O sonho brasileiro

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    Por Joana Zanotto, do Maruim.

    Pequenas crônicas de imigrantes que chegam ao Brasil em busca de trabalho e oportunidades. Recente fluxo migratório para Santa Catarina escancara alguns problemas de nossa sociedade, como o recrudescimento de ideias xenofóbicas e racistas.

    Enquanto voluntários e funcionários da Pastoral do Migrante, do Governo de Santa Cantarina e da Prefeitura de Florianópolis se dividem no ginásio Capoeirão, na parte continental da capital, para organizar a documentação dos imigrantes recém-chegados, Gasnet Riviere permanece sentado na arquibancada alheio à movimentação, aos colchões espalhados e à investida da imprensa. O jovem haitiano de 27 anos repete como se fosse um mantra trechos do livro que segura, a Bíblia: “Foi Deus que me trouxe aqui”, diz olhando para o alto.

    Ele é um entre as 177 pessoas do Haiti, do Senegal e da República Dominicana que passaram por Florianópolis entre os dias 25 de maio e 1º de junho. Apenas 86 pessoas permaneceram no estado (pouco menos da metade das que chegaram), sendo que 24 destas ficaram na capital e 37 seguiram para o Rio Grande do Sul, 12 para o Paraná e 9 para São Paulo. Os dados são da prefeitura de Florianópolis.

    O movimento inverso, que pode ser visto nos casos de pessoas que retornaram para estados ao norte de Santa Catarina, é o resultado de falhas de comunicação e organização por parte do poder público. A cientista social, integrante da equipe Pastoral do Migrante, Tamajara Silva, diz que os imigrantes saíram do Acre sem passar por triagem e que “muitos entraram nos ônibus sem saber para onde iriam.” No início deste ano, o estado da Região Norte foi atingido por uma enchente histórica.

    Gasnet Riviere

    Gasnet Riviere saiu do Haiti no dia 26 de abril e passou por Cuba, Equador e Peru antes de chegar ao Brasil. Ele relata ter sido tratado de forma bruta, como um “animal”, em Rio Branco, por onde entrou no Brasil. Ele subiu no primeiro dos nove ônibus que partiram do Acre para Florianópolis, uma viagem de 2815 Km, há duas semanas. Entrou no veículo sem saber para onde iria, como muitos outros. Mas, diferentemente da maioria, não conhece ninguém no novo país.

    Gasnet deixou a pátria, mãe, pai, irmão e irmã em busca do sonho brasileiro. “Aqui terei sucesso”, garante. No Haiti, trabalhava como motorista e no comércio, está disposto a atuar em qualquer área que o garanta algum dinheiro. Apesar de falar com admiração sobre o país que o recepciona, principalmente sobre o futebol, não esconde a tristeza que o atingiu nos últimos dias. A dificuldade com a língua é um dos empecilhos para começar uma nova vida. Ainda não conseguiu conversar com ninguém por tempo suficiente para transpor a barreira da superficialidade. Fala o cioulo haitiano, língua oficial do país juntamente ao francês. Chegando em Florianópolis, antes de ser encaminhado ao ginásio, ficou quatro dias hospitalizado por ter se sentido mal após os três dias de viagem.

    A angústia de Gasnet parece ter diminuído com o tempo. No dia 30 de maio, quando retornou do hospital, sua atenção estava totalmente voltada ao livro sagrado que carregava consigo. Depois de três dias, a reportagem o encontrou mais relaxado: ele escutava música, com o fone de ouvido pendurado na cabeça, e contou que gosta de cantar para as mulheres, que depois de Deus, são sua maior paixão.

    Isso porque o clima no ginásio Capoeirão não estava tão pesado nos últimos dias de abrigo quanto na primeira semana depois do desembarque tumultuado. A assessoria da Secretaria Municipal de Assistência Social informou que as articulações foram ampliadas após reunião convocada pelo Governo Federal, no dia 27 de maio, entre os três estados da região sul, São Paulo e Acre.

    Boubacar Dieye

    Boubacar Dieye está sempre conectado à internet, conversa pelo Skype com a família e com os amigos deixados no Senegal e em Chapecó. Aos 37 anos, completou um de vivências no Brasil. Em 2006, abandonou a terceira maior cidade do Senegal, Thiès, para empreender uma jornada de buscas que ainda não chegou ao fim. “Na vida, a gente procura sempre crescer mais financeiramente”, explica com um francês irretocável. Em uma nação com ao menos 36 idiomas, sua língua nativa é o pulaar, falada pelas pessoas da etnia Fula e Toucouleur, em países do oeste africano. Boubacar ainda domina o wolof, predominante no país e presente em alguns dos países vizinhos, e arrisca diálogos em inglês, alemão e português.

