Por Thiago Burckhart, para Desacato.info.
A opressão pode ser definida como uma forma de poder, calcada no aniquilamento do outro enquanto sujeito que busca sua emancipação. A relação opressora implica, portanto, na negação do outro enquanto potência e enquanto sujeito político e de direitos. É uma relação de poder que visa manter o status quo. De fato, a opressão é uma forma de poder que existe – e existiu – em diversas formas de sociedade e organização política. Ao longo da história não foram poucas as experiências de opressão que ocorreram, subjulgando a grande maioria da população.
No entanto, a opressão distingue-se da repressão em razão de operar de modo sutil, seja no plano simbólico ou na materialidade da vida. Em razão de sua sutilidade, a opressão tende a ser naturalizada pelos sujeitos que não conseguem desvendar os mitos e falácias desse mecanismo de poder. Desse modo, a opressão necessita da ideologia para operar, isto é, de um conjunto de representações, discursos e até mesmo ações que legitimam o poder dos que oprimem. Trata-se de uma necessidade estrutural do poder de oprimir, haja vista que é a partir da ideologia que a opressão se concretiza.
Consumismo e opressão
A ideologia se materializa no consumismo. Trata-se de uma válvula de escape da sociedade do espetáculo, que a todo momento necessita reproduzir os padrões impostos pelo poder opressor. Nessa racionalidade, as pessoas são medidas por seu nível de consumo, não necessariamente por produzirem, mas sobretudo por consumirem (quanto mais, melhor). O consumismo funciona como um lema nessa sociedade, que em razão das exigências do meio se adequam a elas. O consumismo é a fetichização em grau máximo da mercadoria, ao passo que também é a fetichização das próprias relações sociais, que passam a ser permeadas pela lógica consumista. As festas de final de ano são um claro exemplo disso.
Ocorre que a lógica consumista esconde ainda mais a opressão. A opressão é aquilo que está por trás das mercadorias, mas que ninguém vê. Marx dizia que a alienação nasce desse processo de impotência de enxergar o que está por trás das coisas, de modo que os sujeitos passam a viver com um véu sob seus olhos. Esse véu só mostra aquilo que o poder opressor quer que seja visto, e passa a construir uma realidade calcada nele mesmo. Não será a alienação o conceito que mais se amolda a nossa sociedade? Alienação tanto política quanto econômica, que nos fazem enxergar o mundo a partir de véus? O consumismo não seria a causa precípua e geradora dessa alienação contemporânea?
Opressão e reprodução
Contudo, a opressão contemporânea é bastante peculiar, pois vende uma pseudo-ideia de que um dia poderemos ser os opressores. Essa é uma das formas pela qual se materializa a ideologia, pois não se leva em consideração as condições sociais, políticas, econômicas, culturais, dentre outras, que os sujeitos se encontram inseridos, mas vende-se a ideia da meritocracia, naturalizando-a. O que é mais curioso nesse processo é que aqueles que conseguem alcançar algum lugar privilegiado, o lugar do opressor, passam a oprimir, com raras exceções, da mesma forma que foram oprimidos.
O filme estadunidense “Crash – no limite” é um demonstrativo de como as relações de opressão permeiam a lógica da microfísica do poder. A opressão ocorre naquele contexto em razão da diversidade étnica existente naquele espaço. No entanto, a opressão não ocorre somente na forma tradicional idealizada pela sociedade, qual seja, a opressão dos brancos sobre os negros, mas mostra-se como um instrumento ainda mais complexo. No filme, brancos oprimem negros, negros oprimem latinos, latinos oprimem chineses, chineses oprimem árabes, numa cadeia sem fim. Isso só mostra que a opressão se reproduz pela própria opressão. É um ciclo vicioso que se auto-reproduz.
Cabe questionar, desse modo, se nós estamos dispostos a romper com esse ciclo? Esse ciclo somente é possível porque, como afirmava Michel Foucault, o poder também é concessivo, ele também concede a possibilidade de oprimir, o que para muitos é um fetiche.
O livro “Discurso sobre a servidão voluntária”, de Étienne de la Boétie, escrito no século XVI, ainda se mostra muito atual. O texto circunda a ideia de liberdade, e questiona se as pessoas realmente gostam de ser livres. A tese do autor francês, que escreveu o texto aos 18 anos de idade, é de que a grande maioria das pessoas – inclusive muitos daqueles que proclamam a liberdade como valor supremo – não querem realmente ser livres. A liberdade implica em responsabilidade e a responsabilidade é algo difícil e complexo de ser desenvolvido. Em razão disso, muitos se acomodam na reprodução, no habitus, como dizia Pierre Bourdieu, perpetuando as estruturas de poder e opressão, que vão se moldando conforme o momento histórico e social que se vive.
Este é o dispositivo que corrompe nossas vidas ainda hoje.
A ideologia dominante, seja pelo consumismo, seja pela venda da pseudo-ideia meritocrática, torna difícil construir formas de resistência, seja a partir da consciência de classe, seja a partir da consciência de gênero, étnica, etc. O modo como ela opera, e os instrumentos que se utiliza – como, por exemplo a internet – são armadilhas, pois naturalizam as relações sociais e políticas.
Tirar e desconstruir o véu da ideologia é uma tarefa difícil, tendo em vista que esse mesmo véu constrói uma dita realidade, uma relação simbólica das pessoas com as coisas. Contudo, a opressão, enquanto mecanismo de poder, deve ser compreendido nas suas profundas formas de operar e nas suas implicações, de modo a construir o caminho para a liberdade. Como já dizia Simone de Beauvoir, “querer-se livre é também querer a liberdade dos outros”.
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Thiago Burckhart é estudante de Direito.
Charge: Ángel Boligán.
muito bem escrito de forma concisa e clara, que nos remete a refletir sobre nosso comportamento no cotidiano. assunto pesado tratado de uma forma leve e ao mesmo tempo eficiente,