Outras Palavras lança série de textos para celebrar escritor cuja obra parece cada vez mais atual, na Cultura e Política
“Um asco aumentara pelo telegrafista. Oh! os homens! Ela conhecia-os bem! Tinha assistido, na sua crucificação, ao desfile em pelo de todos os exemplares”
Por Oswald de Andrade.
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No âmbito da série “Oswald 60?, Outras Palavras publica semanalmente, em formato de folhetim, a trilogia “Os Condenados”, obra perturbadora que Oswald de Andrade escreveu entre 1922 e 1934. Acesse aqui os capítulos já publicados
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Na sequência anterior, Alma termina os sonhos de infância. O avô a aguarda para assistir à passagem do Ano Novo. Enquanto isso, ela está sozinha naquela noite ruidosa. Dagoberto e João discutem sobre literatura e trocam confidências. Alma novamente fica grávida e decide ter o filho. Mauro reage com violência. Abandonada, a jovem passa a se encontrar com o telegrafista. O velho Lucas sofre ameaça de perder seus bens. João está num idílio, quando sabe da gravidez da jovem. Ele viaja a Santos. O velho está em crise. Mauro é denunciado à polícia. João mente para Alma dizendo que o cáften foi preso. Ela desaba em prantos. O avô decide expulsá-la de casa. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60”)
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Saíra pelas ruas, obedecendo o anátema da véspera. A manhã era toda cinza no ar, no céu, na gente.
Chegou à estação da Luz. Teve uma vaga repulsa em pensar que podia encontrar a figura importuna do telegrafista. Queria estar só, com a sua tragédia estalada.
No Jardim Público aberto, a natureza, despenteada e matinal, arfava ao vento. Atravessou-o em reta; saiu. Encaminhou-se por esquinas populosas e pobres. Estava no Bom Retiro. Desceria até lá embaixo, até as várzeas finais da cidade. Levava, no seu bojo crescido, o filhinho que vivia, que seria seu amigo.
Bondes passavam pejados de populares, garotos brincavam em bandos maltrapilhos, carroças iam lentamente.
Chegara a uma rua sem calçamento que se perdia no campo. Penetrou numa estrada terrosa aberta na relva pisada. Em sua frente, desenhou-se a sinuosidade do terreno onde corria o Tietê. Num porto quieto, carroças recolhiam areia. E o rio apareceu de vidro, à flor das margens calvas.
Vacas paravam, na distância. Um cãozinho ladrou.
A cidade mudara de silhueta. Um vento ríspido agrediu-a. O grande Jesus da torre tutelar do Sagrado Coração dava-lhe as costas. Pensou vagamente em se matar, por vingança, em aparecer boiando nas águas glaciais, como uma Ofélia de gravura.
As carroças enchiam-se lentamente de areia peneirada. O quadro simples de rude trabalho atraiu-a. Teve uma vontade de viver assim, entre animais soltos e gente descalça.
Um cheiro malsão, vindo da embocadura dos esgotos citadinos, persistia.
Voltou. Refez o caminho andado. Não iria mais para casa. Uma mão persuasiva afastava-a do refúgio antigo, como uma condenação, pelos ombros. Não tornaria mais. Alcançou as ruas populosas. Estava perto do Jardim.
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E, de repente, sobre um imenso muro vermelho, desenhou-se, na palidez do dia, uma silhueta lépida de soldado. Trazia uma carabina a tiracolo e andava para cá e para lá. Logo, além, na continuidade intérmina do muro, outro soldado apareceu como o primeiro, caminhando também, vigilante e sólido. Eram os fundos da cadeia da Luz.
Aqueles dois soldados renovavam-se ali, dia e noite, para atirar, implacavelmente, sobre os condenados que quisessem fugir.
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Tomou depressa um bonde que passava para a cidade. E partiu à procura do bordel onde Mauro decerto estaria dormindo com aquela viciada da Marguerite.
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Ele fê-la entrar no quarto elegante em que morava, sobre o tumulto de um restaurante noturno na rua Conselheiro Crispiniano.
À claridade fechada, ela viu sobre o leito exíguo, recoberto por uma colcha felpuda e multicor, um cãozinho cinzento e enorme, estirado nas duas patas tranqüilas. O animal, sem erguer a cabeça, balançou a cauda contente.
Mauro foi acariciar-lhe a pele luzida e grossa.
