Por Fernanda Almeida.
A primeira quinzena de 2021 dá a medida exata do que vem pela frente caso nada seja feito para barrar o projeto mortífero do presidente Bolsonaro. Desde quinta-feira passada, 14/01/2021, as notícias que chegam do Amazonas nos assombram. A falta de oxigênio em Manaus, capital do Estado, é noticiada por uma mídia estupefata diante daquilo que parece ser um absurdo. Falta o insumo principal no tratamento para os pacientes contaminados pelo coronavírus, falta-lhes oxigênio! Em verdade são os profissionais da saúde e os familiares dos pacientes que primeiramente gritam socorro. Foram os médicos e os enfermeiros com seus celulares, através de vídeos com apelos desesperados, que fizeram chegar ao resto do país que havia “falta ar” no território que é simbolicamente reconhecido como “pulmão do mundo”.
Desde o início da pandemia sabíamos (ou deveríamos saber) que a crise sanitária não suspende os demais problemas de saúde. Inclusive, a complexidade da gestão da pandemia reside justamente na capacidade dos governantes em darem respostas rápidas, organizadas e planejadas de modo que os sistemas públicos de saúde não entrem em colapso, como ocorre hoje em Manaus, portanto a responsabilidade pelo que aconteceu lá está direta e integralmente vinculada às diretrizes políticas do Ministério da Saúde, assim como às ações do Governo do Estado. Sem comando centralizado instala-se o caos e a barbárie.
Até quinta feira passada o risco concreto de colapso do sistema de saúde, embora muito evocado pelos especialistas, parecia não figurar nas preocupações de parte da população. As imagens e os relatos dão conta de um verdadeiro cenário de guerra, inimaginável, insuportável, imperdoável a morte por falta de ar – asfixia, sufocamento e desespero. Uma ala inteira morre. Insisto no apelo simbólico: falta ar para a gente que vive na floresta representada como pulmão do mundo.
Nesse impiedoso episódio o que não falta são elementos simbólicos. Nada parece mais absurdo que 60 bebês prematuros sem ar! Sim, 60 bebês prematuros poderiam ter morrido por falta de oxigênio nas UTI’s neonatais. É urgente nominar os responsáveis, ainda que não reste dúvida de que o grande culpado por tudo isso seja o próprio presidente Bolsonaro, pois, seu discurso negacionista e sua política de morte lança à própria sorte um país inteiro.
De março até aqui tenho buscado manter içada velas de esperança; tenho as sustentado infladas nas estruturas afetivas e simbólicas de que disponho: a política, a arte, a filosofia e o amor. É uma luta cotidiana. Haja repertório simbólico para não se alienar e tampouco sucumbir ao real e desmedido fosso em que nos encontramos. Mas confesso que a notícia da falta de oxigênio para os 60 bebês prematuros provocou um rasgo irreparável no pano da vela de esperança e fé na humanidade, pois sob meu ponto nada é mais violento e inominável. Bebês prematuros são criaturas absolutamente indefesas; são vidas que dependem fundamentalmente do cuidado do outro. Nada, absolutamente nada havia me feito chorar tanto desde o início da pandemia. Foi uma espécie de “jogar a toalha” resultado de um profundo esgotamento físico e mental. Não é a simples e costumeira desesperança com a qual tenho aprendido a conviver, desta vez é mais denso, mais complexo.
Pensar na vida desses bebês me fez refletir sobre o futuro, deles e do país em que eles nasceram. Construo na minha cabeça que esses bebês prefiguram nossa situação neste momento histórico. Sobreviveremos? Estamos tão frágeis, estamos tão desamparados, tão dependentes uns dos outros. E esse outro falta, falha e apavora… Esse outro parece zombar de nós. O ar está pesado, irrespirável mesmo para aqueles que ainda não tiveram seus pulmões comprometidos pelo vírus. Tenho a impressão de que, de alguma maneira, falta oxigênio em todo lugar.
Refletir sobre a vida desses bebês me faz a constatar que foram concebidos já no contexto pandêmico. Há sete meses sabíamos bem menos sobre o vírus, mas já havia certeza de que a falta de política séria e robusta de enfrentamento da pandemia poderia nos trazer gravíssimos prejuízos. Sabíamos da importância do isolamento e distanciamento social. Penso imediatamente nos pais e mães desses bebês; imagino e me solidarizo ao desespero que isso pode ter provocado neles. Me comove conjecturar sobre a angústia dessas mães. Como terá sido e será a assistência para essas mulheres? Qual a condição social delas? Que distâncias percorrerão? Tento pensar no translado até outros Estados e desisto, não tenho acervo imaginativo para isso, é desesperador.
O bebê humano talvez seja o mais frágil dos mamíferos. Ele é totalmente dependente de cuidados. Esse fato é objeto de estudo das mais diversas áreas. Se do ponto de vista concreto e objetivo é difícil imaginar o impacto dessa tragédia na vida desses bebês e de suas mães, ainda mais complicado é imaginar a repercussão subjetiva desse trauma para ambos.
Os 60 bebês dizem mais sobre o Brasil do que podemos imaginar. Ainda sabemos muito pouco sobre a condição de saúde desses bebês, sendo importante manter sigilo e proteção dessas famílias nesse momento. Mas essa situação nos convoca ou deveria nos convocar. Parcela significativa da sociedade brasileira parece assistir tudo isso de maneira aparvalhada, acomodada no discurso negacionista. Intrigada, penso que se uma situação dessas não comove e não convoca uma reação, o que mais precisará acontecer para que haja uma reação proporcional ao agravo?
A memória é um recurso poderoso do cérebro humano. No filme Tempos de Paz há um diálogo antológico travado entre os personagens Segismundo (Toni Ramos) e Clausewitz (Dan Stulbach). Segismundo, um tiranete borra-botas que ainda tem o poder da caneta, condiciona a emissão do termo de salvo-conduto do artista-agricultor-polonês Clausewitz à execução de uma performance que o faça chorar. Clausewitz tem na memória o horror da guerra. As cenas e vivências avassaladoras estão impregnadas em seus sentidos: cheiro e medo da morte. Ele diz não saber colocar em palavras o que viu e o que sentiu. Por outro lado, o tiranete brasileiro “empresta” lembranças do pior que fez. Nesse jogo tragicômico de lembranças e memórias, a beleza onírica do teatro os faz lembrar de que a humanidade é um projeto em construção.
Por aqui, está difícil colocar em palavras o que vimos na semana passada em Manaus, mas acredito que não devemos esquecer. Recuperar, assim como na performance de Clausewitz. Lembrar… não esquecer, não naturalizar, não se acostumar com o horror. Manter essas memórias tem uma importância fundamental na reconstrução da arena política e democrática no país. Torço pela saúde desses bebês. Desejo os ver crescer fortes e resistentes. Para mim, esses bebês representam um quantum de energia vital e necessária. Uma aposta na vida. Espero que os brasileiros entendam que o quê está em jogo ao “desprezarmos” a vida desses bebês é o descompromisso coletivo com o nosso próprio futuro. Mais que lhes oferecer oxigênio, devemos a esses 60 brasileirinhos um projeto de mundo melhor.