    O vivaz poliglota, comunicativo e sorridente, é formado em Letras-Francês e lecionava em escolas privadas?—?apesar de o francês ser a língua oficial do país, seu uso está restrito a uma elite. Depois do colégio em que trabalhava fechar as portas, Boubacar peregrinou pela região central do continente ancestral. Veio a terras latino-americanas em 2013, passando pela Espanha. “A França não me quis”. Conheceu o Equador, a Bolívia, o Peru, e chegou ao Brasil pelo Acre. Após trabalhar em empresa de terraplanagem no oeste catarinense, veio a Florianópolis tentar um ofício mais rentável.

    Todo final de mês envia dinheiro à esposa, à mãe e à filha. Há fotos das duas últimas estampadas na tela de fundo do celular. Aqui, Boubacar descobriu que a moeda brasileira não é o dólar?—?e isso foi uma grande decepção, pois o salário que recebe não é o suficiente para que consiga poupar e viver com conforto. Pretende receber mais para futuramente bancar uma passagem de volta ao Senegal. Quer aprender a desempenhar outras funções, como a de motorista, ou então voltar a lecionar.

    Empresas interessadas por mão de obra estão entrando em contato com a prefeitura da capital por meio do Instituto de Geração de Oportunidades de Florianópolis (IGEOF). O coordenador da organização, Xandão Souza, conta que a partir da solicitação do empregador, realiza-se uma pré-seleção com base nos cadastros preenchidos no Capoeirão durante a triagem. Até o fechamento da reportagem, 21 das 24 pessoas que permaneceram na cidade conseguiram emprego, com moradia e alimentação inclusas. A Secretaria Municipal de Assistência Social garantiu que não há nenhum desses imigrantes em situação de rua no município. “Todos serão abrigados até assinar um contrato”.

    O problema é a falta de fiscalização das condições de trabalho e de moradia às quais os haitianos estão submetidos. Os contratos são assinados diretamente com a empresa pelos recém-chegados, a maioria ainda sem conhecimentos específicos acerca da legislação e dalíngua local. O doutorando em Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luís Felipe Magalhães, que integra o projeto Observatório das Migrações em Santa Catarina, atenta para as condições de vida dos imigrantes com os quais teve contato durante os trabalhos de campo do observatório, em Chapecó. Segundo ele, grande parte dos haitianos contratados pelos frigoríficos é alocada no setor de “pendura”, em que precisam intercalar movimentos para cima e para baixo repetidas vezes. “Eles recebem menos em relação aos brasileiros para desempenhar a mesma função, além da pressão que sofrem diariamente”, completa Luís Felipe.

    Rosemila Charles

    Para as mulheres a situação é mais difícil. Xandão Souza diz receber menos ofertas de trabalho direcionadas às haitianas no IGEOF. A professora Gláucia de Oliveira Assis, que coordena o Observatório das Migrações em Santa Catarina, afirma que, além das demais discriminações que sofrem os imigrantes, as mulheres são discriminadas pelo gênero. Ela afirma que elas têm pouca visibilidade na mídia e nos setores de trabalho em que são inseridas, geralmente no setor de serviços domésticos e hoteleiros ou em copas de restaurantes.

    Rosemila Charles, 28, é uma das 21 mulheres que receberam abrigo no Capoeirão. Quando perguntada porque tão poucas viajaram como ela, responde que “só os fortes conseguem. É muito fatigante”. Manicure e pedicure, Rosemila esbanja vaidade. No futebol, joga na posição lateral. Adora a simpatia dos brasileiros e idolatra os jogadores da Seleção, principalmente a atacante Marta da Silva, da Seleção feminina. Futebol e música são seus melhores amigos e se considera uma pessoa solitária. Ao vê-la integrada às diversas rodas de conversa sob o abrigo no ginásio, é difícil perceber essa mulher, falante e risonha, como uma pessoa solitária. Rosemila fala crioulo e francês fluente, além de um pouco de espanhol e português.

    A haitiana de Porto Príncipe veio ao Brasil para ajudar a família. É a caçula de quatro irmãs mais velhas. O salário que recebia no Haiti não lhe dava a oportunidade de construir uma vida independente, por isso morava com a madrinha, na cidade natal. Rosemila pensa fundamentalmente no trabalho que precisa arranjar. E não esconde a vontade de formar família aqui e de frequentar os clubes de música eletrônica. Conhece por nome os artistas do sertanejo universitário brasileiro. “Escuto o som do lugar que vou”, conta.