Ela examinou retratos seminus de mulheres, em leque, sobre o leito. Sentada a um canto, os seus olhos esfomeados pediam. Ele deu-lhe duas pratas para ir almoçar.
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Passaram o dia juntos, fazendo malas. Ele partia na manhã vindoura para a casa de um tio materno em Guaratinguetá. E, para dormirem, tomou um outro quarto da casa de cômodos mobilados.
Havia apenas uma lâmpada perdida num desmesurado abat-jour. O quarto atufava-se de estofos, de móveis, de pequenos nadas sutis e amáveis. Sobre o penteador de três espelhos, fazia parada todo um arsenal de mistificações da beleza. Ela apreciou, num vago deslumbramento, as escovinhas para maquilagens, de diversos tamanhos, os pentes recurvos, os cosméticos de todas as cores, os boiões de perfume de todos os estilos, os cremes, os aparadores complicados das unhas.
– Nada disso presta – comentou Mauro deitado, em cuecas de seda. – Só há de bom artigo alemão. E, durante a guerra, não vem.
Ele conservava o seu prestígio integral de belo macho, feito na intimidade das prostituições.
E Alma, vendo-o tranqüilo, forte, como se nenhuma sombra pesasse sobre os seus dias, ficou acordada, pensando.
Um pendulozinho oculto palpitava na sombra. Os seus olhos haviam-se habituado ao escuro. Ela percebia a dobra longa das cortinas, as portas talvez. Claridades estilizavam-se pouco a pouco.
Vinham do interior da casa risos macabros. Eram os fregueses que chegavam e partiam. O relogiozinho pulsava, regular, impressionante, como uma voz de outro mundo. A noite andava lá fora de muletas.
Um braço ficara preso sob a cabeça pesada de Mauro e doía-lhe. Que bom correrem as horas! A terra andava levando o enterro dos vivos. O enterro começava no dia do nascimento de cada um. Um dia vencido era um passo para a morte, para a libertação.
Entravam num tropel, lá dentro, os retardatários. E a noite andava de muletas e olhos fechados.
Acompanhou-o, risonhamente, até a gare, pelas ruas. Um carregador seguia-os. O trem partiu, levando-o num sobretudo cintado de esporte.
Rodava agora, feliz e sem destino. Penetrou no Jardim Público. Nos canteiros matinais, florescia toda uma natureza postiça e nova: rosas de bazar, margaridas de pano.
Uma noite mal dormida descabelava as árvores. Havia lampiões altos, semi-acesos. Uma fonte de inexpressivos tritões pingava água, rusticamente.
Sentou-se a um banco e ficou pensando no telegrafista, no filho que pulava lá dentro, e em Camila que pusera para fora, num hospital, a sua última asneira.
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João do Carmo, num velho pijama descorado, pensou que era sonho. Fê-la entrar, como Rodolfo na Boêmia, como quem mais? Procurava inutilmente, na cabeça literária, comparações, quadros líricos idênticos, estados de alma irmãos. Como estava magra sob o chapéu de tafetá!
Partiu num desvanecido anseio, voou sem rumo certo, para servi-la, para salvá-la. Era preciso arranjar um quarto onde ela morasse. Fora expulsa por sua causa. Era urgente, era urgente!
Lembrou-se de correr à delegacia de São Caetano, ali mesmo, onde Dagoberto Lessa trabalhava. Era ele o homem capaz de indicar-lhe o necessário ninho. Penetrou. Uma alegria comovida prendia-lhe o peito forte.
Dagoberto ouviu-o. Depois, uma gargalhada sarcástica estalou na sala ocupada de mesinhas desertas. O calvo havia aberto um livro enorme e preto de assentamentos. Ia continuar o serviço. E repetia:
– Você está louco, homem! Louco furioso! Dou já parte à autoridade.
Mas João insistia, numa cara sofredora e enérgica.
– É um caso em que ponho a minha honra de homem.
– Qual honra, nada! Bota o gado numa pensão e fica sendo o gigolô!
O namorado gritou rubramente:
– Não admito torpezas! Não admito!
Ia sair. O outro chamou-o, medroso.
– Bom! Não precisa se zangar. Mas ouça o que lhe digo. Você se arrepende desse passo, Seu João!
E levantando-se e buscando a farta capa espanhola num prego:
– Estou às suas ordens. Vamos. Não se discute.
