“O guerrilheiro precisa da ajuda total da população… Desde o início da luta, tem em vista a destruição de uma ordem injusta e, por conseguinte, a intenção mais ou menos clara de substituir o novo pelo velho”.
Che Guevara
Estar vivo é condição pra tudo na vida. O presente, o agora, exige sangue correndo nas veias, de modo que aos que vivem tudo é possível, apesar de nem tudo ser permitido. Augusto Boal escreveu, ao definir o Teatro do Oprimido, que todos os seres humanos são atores, porque agem, e expectadores, porque observam. Seguindo em linha reta e sem freios o fluxo do pensamento de Boal é possível afirmar, embora não sem topar com discordâncias, que todo ser humano está apto à atuação e à criação teatral a partir do momento em que começa a agir, contracenar, com o meio onde vive e as pessoas com as quais convive, e a observar, presenciar, o resultado dessas ações e interações. Portanto, e a grosso modo, segundo o gênio nascido nos subúrbios da Penha, a única condição para se fazer teatro é “estar-se vivo”.
Viver é dose, dói e dá trabalho. Pois se o sossego é próprio da morte, a vida só pode ser movimento, como o teatro. Portanto, e novamente a grosso modo, pode-se chegar à conclusão de que a vida também é um palco. R. G. Davis, até onde sei, não teve contato com Boal nos anos 60. No entanto, a concepção de teatro de ambos é parecidíssima. Enquanto Augusto desenvolvia uma metodologia a respeito do Teatro do Oprimido, que seria lançado em 71 através de sua primeira técnica chamada Teatro Jornal, Davis lançava, em 66, junto a outros membros do San Francisco Mime Troupe, o manifesto Teatro de Guerrilha, tema da coluna dessa semana.
O fim do teatro comercial
“A asneira é um luxo a que só podem dar-se os espetáculos comerciais”.
Peter Bay
É impossível compreender o Teatro de Guerrilha sem antes compreender o teatro a que ele se opõe. Para tanto, é necessário saber que a idéia central dele é combater o teatro comercial que, segundo Davis, contribui para a alienação da população, anestesiando o seu espírito e ensinando-a somente a obedecer e a seguir em frente, rumo ao abismo, conforme o passo do rebanho. De acordo com o manifesto, “o teatro é uma entidade social: tanto pode adormecer o espírito do cidadão, apagar nele qualquer sentido de culpa, ensinar a todos como integrar-se na grande sociedade e no modo de vida americano, como procurar transformar esta sociedade. E isso é política”.
Na contramão do teatro comercial, o Teatro de Guerrilha propõe aos homens uma força vinda da revolta e da imaginação. Através de uma realidade límpida, escarrada, a ordem estabelecida é colocada em xeque e diante da fantasia já não pode mais usar do domínio da força ou da proibição para coibir as massas. Segundo Davis, a crítica, a discussão, a tomada de posição sobre os problemas que se põem à sociedade têm o poder de despertar uma mudança adormecida no peito de toda humanidade.
Na contramão do teatro comercial, o Teatro de Guerrilha propõe aos homens uma força vinda da revolta e da imaginação.
Dinamitar os teatros
A ruptura com o teatro estabelecido exige radicalidade, por isso o Teatro de Guerrilha não rompe apenas com os métodos do teatro comercial, mas também com suas certezas, suas verdades, seus espaços, seus profissionais e até mesmo com seu público. As instituições teatrais fixas são completamente dinamitadas pelo grupo.
O espetáculo de guerrilha é um acontecimento: ao invés de ocupar um espaço definido, com hora e local estabelecidos, ele surge subitamente, tomando a cidade de assalto e fluindo junto ao trânsito por seus vasos que se comunicam com os cidadãos e os edifícios. Não existe uma companhia teatral, existem pessoas que agem simultaneamente sobre o público. Nada de atores profissionais, para Davis e sua trupe os profissionais do teatro buscam uma espécie de consagração que se traduz, normalmente, em sucesso comercial, reconhecimento de críticos e conquista de prêmios.
Dar um novo sentido ao amadorismo no teatro é devolvê-lo ao rito, além de uma forma de criar novos “homens de teatro” para quem a consagração consiste em afrontar a hipocrisia reinante na sociedade.
A procura por um novo público
O Teatro de Guerrilha, que nasce da resistência, busca se expandir através da conquista de “contingente”, ou de um novo público. Oras, se a busca dele é fundar uma nova sociedade, o meio de se chegar a essa sociedade é transformar o homem, por isso é preciso ir ao encontro das pessoas onde quer que elas estejam: nas fábricas, comércios, periferias, bares, centros comerciais, jardins públicos, praças; em síntese: onde houver público deve haver teatro, por isso não existe espaço que o teatro não possa ocupar.
Segundo o Mime Troupe, é preciso fazer com que as pessoas se encontrem novamente, incitá-los à cólera e ao sonho, levá-los ao afrontamento e, principalmente, ao desejo de se entregar ao teatro novamente. O Teatro da Guerrilha acredita que o público é o início da transformação e não seu mero espectador.
Isso aqui é uma guerra
Mais de cinqüenta anos se passaram desde que Davis e sua turma se rebelaram contra o teatro. São estrangeiros, é bem verdade, e suas aflições talvez não falem a nós brasileiros, ainda mais meio século depois da primeira batalha. Tão urgente quanto a necessidade do Teatro de Guerrilha nos tempos atuais é a percepção de que ele só é possível se negar, e se levantar contra, o colonizador.
Hoje, nesse país barco furado comandado por fanáticos religiosos, senhores de engenho e mega empresários, o teatro talvez corra riscos. Os ataques à cultura não cessam, por isso, enquanto acendo um cigarro olhando pro horizonte enegrecido pela tristeza, penso que a escuridão de uma trincheira talvez não seja tão diferente da escuridão de um palco. Se a guerra é um fantasma eterno, se o tiroteio de uma forma ou de outra é sempre no nosso quintal, a única saída é resistir. É travar uma luta por espaço, braço a braço, luta de guerrilheiro. É isso ou nada. É morrer de pé, resistindo, ou viver de pra sempre de joelhos.