    Ela não gosta de falar sobre os dez dias que esteve em Rio Branco, onde passou “muito mal”. Comenta apenas que dormir e satisfazer as necessidades básicas de higiene pessoal eram tarefas árduas. Em Santa Catarina, pretendia ficar na casa do primo em Videira, no entanto no dia em que chegou no estado recebeu a notícia de que seu anfitrião não poderia mais hospedá-la. Diante do telefonema, soltou meia dúzia de palavrões, jogou a bolsa no colchão, desapontada, mas alguns minutos depois voltou a se entreter em alguma roda de conversa.

    Fechamento do abrigo no Capoeirão e encaminhamentos

    No dia 1º de junho chegou o último ônibus enviado pelo governo do Acre e no dia 3 o Capoeirão encerrou o abrigo. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, os 24 haitianos que chegaram na capital e não conhecem nenhum amigo ou parente para auxiliá-los, permanecem na cidade, em abrigos conveniados à prefeitura. Gasnet Riviere não conhece ninguém no país. Até o dia anterior ao fechamento do Capoeirão não sabia onde ficaria. A reportagem não conseguiu contato para saber se Gasnet foi empregado. Boubacar Dieye quer trabalhar em Florianópolis?—?ele conseguiu abrigo na prefeitura de Itapema e pretende retornar à capital. Rosemila Charles acabou tendo que viajar para Videira e hoje anseia por retornar à Florianópolis.

    Os dados do IGEOF constam que 35% dos que conseguiram emprego via instituto atuarão como mecânicos e 20% como pedreiros. No Capoeirão, preencheram o cadastramento pessoas de diferentes níveis escolares, inclusive alguns com curso de graduação completo. Entre as fichas é possível encontrar gente que trabalha com construção civil, eletricista, cozinheiro, costureiro e músico.

    “A experiência migratória, no geral, é permeada de frustrações. Na principal delas, desfaz-se a ilusão criada, ainda no Haiti, de que no Brasil os salários seriam altos, permitindo grandes remessas e mesmo a vinda de seus familiares em pouco tempo. As duras condições do mercado de trabalho e a discriminação sempre presente nas cidades brasileiras rapidamente abatem sobre os imigrantes, mostrando uma triste face do projeto migratório. Outra decepção bastante frequente é a dificuldade de continuar os estudos e de validar diplomas e documentos”, constata Luís Felipe, da Unicamp. Apesar disso, segundo seu questionário de entrevistas em Balneário Camboriu as respostas quanto ao desejo de retorno “indicam que a maior parte dos imigrantes entrevistados desejam retornar ao Haiti apenas para visitar a família e logo voltar ao Brasil. Há também um grupo de imigrantes que pretende seguir para outros países”.

    Luís Felipe explica o crescente fluxo migratório de pessoas para o Brasil. “Não há uma data exata, mas se deve reconhecer o impacto decisivo da crise capitalista de 2008 sobre as condições de trabalho nos países centrais, destinos tradicionais da migração de países como o Haiti, Senegal e República Dominicana. Também colaborou para isso a presença empresarial e militar brasileira no Haiti, que segundo um conjunto de autores, dissemina informações falsas e imprecisas sobre o Brasil. E o ciclo expansivo da economia brasileira nos últimos anos, o que explica também sua expansão para o exterior, que abriu postos de trabalho, especialmente de baixa remuneração.”

    Não é de se estranhar a escolha dos migrantes de virem para cá. Desde 2004, o Brasil coordena a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, intensificando as relações estreitas com o país caribenho. A missão tem contestações: “Como suporte da expansão econômica, necessita cada vez mais ocupar os postos da gerência capitalista internacional, como o Conselho de Segurança da ONU, por exemplo. A participação nas missões militares de estabilização promovidas pela ONU, e particularmente a participação como coordenador no caso do Haiti?—?em uma conjuntura em que as forças militares de outras potências concentravam-se na chamada guerra ao terror no Oriente Médio?—?são exemplos desta necessidade. Sob o véu da liderança das forças de paz no Haiti, a presença brasileira no país é condicionada pelos fatores acima descritos, o que explica a forte presença de empresas brasileiras no mercado local e a ação estratégica especialmente daquelas empresas que se ocupam da reconstrução do país, as empreiteiras e grandes construtoras brasileiras”, pontua Luís Felipe no seu artigo O Haiti é Aqui: Sub Imperialismo Brasileiro e Imigrantes Haitianos em Santa Catarina.

