisa, não sabiam se era apenas imaginação ou o resultado do pavor, o fato era que o pensamento do número e um sentimento de dor assombrava suas mentes, foi quando, de repente, Inaiê falou:

Acho que são sete fantasmas, assustadores, revoltados, mas sufocados por uma entidade muito mais aterrorizante, que faz todos silenciarem, impedindo qualquer manifestação, ameaçando a segurança para qualquer ser humano ou ser que ainda seja capaz de se rastejar sobre a terra.

Ulisses – É mera impressão de vocês, não há nenhum número sete sobre o para-brisa, apenas passamos por um susto muito grande. Agora temos que achar um lugar para descansar e trocar os pneus.

Inaiê – Olha só! Para nossa sorte, do outro lado da rodovia tem uma borracharia, vamos lá!

Ulisses foi buscar o auxílio, enquanto os demais ficaram aguardando, depois de meia hora, o resgate chegou, enquanto a combi estava na borracharia, os viajantes foram para um restaurante, encontraram uma mesa, do lado esquerdo havia uma parede, onde estava estampado uma parte do poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Adeus, a Sete Quedas”. Perséfone muito curiosa começou a ler em voz alta para todos:

Perséfone: Sete quedas por mim passaram,

E todas sete se esvaíram.

Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele

A memória dos índios, pulverizada,

Já não desperta o mínimo arrepio.

Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,

Aos apagados fogos

De cidade real de Guaíra vão juntar-se

Os sete fantasmas das águas assassinadas

Por mão do homem, dono do planeta.

Deméter: Esse poema fala muito, parece com a nossa sensação na combi, as sete quedas, são como os fantasmas que imaginamos, elas foram literalmente afogadas, surgindo a imensidão do silêncio e da calmaria das águas, resultante da grande bacia do rio, originária do cálculo,  da engenharia,  antes disso, diziam que as cachoeiras das sete quedas tinham um volume tão grande de água, que as pessoas podiam ouvir, mesmo estando vinte quilômetros longe.

Roberto – Podemos fazer uma analogia com a história humana, dado que quando não há memória, os fatos não são contados ou ganham outras versões, não há barulho, só o silêncio das vítimas, sufocadas ou submersas pela grande parede social.

Perséfone – O rio parece lindo como está! Contudo, sabendo dessa história a beleza traz a tristeza de uma memória, parece ser um apagão, uma violência contra a natureza e contra a história de muita gente.

Roberto – Por isso diria que por detrás do silêncio há muitas memórias reprimidas, que querem emergir, mas são sufocadas pela força do volume das águas, imagine tudo o que passou por aqui, pois antes da vinda dos europeus, haviam povos indígenas ou melhor dizendo, a forma como começaram a ser chamados pelos que buscavam riquezas nesse território, o fato é que pessoas viviam nesse lugar, olha só o nome Kwaira, Guaíra, significa lugar escondido, de difícil acesso, até que um dia chegaram os espanhóis e tomaram o lugar, depois tivemos outras ações por parte dos portugueses, o que culminou com seu domínio a partir de 1620, em 1872 esse território passou ser brasileiro, agora imagine tanta história, tantas vidas humanas e dos demais seres da natureza que passaram por aqui.

Inaiê – Eu me sinto uma moradora de um país que ainda não conheço!

Roberto – Por qual motivo?

Inaiê – Nosso país tem tantas histórias, conheço muito pouco. Para se considerar parte de um lugar você tem o desafio de trazer as suas memórias, por mais doloridas e controversas que sejam, um povo sem memória é uma multidão, dispersa, onde qualquer coisa serve, até mesmo as relações de estranhamento, de negação.

Ulisses – Concordo, a nossa identidade, que diz o que somos está ligada com a memória de nossa gente, quando não valorizamos a história, mergulhamos em um mundo egocêntrico, onde tudo o que importa é a satisfação individual, por isso temos o desafio de percorrer, buscar as raízes de nosso povo, da nossa gente.

Deméter – Em outras oportunidades passei por aqui, mas nada disso havia chamado a minha atenção, agora vejo que temos muito que aprender, pois se não buscarmos conhecer a nossa gente, nossa história, o nosso lugar, qualquer versão, por mais degradante, reducionista que seja será contada, acredito que determinadas visões poderão ser levadas ao extremo, se não buscarmos constantemente resgatar a memória da nossa gente, chegando ao ponto de um nazista poder ser cotado para o  Prêmio Nobel da Paz ou não ser considerado tão ruim ou violento.

Perséfone – Ainda não entendi o motivo das Sete Quedas ter desaparecido ou a necessidade de ter feito isso com a natureza.

Ulisses – Para entendermos isso, é importante ver que nos anos 60 o Brasil, bem como outros países da América do Sul buscavam por fontes energéticas, o que não é muito diferente de hoje, juntamente com essa ideia veio a possibilidade de fazer uma grande usina hidrelétrica, juntamente com o Paraguai, o que começou com um acordo em 1973, ano em que foi assinado um tratado para construção de uma gigante, o que impunha vários sacrifícios humanos e naturais, alguns diziam, na época, que seria o maior crime ambiental do século. Nesse cenário, muita gente não acreditava que as Sete Quedas desapareceriam, mesmo os idealizadores do projeto deixando claro. Quando a usina de Itaipu começou entrar em operação, o Rio Paraná levou, pelo que contam, 14 dias para encher toda área do lago, foi o fim das cachoeiras, embaixo dessas águas há muita memória e suplício!

Perséfone – Olha só que interessante essa outra parte do poema de Carlos Drummond de Andrade:

Sete quedas por nós passaram,

E não soubemos, ah, não soubemos amá-las,

E todas sete foram mortas,

E todas sete somem no ar,

Sete fantasmas, sete crimes

Dos vivos golpeando a vida

Que nunca mais renascerá.

Deméter- Carlos Drummond de Andrade nesses versos descreveu muito bem essa situação, sobre a memória que seria retirada, as sete quedas desapareceram, juntamente com muita história, muita biodiversidade, agora resta a pergunta: será que o chamado progresso humano deve custar tanto? Não existem outras possibilidades ou caminhos?

Diante dos questionamentos de Deméter, os viajantes ficaram pensando, conversando com as pessoas do lugar, muitas já não lembravam mais, muitos questionamentos vieram a mente dos viajantes, tendo espaço para uma certeza que causa terror ao exercício do pensamento, isto é, o humano não projeta apenas nas suas relações com seus semelhantes a estranheza, pois essa é ampliada nas relações com os demais seres, com a natureza, com o universo. Além disso, a memória costuma ser apagada juntamente com a identidade de pessoas que se convertem em máquinas e engenhocas ou ao menos são subjugadas a tais artifícios.

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Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

 

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