Por Alejandra Dandan – Página/12
Sobreviventes do centro clandestino Automotores Orletti, localizado em Buenos Aires, entregaram ao juiz argentino Norberto Oyarbide cópias de telex e cartas que provam o intercâmbio de informação (entre as ditaduras uruguaia e argentina) para identificar “subversivos”. Os documentos fornecem uma radiografia muito clara das operações obscuras e ilegais praticadas pelas sedes diplomáticas uruguaias radicadas na Argentina.
As caixas contêm documentos reservados da ditadura uruguaia, mensagens de telex trocadas entre os consulados uruguaios localizados na Argentina e o Consulado Geral em Buenos Aires, além do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai. Os funcionários desses organismos perguntavam-se nas mensagens sobre o número de uruguaios radicados no país e qual poderia ser, por exemplo, o modo de saber quantos deles eram “subversivos”. Os papeis que contêm nomes, listas de proscritos e comunicações sobre os voos ilegais entre os dois países voltam ao presente para fornecer uma radiografia muito clara das operações obscuras e ilegais praticadas pelas sedes diplomáticas uruguaias radicadas na Argentina.
Os documentos foram apresentados por um grupo de sobreviventes uruguaios – encabeçados por Sergio López Burgos – ao juiz Norberto Oyarbide, encarregado da investigação do Plano Condor. Na apresentação, os uruguaios pediram para entrar na ação como querelantes, denunciaram mais de vinte diplomatas e pediram que se inicie uma investigação sobre essa linha diplomática.
“As mensagens trocadas entre os consulados e as embaixadas mostram, por exemplo, como os funcionários pediam ajuda à Polícia Federal para detectar os ‘elementos subversivos’ que operavam na Argentina, disse López Burgos, uruguaio e sobrevivente do centro clandestino de Automotores Orletti e de um périplo de detenções no Uruguai. “Isso demonstra para nós que a diplomacia era uma fonte de informação e, ao mesmo tempo, uma armadilha. Ente nós, de alguma maneira, começamos a suspeitar disso e, por essa razão, passamos a evitar passar pela embaixada”.
Durante a ditadura militar no Uruguai – diz a denúncia apresentada pelas advogadas Mariana Neves e Elizabeth Victoria Gómez Alcorta -, “o Ministério de Relações Exteriores teve ativa participação no Plano Condor. Aquele órgão desempenhava, entre outras funções, a tarefa de investigar cidadãos uruguaios por solicitação de outros governos sem nenhuma decisão judicial. A partir de informações das agências de inteligência e dos comandos militares, se suspendeu e se negou a muitos cidadãos a documentação necessária para mover-se pelo mundo, conformando assim um ferrolho sobre os cidadãos uruguaios.
Isso é, de alguma maneira, o que mostram as caixas de documentos que entregaram a Oyarbide, caixas estas que foram resgatadas depois de mais de um ano de trabalho nos arquivos da Chancelaria uruguaia. Entre os denunciados há, pelo menos, 25 diplomatas de primeiro e segunda linha, 13 militares e 12 civis. Um dos nomes mais conhecidos é o do ex-chanceler uruguaio Juan Carlos Blanco, até o momento o único processado e detido no uruguaio. Mas os arquivos também trazem denúncias contra os embaixadores uruguaios na Argentina: Gustavo Magariños (1975-1978) e Luis Posada Monterio (1978-1980). Também há seis ex-cônsules e ex-funcionários, entre eles Arisbel Arocha e Alberto Voss Rubio que ainda são embaixadores. A conexão diplomática também incluiu aqueles que operaram dois voos clandestinos que saíram de Buenos Aires para Montevidéu com os prisioneiros uruguaios que estavam sequestrados.
