O teatro brasileiro não precisa renascer, pois nunca esteve morto

Carta Aberta da Federação Catarinense de Teatro

Imagem: Reprodução

A Federação Catarinense de Teatro, patrimônio cultural do Estado de Santa Catarina, vem a público se manifestar sobre declarações do atual Diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Sr. Roberto Alvim, ao jornal O Globo, veiculadas na matéria “Promover o renascimento do teatro brasileiro é nossa missão agora”, do dia 24 de julho de 2019.

Para nós, entidade que congrega artistas, gestores e profissionais que atuam em diversos pontos do ecossistema produtivo do teatro catarinense e nacional, é alarmante ver declarações como as que foram proferidas pelo Sr. Roberto Alvim e sentimos o dever de pontuar algumas questões, buscando proporcionar à sociedade mais informações e contextos para a análise dos verdadeiros desafios que envolvem a produção artística e os direitos culturais no Brasil – e, neste caso, em especial, do teatro.

Não é crível que o teatro nacional necessite de qualquer tipo de renascimento, pois ele nunca esteve morto. São milhares de iniciativas teatrais no Brasil, profissionais e amadoras, que produzem, pesquisam e movimentam uma cadeia produtiva que gera milhares de empregos. São milhares de profissionais que atuam em diversas áreas da produção brasileira e que posicionam diversas obras do Brasil em local de destaque no panorama internacional. Temos festivais, programas, projetos e energia. Temos pesquisas com tecnologia, acessibilidade, desenvolvimento sustentável, saúde e muito mais. São programações que qualificam o turismo nacional, a vida nas cidades e contribuem com a melhoria de diversos quadros sociais. Temos pesquisas em todas as linguagens e ações de intercâmbio entre grupos e iniciativas teatrais do Brasil e do mundo.

Quando o Sr. Roberto Alvim cita “imensa maioria”, ao compartilhar que vê atualmente a produção nacional de forma “desmazelada, pautada radicalmente pela agenda progressista, com obras que são puro veículo de propaganda ideológica esquerdista” atesta sua extrema desconexão com a produção teatral nacional atual e o seu histórico, colocando em foco apenas sua percepção pessoal, que demonstra ser um recorte bastante restrito do atual panorama nacional, já que não se pauta em nenhum indicador e nem conceitua de forma nítida o que ele entende por “ideologia esquerdista”, termo que usa para classificar a imensa maioria da produção nacional. Pautar políticas nacionais por percepções individuais, isso sim, é aparelhamento ideológico.

O Brasil é diverso e não há uma única forma de ver arte e cultura que represente a todas as pessoas. Esse pluralismo é a nossa força.

O setor teatral possui diversidade suficiente para montar e realizar trabalhos de valor nas mais variadas linguagens e temas, para os mais variados gostos e idades. O setor teatral não necessita de interferência em suas estéticas e narrativas. O que é, inclusive, vedado pelo Art. 5º, inciso IX da Constituição Federal (CF). O que o setor necessita é da atuação do estado no que é o seu papel: regulamentação, fomento e garantia de direitos, principalmente no que tange aos aspectos de produção e fruição, capazes de garantir o acesso à arte e à cultura como direito fundamental do ser humano e como eixo estratégico para o desenvolvimento das novas economias, de forma atenta à CF, aos pactos nacionais e internacionais e às tendências mundiais debatidas em importantes fóruns sobre estes temas no mundo.

O setor teatral brasileiro necessita de atuação política respeitosa, diplomática, e atenta aos indicadores e cenários cientificamente passíveis de estudo para a tomada de decisão. Esta atuação deve se preocupar no atingimento das metas do Plano Nacional de Cultura (PNC), construído por meio de conferências realizadas em todo o Brasil e única política legítima para o desenvolvimento cultural nacional, justamente por suas diretrizes serem construídas a partir de consensos amplos. Não foram definidas por uma única equipe ou departamento de uma gestão e, sim, foram frutos de amplas discussões realizadas nos mais diversos cenários geográficos, sociais, econômicos e culturais. Esta é a única forma de construção capaz de proporcionar, de fato, um recorte mais assertivo e capaz de evidenciar o mosaico brasileiro das necessidades culturais. O PNC é lei e integra o Sistema Nacional de Cultura (SNC), que por sua vez está previsto na CF (Art. 216.). Não é necessário criar uma nova pauta, Sr. Roberto Alvim, pois o setor teatral e cultural nacional não muda a cada quatro anos como as gestões. Por isso o PNC é decenal e construído a muitas mãos. E isso deve ser respeitado.

O setor teatral necessita de um planejamento preocupado em integrar a política pública cultural às políticas econômicas, sociais, de saúde e educação. Necessita de fomento, pesquisa, estudos científicos e metodologias que proporcionem, cada vez mais, produções; a difusão do teatro em contextos adversos no Brasil; e a internacionalização das nossas produções. Na dimensão econômica, é necessário considerar que o teatro integra o setor criativo que hoje é responsável por 2,6% do Produto Interno Bruto brasileiro, mas apenas um terço da população frequenta museus e teatros. A cultura é uma indústria sem chaminés capaz de gerar emprego, renda, cidadania e contribuir de forma única com diversos outros setores na resolução dos desafios nacionais, ativando os outros 68 setores da economia. É um setor estratégico e que pode ser potencializado quando analisado de diferentes perspectivas e dimensões.

O setor teatral brasileiro necessita de respeito. Necessitamos de um pensamento conectado com os anseios do século XXI, que busque pesquisar os impactos e benefícios das artes para a saúde mental dos cidadãos brasileiros, que busque entender as formas de produção e fruição em todo o território nacional e como seus processos podem ser aprimorados. Necessitamos de investimento em Pesquisa e Desenvolvimento: quais os números do teatro no Brasil? Quais os arranjos criativos de hoje? Como esses arranjos contribuem com as outras áreas da vida? Quais programas estratégicos estão sendo estruturados para amplificar as potencialidades que já existem e estão presentes em todo o território nacional? Estas, ao contrário de outras, são as reais perguntas que temos que fazer se quisermos fomentar este setor, diverso, atuante, estratégico e muito vivo.

Esperamos, sinceramente, ações estruturantes e amplas, atentas às reais necessidades do setor. Não marcadas estritamente pelos posicionamentos dos governantes e, sim, criadas a partir dos dissensos que formam o nosso grande e diverso Brasil. Reduzir a discussão sobre o desenvolvimento teatral brasileiro unicamente às percepções pessoais que o Sr. Roberto Alvim chama de “ideologia de esquerda” ou, ainda, generalizar a produção brasileira sem dados quantitativos e qualitativos críveis é ignorar a cadeia produtiva do teatro, os profissionais que a integram e os reais desafios para o desenvolvimento nacional.

Atenciosamente,

Qiah Salla Federação Catarinense de Teatro

Presidente (Gestão 2018-20)

24 de julho de 2019

Link da carta aberta: http://abre.ai/cartaabertafecate

Foto: Sabrina Marthendal Evento: Rosa dos Ventos 2018

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.