CNPq falido
A situação do CNPq é a mais preocupante. O orçamento de fomento da agência, destinado ao financiamento de projetos de pesquisa, é de apenas R$ 22,5 milhões, dos quais R$ 12,1 milhões (53%) estão condicionados à liberação de créditos suplementares. Ou seja: garantido mesmo no orçamento, são apenas R$ 10,4 milhões — uma quantia irrisória para o financiamento de pesquisas em todo o Brasil. Para se ter uma ideia, não faz muito tempo, em 2014, esse orçamento chegou a ultrapassar R$ 600 milhões, e a agência chegava a distribuir R$ 50 milhões em um único edital (a tradicional Chamada Universal, importantíssima para o financiamento de pequenos projetos de pesquisa em todo o Brasil, e que já deixou de ser realizada nos últimos anos, por falta de recursos). Numa comparação mais esdrúxula, porém simbólica, R$ 20 milhões e R$ 10 milhões são os valores que o governo federal gastou comprando leite condensado e bombons no ano passado, segundo dados divulgados recentemente pela imprensa.
O valor reservado para bolsas de pesquisa também preocupa: são R$ 944 milhões, dos quais 60% (R$ 565 milhões) dependem da aprovação de créditos suplementares — que poderão, ou não, ser liberados pelo Congresso no decorrer do ano. Os recursos garantidos, de fato, no orçamento (R$ 378 milhões) são suficientes para pagar apenas quatro meses de bolsas, pelos cálculos da SBPC. Nos últimos dois anos o CNPq já enfrentou sérias dificuldades para honrar o pagamento integral de suas bolsas até dezembro, e este ano poderá ser ainda pior.
“O Brasil está andando para trás”, lamenta Alvaro Prata, professor e ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, e ex-secretário-executivo do MCTI. “Não faz nenhum sentido, diante da relevância que a ciência e tecnologia têm no mundo hoje, cortar recursos desse setor.” Dados internacionais mostram que os países desenvolvidos investem mais em ciência e tecnologia em momentos de crise, e não menos.
Cota de importação
Não bastasse o corte orçamentário, o governo também reduziu em quase 70% a cota do CNPq para importação de insumos de pesquisa livres de impostos. Essa cota funciona como um limite de cartão de crédito: é o valor máximo de produtos que o CNPq pode isentar de impostos para importação num determinado ano. Em 2020, esse valor foi de US$ 300 milhões; e agora, em 2021, será de apenas US$ 93 milhões, segundo informações do jornal Folha de S. Paulo. A diretoria do CNPq informou em nota que já está trabalhando numa solução com o MCTI e o Ministério da Economia.
Assim como o corte orçamentário, a redução da cota de importação tem um efeito cascata dramático sobre todo o sistema de ciência e tecnologia nacional, já que todas as isenções de impostos precisam ser aprovadas pelo CNPq, mesmo que as pesquisas não sejam financiadas por ele — incluindo os insumos necessários para a produção de vacinas no Instituto Butantan e na Fiocruz, por exemplo.
“Isso é tão grave que vai paralisar toda a pesquisa em biologia molecular no Brasil; simples assim”, diz o bioquímico Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química (IQ) da USP e também ex-presidente do CNPq. Química e biologia são duas áreas que dependem quase que totalmente de insumos importados para suas pesquisas, incluindo equipamentos e reagentes básicos de laboratório. “Eu estava muito relutante em ver intenção nesse movimento todo contra a ciência no Brasil”, disse Chaimovich ao Jornal da USP. “Cada vez mais, porém, o que acontece na prática me leva a concluir nessa direção: que existe uma intenção de acabar com a ciência no Brasil.”
“É realmente de chorar”, diz a pesquisadora Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), que recentemente desenvolveu um teste de detecção do novo coronavírus pela saliva. “Felizmente ainda temos a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] aqui para nos ajudar, se não ia ter que vender brigadeiro na esquina.”
Diante da falência dos órgãos de fomento federais, a Fapesp é hoje a principal (e muitas vezes, única) fonte de recursos para pesquisa no Estado de São Paulo, que contribui com cerca de metade da produção científica nacional. A Fapesp recebe, por lei, 1% de toda a receita tributária do Estado de São Paulo, e investe atualmente mais de R$ 1,2 bilhão por ano em bolsas e projetos de pesquisa (mesmo valor do orçamento total do CNPq previsto para este ano).
Especialistas ressaltam, porém, que os cortes no orçamento federal têm forte impacto também sobre a Fapesp, aumentando a demanda por recursos da fundação — que não tem condições de bancar toda a ciência paulista sozinha. Além disso, a redução da cota de importações do CNPq, se mantida, também afetará as pesquisas financiadas pela fundação.
“O pessoal está fazendo das tripas coração para produzir alguma coisa, porque os cientistas são muito apaixonados pelo que fazem”, diz Mayana. “Mas se você comparar com o que está acontecendo lá fora, é muito triste mesmo. Vamos esperar a próxima pandemia, porque nessa parece que não aprenderam nada.”
Esperança no FNDCT
As chances de conseguir fazer mudanças significativas na proposta orçamentária do governo são pequenas. Por causa do Teto de Gastos, para aumentar o orçamento do MCTI será necessário tirar recursos de algum outro lugar.
A principal aposta da comunidade científica para salvar o setor da falência este ano, portanto, recai sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que coleta royalties de empresas que exploram recursos naturais e outros bens da União para serem reinvestidos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico desses mesmos setores. A arrecadação prevista do FNDCT para 2021 é de R$ 5,3 bilhões, mas a proposta orçamentária do governo coloca 90% desse valor em “reserva de contingência” — ou seja, indisponível para uso. No fim das contas, apenas R$ 510 milhões desse bolo multibilionário poderão ser usados, de fato, para investimento em pesquisa.
O Congresso aprovou em dezembro, por ampla maioria, em ambas as casas, um projeto de lei que proibia as reservas de contingência no FNDCT. Esse dispositivo, porém, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro no início de janeiro. A comunidade científica reagiu com o lançamento de uma campanha que pede aos congressistas que derrubem o veto do presidente — restaurando, assim, o projeto original da lei, que eles mesmos aprovaram em dezembro.
“Essa é uma decisão catastrófica para o País, ainda mais em um momento de grave crise sanitária, econômica e social, e que caminha na direção oposta ao que fazem os países desenvolvidos”, diz um abaixo-assinado lançado pela Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), com quase 23 mil assinaturas.