João do Carmo, desarmado, procurava desculpar-se para com o serviçal, que exagerava, desarticulado em gestos pontiagudos:
– Não se discute! Não-se-dis-cu-te.
Sem outro assunto, o apaixonado foi dizendo pela rua populosa:
– Trata-se de um caso triste. Você sabe…
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Reconciliaram-se na caminhada para a Luz.
Dagoberto envaidecia-se de aventuras, ante a benevolência exaltada de João. Conhecia uma mulher ótima para o caso. Fora até parteira.
– De quantos meses? – indagou.
– Que meses?
– De quantos meses ela está?
– Não sei. Não perguntei.
Dagoberto continuou o elogio das virtudes da mulher:
– D. Genoveva é um anjo que usa chinó.
Tinham tomado um bonde do Bom Retiro. Apearam na Rua Aimorés. Bateram a uma casa baixa de porta e janela. Houve um arrastar de pés vagarosos, lá dentro. E D. Genoveva abriu.
Foi uma festa. João sorria satisfeito. A mulher tinha um quarto desalugado. Havia brigado com o casal que morava nele e o homem – um porquera! – saíra espalhando que lá era casa de rende-vu. Por isso não aceitava mais mulheres. Olhassem aquele sossego. Na sala da frente, morava o Seu Julinho, da Secretaria da Fazenda; no primeiro quarto, um capitão da polícia. E ela costurava.
Mas a intervenção de Dagoberto foi convincente. Era um caso diverso. A menina estaria ali só durante a gravidez.
A mulher piscou e riu com dentes de velho marfim. Depois, pediu que lhe adiantassem dois meses de aluguel.
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Um navio destaca-se do cais… a vida. Um navio destaca-se do cais…
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Na manhã indecisa, D. Genoveva bateu à porta do quarto. Trazia, numa bandeja de reclamo, o café diferente e fatias cortadas de pão. Uma touca de rendas recobria-lhe a cabeça curva.
Combinaram mandar um carregador buscar as roupas que haviam ficado no refúgio distante do avô, na Rua dos Clérigos.
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O sol banhava numa festa o sobrado pobre do velho Lucas, cristalizando os vidros, pondo trêmulas irisações nos canteiros da frente.
O carregador apareceu às dez horas.
A cozinheira gorda que fora ao quarto tinha voltado, dizendo pela casa:
– Hum! Hum! Sinhô tá ruim. Eu hoje sonhei cum sapato. Vai vê…
Foi à porta atender.
– Que roupa nada! O véio tá morreno. Bastião, óia vai com esse homem buscá sinhazinha. Diga pr’ela que o véio não dura nem esta noite.
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De fato, a vizinhança invadiu a casa entragicada pela anunciação da morte.
A mulher roliça que fazia trou-trou e vendia roupas, ofereceu-se prestimosa e sorridente. Apareceu o Seu Quincas do lado, ereto e hirto, glória de irmandades e repartições. Cumprimentara o doente durante vinte anos.
O velho tivera um colapso. Deitado, a barba crescida no rosto cor-de-terra, fazia uma dobra no pequeno leito desconjuntado.
Chamaram um médico moço. Ele chegou à tarde e disse rapidamente, na sala de jantar, aos circunstantes, que era do coração – um caso perdido.
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Seu Quincas esperava ficar só. Quando a mulher gorda partiu, fez o moleque sair e exortou o moribundo a tomar as últimas resoluções.
O desgraçado tinha os olhos humildes e grandes nos lençóis sujos. Estava sem camisa, no paletó azul. Teve uma crise ao saber que morria. A voz encanudou-se-lhe na boca sem dentes.
E, tétrico e solene, pediu ao outro, impávido e sombrio, a vela com que se transpõe a eternidade.
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O sobrado pálido passou por tabelião solenemente, no alvoroço do bairro, para o patrimônio da Sociedade Defensora e Benemerente dos Empregados Públicos.
Seu Quincas, que trouxera a Sabedoria ao fundo da rua pacata, consumou tudo. O agonizante não podia mais mexer-se. Pregado ao leito pela inércia branca que lentamente lhe tomara os membros, olhava num começado delírio. Perguntou enroladamente pela netinha.
Numa transmutação, a cor verde e doentia de tudo fixou-se, ganhou a paisagem larga e escura que se despejava do quarto.
