Fotos: Mariana Pereira Oliveira e Sofia Vendramini Andrade.
O Cambirela amanheceu dias atrás com mais gente ao seu redor: vieram pras bordas da linda Serra Tabuleiro novos moradores e moradoras. Não vieram avulsos, por si só; chegaram organizados. Trata-se da Ocupação Marighella, mais uma que brota Brasil afora: expressando a luta renhida por este direito humano fundamental, presente em tudo que é Constituição: acesso à moradia. Na nossa, ele está presente, de forma explícita nos artigos 6, 182 e 183 + Estatuto da Cidade – etc. A galera se organizou e foi de mala, cuia e coragem pra Guarda do Cubatão, este incrível manancial de água do qual dependemos para viver. Gente que já vivia na Palhoça, vindo de tudo que é canto deste país, e de fora, em busca de trabalho e recursos para viver. Deles dependemos – os que moramos em Floripa, em São José, e por aí – porque de suas mãos depende a reprodução da vida. A maior parte da classe trabalhadora da “ilha da magia” vive fora dela, nesta área conurbada (e conturbada, porque desigual, violenta e pobre) da qual Palhoça é uma das partes principais.
Mas, como para milhões neste mundo velho com porteiras, o preço da moradia compromete grande parte do salário, contribuindo para aquilo que Engels ja chamou, séculos atrás, de segunda expropriação: o trabalhador que já é explorado no trabalho, é mais vezes, ainda, alvo da sanha capitalista – o merceeiro, o proprietário, o transporte. O capitalismo já não é pra principantes, que dizer do capitalismo na periferia, dependente e colonial? Daí a coragem das Ocupações: colocar o corpo em campo pra tirar do papel o que está somente na letra a “lei”, cadastros, promessas, listas… Nas fotos, podemos ver prédios, iniciados há mais de 8 anos, em uma área de cerca de 14 mil metros quadrados! São 96 apartamentos inacabados. 96! Desocupados. Sem função social nem ambiental. Apezitos pequenos, com lugar pra umas 3 ou 4 pessoas, precários, é certo, face à tudo que a humanidade ja produziu e a possibilidade de expandir uma vida bem boa pra todo mundo que tá aí. Já temos condições de viver todos muito bem, trabalhando cerca de duas horas por dia(porém: igualmente distribuídas) para garantir a reprodução de nossa espécie, é o resto seria só pra curtir, criar, desfrutar. Porém, esta possibilidade civilizatória nos é confiscada, dia após dia. Enquanto isto, milhares de pessoas, em “família” ou solas, se aboletam em pequenos e precários locais que, somente com muito esforço podemos chamar de moradia, e ainda, a altos preços! Com muito esforço e apreço os próprios moradores cuidam, para poder ali reviver suas vidas, sua sociabilidade, afetos e dores. Ao relaxar em um território garantido – que não precisa ser privado, miremos nuestros parentes indígenas e suas formas comunais – inicia a arquitetura: esta capacidade humana de planejar e sonhar com o belo, o singular, o humano, de que nos falam Marx, Harvey e cia.
Em menos de 12 horas, o prédio que estava largado no pasto não apenas foi ocupado, como rapidamente foi alvo desta coisa estupidamente humana chamada trabalho (O Capital, livro 1) nossa capacidade de transformar o que está em algo construído,pensado, plasmado: na foto abaixo, se vê esta gana, de arrumar o espaço, aproveitar materiais “em desuso”, descaso ou descarte pra deles fazer uma obra, um caminho, uma arte, algo útil, bonito.. Como por todos os lados, nas Ocupações estão os e as que fazem a cidade funcionar : os trabalhadores! Surgiram como que “do nada”, mas na verdade, expressando este todo articulado e uno que é a sociedade. São serventes, pedreiros, eletricistas; cozinheiras, cuidadoras, jardineiros. Gente que vem do interior de SC,do Sul, da América central, do norte do país. Em menos de 24 horas, a galera se anima com a ideia da “agência” – ser sujeito político, conjunto , e com ideais – e baixam as ganas de fazer um roçado, um caminho com pedras, um banco,um balanço, um fogão. O povo acorda cedo,nem dorme, às vezes – e sabe fazer das tripas, coração. Neste pequeno rincão, já sabemos, há toda uma montanha a conquistar: a água, a luz, reboco, janelas,chuveiros, camas, balanços pras crianças brincarem no jardim. A lista é grandona , do que falta até o que abunda – e abundância é de gente trabalhadora! Ao revés da canção lá de cima (linda no seu lembrar), aqui a festa está a começar. Esqueceram uma semente n’algum canto do jardim. Sipá ela se espraia por aí, faísca em pradaria.
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