O reproche à exposição “Cu é lindo” e o conservadorismo atual

Foto: Divulgação/exposição.

Por Elissandro Santana, para Desacato. info.

Nas comunidades e redes sociais das quais faço parte, nos últimos dias, uma notícia desestabilizou a “paz” das pessoas sob a égide da reação, a Exposição “Cu é lindo”, da Mostra Devires.

No discurso de vários membros de umas 8 comunidades nas quais interatuo, com frequência, destacou-se a argumentação, pouco eficiente, de que o Governo do Estado da Bahia, em especial, a Secretaria de Cultura, não poderia brincar com os impostos dos baianos na aprovação de uma arte “obscena”.

Em cartaz, no Instituto Goethe, na capital baiana, até o dia 12 de agosto, a exposição tem provocado e proporcionado diversas reflexões nas mídias digitais e redes sociais no estado e em todo o país.

A reação negativa à mostra artística é deveras preocupante, pois isso nos leva a pensar que o brasileiro, realmente, se perdeu no tempo e no espaço, esquecendo-se de quais seriam as causas que deveriam ser combatidas no momento – a corrupção, a opressão, o preconceito e toda e qualquer exploração que impede o baiano e o brasileiro de visualizarem esperança e alegria no futuro.

O ânus, como parte do corpo, não deveria ser motivo para reproche. Além disso, faço questão de mencionar que se a mesma ojeriza contra o Cu tivesse se materializada na ação contra o aumento dos combustíveis que levou milhões de brasileiros às filas quilométricas dos postos com selfs e risos, contra o golpe e destituição de uma presidenta eleita de forma democrática e, principalmente, contra os abusos de poder em várias esperas, nos quatro poderes, no executivo, no legislativo, no judiciário e na mídia empresarial golpista, até pararia para ouvir os reclames e argumentos contra o Cu é lindo, ainda que com críticas à aversão dos retrógrados ancorados no medo do reconhecimento de que o possuem.

O cu como arte pode ser mais que importante, é um campo para reflexão e deleite artístico. Sem contar que a arte nunca estará presa à estética do possível. Ela comporta o infinito, ultrapassando os limites das normatizações padronizantes e padronizadoras. Ela mostra que outras narrativas são viáveis brincando conosco e fazendo com que brinquemos com/no mundo. Ademais, a arte, independente do meio pelo qual se vale para produzir em nós a catarse, não deveria nos assustar. Ao contrário, deveria nos levar ao espanto, ao autoconhecimento de nossas limitações de pensamento e de práxis.

E quando penso nos argumentos que estão usando para desqualificar a exposição artística acerca da desnaturalização das relações entre sexo, gênero, visualidade, raça e poder a partir da proposta de Kleper Reis, sou levado, gravitacionalmente, a pensar que toda pessoa deveria conhecer, em profundidade o que é arte, sem censurá-la, antes de sair por aí dando uma de analista.

Por fim, diante do quadro perigoso de análise reacionária não somente em relação a esta exposição, mas a qualquer questão-tabu, todo brasileirinho deveria conhecer o que Deleuze in Guattari, na obra “O que é filosofia” para entender o medo de alguns sobre os não limites impostos por um objeto artístico tão filosófico quanto o cu: pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas ideias. E por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, ontiguidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” (o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anti-caos objetivo: “Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado […], minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento, o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha.” E, enfim, para que haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação se reproduza, como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos, com nossos órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma opinião, como uma espécie de “guarda-sol” que nos protege do caos.

No mais, resta-me dizer que nem todos condenam a referida exposição e isso sim é motivo para esperança. Por último, cabe-me externar, sem medo de ataques, que toda reação sem causa à exposição só demonstra que as pessoas precisam compreender, com urgência, que a arte não encontraria limites no ânus e nem em nenhuma outra parte de nosso corpo.

Como diz minha amiga Elaine Amaral, as pessoas não olham para os próprios orifícios e, quando têm a oportunidade de refletirem sobre, se assombram com o cu alheio. Mas é isso, um dos papéis do artista, da arte em si, é a eterna provocação.

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Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes e do Evolução Centro Educacional, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

6 COMENTÁRIOS

  1. Olá, venho agradecer pelas palavras articuladas no texto. Difícil traduzir os sentimentos que senti em ler. Muito importante! Excelente reflexão!

    • Caro poeta, tua obra é libertária e um artigo é pouco para descrevê-la!
      Eu, como colunista/tradutor do Desacato e professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes, me senti imbuído da missão de discorrer sobre tua produção tão provocadora!
      Nós somos gratos por tua coragem, ousadia e talento!

  2. Super texto!
    As pessoas não olham para seus próprios Cú e quando tem a oportunidade de refletir sobre, se assombram com o Cú alheio. Mas é isso, o papel do artista, da arte em si, é a provocação.

  3. Kleiber Reis, teu nome se parece com o nome que assina a exposição. Se for, o parabenizo pela provocação artística. Este país precisa mergulhar em artes libertadoras e deixar a colonialidade mental no passado!
    Querendo, meu caro, pode entrar em contato comigo através do e-mail [email protected] para trocarmos ideias e abrirmos a oportunidade de uma entrevista escrita para este periódico.

    Abraços!

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