A Amazônia dormia sob um calor de naufrágio. Em redor dele, o rio cantava e a floresta e o vento, povoando o silêncio de fogo.
Havia parado trinta e sete anos à beira da caudal faquirizante, onde nas noites o luar residia, laminando as águas puras dos igarapés. Idália vinha de Belém do Pará, ele subira de Goiás.
Alma crescera órfã, numa seminudez de pequena Ariel propícia, pelas matas imóveis e incendiadas. E, com ele, nadava nas madrugadas diluvianas do rio solitário. Jacarés lodosos e sucuris tentaculares vinham no rolo amarelo das águas.
Na sombra do leito, o corpo vencido iniciava a desorganização final, antes de ir purificar-se no filtro imenso da terra. Pelos caminhos escleróticos das veias, o sangue impotente coalhava-se.
Uma ânsia de comodidade e de repouso, movimentava-lhe os estertores. Pediu a vela num ruído da boca aflita. Queria transpor, de círio simbólico em punho, a porta da eternidade.
Apareceu sorrateiramente um padre gordo. O quarto ficou uma capela de rogos.
A glacialidade do fim estacou-lhe para sempre as canelas magras e juntas. Bastião urrou à porta um choro bárbaro que pôs calafrio de ódio na impassibilidade de Seu Quincas.
E trouxeram-lhe a vela afinal, uma grande vela acesa e direita.
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Alma não acreditara. E apareceu no chapéu de tafetá, para ver o corpo no caixão preto, ante o espevitamento sensacional da rua.
Os seus olhos eram dois lagos verdes. Tinha o gesto apalermado, os passos hesitantes.
Num espetáculo mudo de sofrimento, caiu a uma cadeira do corredor, sem coragem de entrar, e teve uma crise recurva de lágrimas.
Em redor, havia um mutismo choroso. Levantaram-na pelos ombros, levaram-na para a sala de jantar, em silêncio.
Mas, súbito, ergueu-se suplicante, sufocada.
– Quero ver meu avô.
Foram com ela. Um cheiro de flores e de cera espalhava-se entre gente.
Na meia-luz da câmara mortuária, os seus olhos inundados buscaram o caixão cheio de dálias vermelhas. Quedou-se ali, segura por braços compassivos. Mas, de repente, agitou-se, estremeceu e pediu meigamente ao vovô que falasse… para perdoá-la…
Arrastaram-na para um sofá. E ela continuou aos brados sonoros, numa declamação rogatória, a suplicar.
Mas um padre chegou. Era outro – frio, metálico, magro e impassível. Levou-a para dentro intimativamente.
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Haviam-lhe tirado tudo. Deixaram-na transportar a roupa, a boneca quebrada, a cama sem lençóis.
Ela sabia que não se pode parar com a mão a roda-gigante do destino.
Mas, dentro dela, estuava uma compensação de mocidade farta. Nas suas lágrimas, havia sorrisos de saúde. Foi-se esquecendo de tudo, pelas ruas, sob o céu azul e benéfico, até a casa de D. Genoveva.
Um moço passou por ela namorando. Atrás, uma carroça levava vitoriosamente a sua fortuna.
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Houve um pequeno guignol na missa de 7º dia.
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Trouxera o cãozinho peludo. A cozinheira levara o moleque, cestas e panelas.
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D. Genoveva sofria da aorta e, pedalando a máquina de costura, a seu lado, na sala, queixava-se.
O capitão saía sempre num faiscar de galões. E Seu Julinho, grosso e baixote, enternecia o ambiente com os seus olhos de homem batido e as cordas soluçantes do seu pinho. Ante a miraculosa aparição, fulva e fina, na casa enegrecida, redobrara a sua intuição de poesia das coisas. Agora, do quarto da frente vinham nas manhãs, sons bambos, sons quentes, sons inquietos.
Calava-se o violão dorido. Seu Julinho partia para a Secretaria, onde era contínuo. Ia jantar com pinga, num restaurante baixo da Rua Formosa.
E nas noites estreladas lá em cima, quando o telegrafista vinha para o casto noivado com Maria Madalena, na sala atravancada de roupinhas augurais, o violão dizia a dor e o milagre e a ardência daquela pobre gente, naquela pobre rua.
