O risco da normalização da misoginia

Associar a cena a que foi submetida Patrícia Arce aos suplícios a que eram submetidas as mulheres condenadas como bruxas é uma forma de alerta para o risco que o patriarcado e o capitalismo representam às várias gerações de mulheres.

Prefeita de Vinto, Patricia Arce, fala à imprensa após ser atacada e humilhada em público. 6 nov. 2019.  Foto: Jorge Abrego/EPA-EFE

Por Lídice Leão.

A imagem da política boliviana Patrícia Arce cercada por homens mascarados, conduzida compulsoriamente dentro de um cordão de isolamento, descalça e com tinta derramada por todo o corpo tomou a internet nos últimos dias. Arce, prefeita do município de Vinto, de 60 mil habitantes, pertencente ao departamento de Cochabamba, teve os cabelos cortados à força e seguiu xingada durante todo o trajeto que foi obrigada a fazer. Na entrevista que deu após ser resgatada por policiais, deixou clara sua intenção de resistir: “sou livre, não vou me calar; se querem me matar, que me matem”. O fato se repete: mais uma vez, uma mulher que resiste é alvo de ameaças, ataques e atos violentos.

A cena da mulher agredida, rendida, cercada por homens – só homens – armados com paus e aos gritos, remete aos casos de caça às bruxas abordados por Silvia Federici em Calibã e a bruxa e, mais recentemente, Mulheres e caça às bruxasem que ela lembra que as acusadas eram expostas em seu estado mais abjeto: “presas por correntes de ferro e entregues ao fogo”. Quando a prefeita Patrícia Arce avisa, após sofrer todos os ataques, que é livre, não vai se calar e se a quiserem matar, que a matem, expõe ao mundo o risco a que a mulher resistente corre, desde o século XVI: à morte. Lá nos séculos XVI e XVII, as acusadas de serem bruxas eram mulheres que não se resignavam à subordinação ao mundo masculino, condição imposta pelo capitalismo emergente pós-feudalismo. O poder dessas mulheres podia “contaminar” uma sociedade patriarcal que nascia aos poucos e era um risco para o então incipiente capitalismo. Afinal, para que a propriedade privada e a cultura do lucro vingassem, as mulheres deveriam ficar confinadas em casa, cuidando dos homens que gerariam riquezas – para ele ou para os patrões – e reproduzindo, ou seja, gerando a prole para aumentar a mão de obra.

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Se o destino daquelas mulheres era a fogueira – não sem antes terem os corpos desnudados, depilados e perfurados com longas agulhas por toda parte em busca de uma suposta “marca do diabo”, geralmente diante de homens notáveis e sacerdotes, como escreve Silvia Federici em Mulheres e caça às bruxas –, o roteiro escrito para a boliviana Patrícia Arce pelos homens mascarados que a cercaram foi o que ilustrou a cena descrita no começo desta texto: agressões físicas, xingamentos, sujeira do corpo com o derramamento de tinta e o corte de cabelo, como símbolo reconhecido da misoginia.

O que aconteceria com a prefeita de Vinto se não tivesse sido socorrida, resgatada? Impossível não considerar a hipótese da sua morte. Impossível não considerar que os mascarados que a raptaram não parariam no suplício a que a expuseram. Impossível não lembrar de Foucault e da sua definição de morte-suplício: a arte de reter a vida no sofrimento. Ele escreveu que o suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento; o suplício faz correlacionar o tipo de ferimento, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Foucault não fala em gênero, mas o diálogo entre essa reflexão e a misoginia é possível quando a associamos aos ataques proferidos contra Patrícia Arce. O suplício a que foi submetida contou com a sujeira do corpo da mulher e com o corte de cabelo, “penas” aplicadas à acusada por ser mulher. Como as bruxas que eram desnudadas, depiladas e perfuradas diante dos homens.

O sofrimento faz parte da penalidade imposta às mulheres vítimas de ataques de misoginia desde o século XVI. É como se fosse uma etapa pré-morte. Também sem abordar o gênero, mas com uma associação possível, o antropólogo árabe Talal Asad analisa o sofrimento e a dor dos corpos no contexto da colonização europeia mundo afora que nos faz refletir sobre a normalização de ataques como o sofrido por Patrícia Arce e por milhares de mulheres. Ele afirma que somos inclinados a pensar que, ao menos em sociedades em vias de humanização – ele se refere aqui aos povos colonizados pelos europeus, que só consideravam humanizadas as sociedades já colonizadas – uma variedade cada vez maior de dores infligidas tende a ser considerada inaceitável com o passar do tempo. Entretanto, prossegue, em alguns casos, o comportamento que já foi chocante por causar dor pode não mais sê-lo. Como exemplos, cita as prisões: quando mais e mais pessoas são colocadas nas celas, o sofrimento a que são submetidas passa a ser outro, é como se o grau pudesse ser aumentado; também, durante as guerras, há a imposição de formas crescentes de sofrimento nos campos de batalha. Uma hipótese de dedução: quanto mais se sofre, mais o sofrimento é normalizado.

Portanto, é urgente a atenção para a normalização – ou até para a normatização, já que, em muitos casos, o próprio estado é o agente da crueldade – do sofrimento das mulheres diante das mais diversas situações de misoginia. Associar a cena a que foi submetida Patrícia Arce aos suplícios a que eram submetidas as mulheres condenadas como bruxas é uma forma de alerta para o risco que o patriarcado e o capitalismo representam às várias gerações de mulheres.

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Lídice Leão é jornalista, articulista do Jornal do Brasil, mestranda em Psicologia Social na USP e integrante do LAPSO – Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP.

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