    Segundo Gláucia, os haitianos assumem a cultura migratória diante de situações de crise no país. O terremoto de janeiro de 2010, portanto, não desencadeou sozinho o movimento migratório, mas estabeleceu um novo fluxo, com novos destinos. Dados da Polícia Federal referentes ao período entre janeiro de 2010 e março de 2014 atestam que os principais municípios de residência dos imigrantes no Brasil são, em primeiro lugar, São Paulo, com 24% do total, seguido por Manaus com 13%. Em Santa Catarina, Itajaí ocupa a 12ª posição, Balneário Camboriu, a 16ª, e Chapecó, a 17ª.

    Luís Felipe elucida os três momentos que marcam a chegada de haitianos no estado. “Iniciada ainda nos últimos meses de 2010, ela se explica pelo recrutamento de três empresas catarinenses, que buscavam mão-de-obra qualificada e barata, na região de fronteira do Brasil com o Peru, no Estado do Acre, para trabalhar na região do Vale do Itajaí. No segundo momento, esses imigrantes passaram a se organizar em associações, o que inseriu e de forma importante o tema de suas redes sociais (associações, bares, lan houses, locutórios) como pontos de encontro e de comunicação com seus familiares no país de origem. No terceiro momento, os imigrantes já residentes no Brasil passaram a trazer seus parentes, em especial esposas e filhos, usufruindo de um visto específico chamado ‘visto de reunificação familiar.’”

    Dessa maneira, sabe-se que a vinda de imigrantes para a região sul não é novidade. O que gerou grande circulação de comentários e notícias sobre o assunto foi a concentração de ônibus com imigrantes de Rio Branco para Florianópolis, nas duas últimas semanas, após os governos do estado do Acre e de São Paulo declararem não ter mais condições de receber novas pessoas e reclamarem por políticas públicas do Governo Federal.

    Xenofobia e racismo

    Santa Catarina, que não se cansa de exaltar a presença de imigrantes europeus, principalmente no século XIX (muitas vezes ignorando ou menosprezando a presença de afro-descendentes e indígenas no processo de constituição social e identitário) é palco de demonstrações de racismo e xenofobia. Diferentemente da vinda de outros migrantes, não tão debatida pela mídia, a passagem dos 177 imigrantes ganhou destaque e repercussão. Segundo dados do IBGE de 2010, o estado foi o que mais recebeu migrantes de outros estados e imigrantes de outros países entre 2000 e 2010. O mesmo relatório revela que a maioria dos migrantes veio da própria região sul (67,8%) e que, entre os imigrantes, a maioria veio dos Estados Unidos (4.418 mil pessoas).

    O estudante Pierre Joseph Nelcide é do Haiti e já disse muitas vezes: “do Haiti, haitiano, como os irmãos que passaram pelo estado nas semanas passadas”. Cansou de responder pré-julgamentos, camuflados nas perguntas cotidianas: “Conheces o norte do país”? “Como é o Acre”? Ele sente que as pessoas o consideram menos haitiano por estar na universidade e ter chegado ao país de avião. Joseph atualmente é pós-graduando da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Em 2010 foi instituído o Programa Emergencial PRÓ-HAITI em Educação Superior, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Na portaria, são enumeradas considerações, como “a necessidade de contribuir com a reestruturação das universidades haitianas, como parte do esforço para a reconstrução do país” e “o Memorando de Entendimento entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Haiti para a reconstrução, o fortalecimento e a recomposição do Sistema de Educação Superior do Haiti”, assinado em 25 de fevereiro de 2010. A ação promove “graduação-sanduíche”, em que parte do curso acontece no Haiti e parte no Brasil.

    Joseph veio a Florianópolis em 2011 pelo programa. Como demorou um ano desde a inscrição até a chamada, diferentemente de muitos outros conterrâneos, pode finalizar o curso no país de origem. Poderia escolher outro curso de graduação, mas se interessou pelo mestrado e passou no processo seletivo. Joseph conta que ”se fosse relatar casos de racismo e xenofobia passaria um dia inteiro falando”. Ele diz conhecer seus direitos e luta para que eles sejam respeitados.

    Uma vez, ao tentar alugar uma casa no bairro Pantanal com um amigo, foi informado pela empregada doméstica que dois quartos estavam disponíveis. Porém ele precisava entrar em contato com a proprietária. Ao saber que os dois interessados eram haitianos, a dona da casa negou a existência das vagas. Desconfiados, pediram para uma amiga branca tentar conversar com a mulher e ela ofereceu na mesma hora o dormitório.

    “Eu quero que as pessoas mudem a imagem feia que têm do meu país, como eu mudei a imagem que tinha do Brasil vindo para cá. Eu conhecia carnaval e futebol. Hoje eu conheço a Universidade Estadual de São Paulo (USP), a maior da América Latina”, fala Joseph.

    Foto: Giovanni Bello

    Fonte: Maruim

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