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O ventre aumentava. Lá dentro a vida criada pulava, num trapézio inquieto. E a sua carnação aleitara-se, ameigara-se o seu trágico sorriso: num reconhecimento, os seus olhos eram da cor sentimental da esperança.
O telegrafista não gostava que ela lhe falasse da criança que ia nascer. Amuava-se num ciúme instintivo. Ela compreendia, desviava o curso das idéias, curava-o.
Passou a vender serviços de costura. O telegrafista pagava dedicadamente o quarto.
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Por um cair violento de tarde, ela sentiu, com a vista escura, as primeiras dores.
João do Carmo avisado, acorreu, desesperou-se e partiu para não escutar nem saber. No trabalho noturno, tinha ouvidos longe, na casa, onde o drama da criação se passava entre cobertas, ajudado pela paciente experiência de D. Genoveva.
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– Aaaaaaa! Aaaaaaaaaaaaaa!
Na penumbra amarela de lamparina, o canto materno ressoou, bateu as paredes altas, ecoou.
A mulher de festivo chinó, com os dentes para fora da boca, tinha preparado tudo. E disse:
– É agora. Força, minha filha! Coragem!
Alma suava na geladeira dos lençóis. Tinha a cabeça vermelha virada, a boca entreaberta, os olhos roxos.
– Aaaaa! Aaaaaaaaaaaaa!
E lá no âmago, no profundo do corpo, junto às costas, arrancavam-lhe ossos vivos.
– Força! Faça força!
Puxavam-lhe os rins, esticavam-lhe a coluna vertebral, estraçalhavam-lhe as cadeiras, implacavelmente.
– Tenha paciência…
E a mulher de mão veludosa, passou o óleo bento que trouxera, pela montanha empedernida e alva.
Pouco a pouco, a dor se foi amortecendo, entrando. E ela sentiu a consoladora vontade de avistar o ser martirizante que ia vir. Ia nascer o seu filhinho…
– Aaa! Aaaaa! Aaaaaaaaaaaaaa!
A dor cresceu de novo, avassalou a natureza que criava… Era a dor decisiva, inevitável, firme, sem respiração, sem descanso, sem trégua.
– Faça força! Faça força!
Alma estagnara-se, as pernas em tesoura, num ímpeto indizível, teso, de todas as suas vontades dispersas. Queria afrouxar como nos intervalos anteriores, parar: não podia… Uma imperativa energia macerava-lhe as entranhas numa concentração violenta de caminhos abertos.
– Aaaaaaaaaaaaaaaaaa!
O canto materno cresceu pelas paredes acima, em busca do céu noturno.
– Se-nho-ra-do-par-to! Fa-zei com que ele nasça…
Os ganchos lá de dentro, como os da flor simbólica de Jerusalém, se haviam desgarrado um a um, estalando os ossos e as carnes. A dor inundava-a. A mulher curvara-se ansiosa. Houve um choque rascante. O céu lá em cima desabou sobre a casa, o teto sobre a cama.
Deus enviou depressa um anjo, trazendo como uma hóstia pequenina, nas mãos de luz, a alma nova, a vontade nova, a alegria nova.
Escutou-se um eco de bolsa aquosa que rebenta. Um chumaço ensopado de cabelos escureceu sob a montanha branca. E uma figurinha convulsa, numa sufocação congestionada, lançou o primeiro grito terrível da vida.
Era homem. E trazia a estrangular-lhe o pescoço aplásmico, a fita umbilical dos malsinados. Mas gritava, querendo tomar conta do presídio do quarto, do presídio do mundo.
A mãe, rasgada pelo meio, entre lágrimas ouviu o imperativo choro. E sorriu indizivelmente na sombra, onde grandes asas estacavam.
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Diante do pequenino ser, magricela, cabeçudo e de lábios expressivos, cegado ainda pelo fulgor das eternidades anteriores, Alma viu congelar-se-lhe no peito um sentido rancor para com todos os homens.
Mas pôs-se a escutar enfraquecida. E, de repente, os olhos inundaram-se-lhe. Ouvira sons lestos e vivos de bordões, numa incansável toada montante e vitoriosa. No seu quarto, como os antigos pastores de Belém, Seu Julinho celebrava o Natal.
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Vieram os reis magos trazer-lhe presentes. O capitão, luzido como um séquito, deu-lhe uma camisinha branca de cambraia. Seu Julinho comprou uma grande touca de nanzuque. E o telegrafista trouxe humildemente uma medalha de Cristo menino.