A linha vermelha
Um dos documentos mais eloquentes sobre a linha vermelha dos diplomatas é uma carta de 7 de dezembro de 1978, assinada pelo ministro conselheiro do Consulado Geral de Buenos Aires, Alfredo Menini Terra, e dirigida ao “embaixador extraordinário e plenipotenciário da República Luis María Posadas Montero”. O documento parece um verdadeiro manual no qual o consulado conta à embaixada quais poderiam ser os melhores modos para transmitir uma informação confidencial. Ou explicam como contar uruguaios em Buenos Aires e como discernir quais deles poderiam ser “subversivos”.
Neste sentido, em um determinado parágrafo, o cônsul afirma: “Quanto à porcentagem de cidadãos uruguaios que, na avaliação de funcionários consulares, podem ter estado ou estão vinculados a atividades subversivas, naturalmente é uma apreciação muito difícil de fazer. A única orientação que tem o funcionário consular para poder obter essa informação reside em: a) algum tipo de trâmite que motivasse sua intervenção perante as autoridades militares ou policiais, onde se constatasse a atividade subversiva de um cidadão uruguaio; b) a comunicação de Não Autorizado efetuada por nossa Chancelaria ante à solicitação de expedição ou renovação de passaportes”.
Mais abaixo, o cônsul conta a seu superior que o Consulado de Rosário encontrou em seus arquivos o registo de quatro cidadãos que tiveram recusado o pedido de expedição de passaporte. E o Consulado de Buenos Aires, entre negativas a passaportes e trâmites “motivados por atividades subversivas”, tem registrados os nomes de 300 cidadãos.
A carta, de várias páginas, fala sobre as mensagens cifradas. “…Cabe constar – diz, por exemplo -, que não existe mecanismo de comunicação cifrado de telegramas entre este Consulado geral e os consulados de distrito, ficando como única alternativa para a comunicação ou recepção de informação confidencial a via postal”. Em outro ponto, reflete sobre o que está acontecendo com os uruguaios:
“…Chamou a atenção nos últimos tempos que, possivelmente em razão do conhecimento da solicitação prévia de autorização à Chancelaria para expedir ou renovar os passaportes, só se apresentam em nossos consulados na Argentina os cidadãos que não tem nenhum inconveniente…”.
Entre os primeiros casos de passaportes que a Chancelaria vetou estavam os de Wilson Ferreira Aldunate, Héctor Gutiérrez Ruiz e Zelmar Michelini. Os três estavam sendo perseguidos no Uruguai e estavam radicados em Buenos Aires. Seis meses depois dessa decisão, Gutiérrez Ruiz e Zelmar Michelini foram assassinados.
Os voos
Os documentos provam também várias atividades desenvolvidas ad hoc pela Chancelaria. Entre essas provas, está a que partiu dali a ordem de translado massivo dos uruguaios sequestrados em Buenos Aires e que voaram clandestinamente a Montevidéu nos chamados primeiro e segundo voo.
Uma das provas aparentemente é um telex de 2 de junho de 1976, identificado como C194/24, assinado pelo ex-chanceler Juan Carlos Blanci e dirigido ao então cônsul em Buenos Aires, Alberto Voss Rubio. No telex, Blanco dá “a ordem de garantir o translado para a República Oriental do Uruguai de todos os cidadãos uruguaios requeridos pela autoridade competente”.
Para López Burgos, a data do telex e o conteúdo do mesmo o convertem em um documento que está falando provavelmente do primeiro voo, uma viagem clandestina e massiva de sequestrados que estavam no centro clandestino de Automotores Orletti e viajaram a Montevidéu. Apesar desse documento ser conhecido no Uruguai, ele não o era para a Justiça argentina. A ação sobre o centro clandestino de Automotores Orletti, seda do Plano Condor em Buenos Aires, terminou no ano passado, mas só se investigou e julgou o que aconteceu dentro das portas do centro clandestino. Tudo o que aconteceu fora dele é matéria de investigação da chamada Causa Condor, que está em mãos de Oyarbide e do promotor Miguel Angel Osorio. Uma das partes dessa ação dorme o sono dos justos aguardando o início da data de julgamento.
Tradução: Katarina Peixoto.
Imagem: institutomemoria.org.ar