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D. Genoveva discutira longo tempo com João do Carmo e vencera. Um berço não serviria senão para os primeiros meses.
Compraram uma pequenina cama a prestações num negociante da Rua Santa Efigênia.
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Quando a deixaram só, no quarto escuro e pobre, tendo ao seu lado, no leito viril, o rapaz das suas esperanças, soluçou desabaladamente.
Da sombra veio um esguicho trêmulo de choro. Ela tomou-o numa carinhosa dificuldade. Pôs-lhe o seio branco na boca invisível. Queria amamentá-lo, ela mesmo, com o seu sangue materno.
Ele calara-se de bracinhos duros num casaco de crochet azul, a touca enorme de Seu Julinho tapando-lhe os olhos.
E ficaram ali, à luz pequena da lamparina, escondidos do mundo que rodava lá fora aos cachões.
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João vinha numa tristura. Casmurrava no quarto.
A chegada intempestiva do outro, o que dormia quieto, desvalorizara-o, perdera-o.
A mãe era só inquietações e desvelos, cuidados e narrativas. O pequeno de vinte dias tinha uma vida anedótica capaz de bibliotecas. Era inteligente, era belo, era rei.
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O telegrafista forçava um interesse hipócrita, ria um riso caceteado, dizia asneiras melancólicas, numa acentuada incompetência de amabilidades.
Ela um dia, percebendo, insultou-o. Ele saiu, entontecido de angústia nova, pelas ruas hostis.
Agora que, libertada, podia ser sua, somente sua, Alma emperrava numa santificação excessiva, irritante, da criança aplásmica, dos seus gritos moles, dos seus olhares inertes.
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De fato, ela ficava só com o seu reizinho, com o seu príncipe, com o seu valete de copas.
Todas as histórias de fadas eram verdadeiras, todas as maravilhas eram possíveis. Ele estava ali, na caminha viril. Ela achegava-se cautelosamente. Uma respiração flébil vinha da penumbra, de sob as cobertas. Lágrimas gratas subiam-lhe aos olhos enternecidos e bons.
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E um asco aumentara pelo telegrafista. Oh! os homens! Ela conhecia-os bem! Tinha assistido, na sua crucificação, ao desfile em pelo de todos os exemplares. Diante dela, haviam-se desabotoado, numa confissão de torpezas, professores da cidade, chefes de confrarias, zeladores de hospitais, grandes nomes, representativos da moral citadina, da educação, da finança e da família.
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Uma salpingo-ovarite ficara vigilante no ventre dolorido – do parto malfeito, da vida sexual irregulada e criminosa. D. Genoveva acudia-lhe as crises, com toalhas ensopadas em água-fria. E indicou-lhe cascarina sagrada.
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Como nesse dia, ele, o seu filho, completasse quatro meses, quatro magros meses, em que o esqueletinho persistia em esticar a pele morena do tronco, e não houvesse dinheiro para comprar uma chupeta nova, ela fez flutuar sobre a caminha pendente de um fio, como uma bandeira, um rico trapo vermelho.
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Mas a amamentação fora-se tornando mais e mais insuficiente. Num ridículo heroísmo, Alma rachara os seios sobre a boquinha ávida e chorosa.
Era um drama diário e obscuro, com sangue vazado e lágrimas rolando. Consolava tudo um pequenino sorriso desdentado, no escuro do quarto.
D. Genoveva um dia interveio, fez chamar o médico grisalho que lhe dava injeções.
No quarto alvoroçado, puseram Luquinhas nu. O exame foi minucioso, foi terrível.
Os olhos maternos se haviam aflitivamente fixado na esmeralda sábia da mão, que corria as costelas à mostra, apalpava, sentia.
Ameaçava-o uma leucemia perigosa. O tratamento imposto transfigurou, num sobressalto, a casa pacata da rua Aimorés.
João do Carmo não foi mais admitido no quarto. Permanecia horas na sala de jantar, onde fora feliz durante o período da gravidez e sofria lancinantemente a injustiça do seu abandono.
Lá dentro, Alma empolgava-se no rigor clínico das prescrições.
(Continua na próxima semana.)
Fonte: Outras Palavras.
Imagem: Pablo Picasso.