Por Matheus Pichonelli.
Jennifer Lawrence em cena do filme Mãe!, de Darren Aronofsky
Mãe!, novo filme de Darren Aronofsky, entrou em cartaz no Brasil no momento em que o país discute limites da arte e os supostos perigos da representação humana (e de sua perversidade) na obra de arte.
Antes que novos ruídos sejam ouvidos por aí, é melhor tirar as crianças da sala: trata-se da releitura da maior das representações da perversidade humana, todas contidas na Bíblia: fratricídio, traições, quebras de confiança, violência, holocausto, dilúvio, luxúria, vingança.
O filme faz qualquer trabalho de Lars von Trier, famoso pela crueldade de seus personagens, parecer esquete da Praça é Nossa. Conta a história de um casal, interpretado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, que, em busca da paz do campo, tenta reconstruir uma casa incendiada e começar uma nova vida.
Essa paz é quebrada pela chegada de um desconhecido que, desavisado, bate à porta em horário impróprio e é convidado pelo marido, sem o consentimento da companheira, a ficar. Ele fica.
Com ele, a porta se escancara para o restante de sua família, amigos e conhecidos, que sem pedir licença quebram todas as normas da boa convivência. Fumam, apesar da reprimenda da dona da casa. Fazem barulho. Penetram cômodos proibidos. Desrespeitam a privacidade do casal.
A mulher, de quem a opinião ou a vontade nunca é observada, acompanha tudo com espanto. O marido, um escritor, parece encantado com as visitas, sobretudo quando descobre que são seus leitores e fãs.
Os intrusos promovem ali todo tipo de barbaridades, e a dona da casa, afrontada, parece não saber lidar nem com os desaforos das visitas nem com a boa vontade do marido anfitrião.
Até que aquela casa se transforma no cenário de uma tragédia.
Nesta primeira parte, que podemos compreender como a releitura do Velho Testamento, muitas referências surgem na tela. O fruto proibido. A violação do Paraíso. Caim e Abel. O dilúvio. A expulsão do Paraíso.
Livre dos visitantes, como um mundo que se reinaugura após a tempestade, os donos da arca passam a esperar a chegada de um bebê, de antemão descrito como salvador. É a luz para um cenário composto de traumas e sombras.
O anúncio do filho é a inspiração para o homem voltar a escrever. A obra é finalizada quando a mulher está prestes a dar à luz.
“Então vou te perder?”, ela pergunta, após ler o poema que logo se tornaria em Livro Sagrado.
O manuscrito é prontamente aceito pela editora, e a sua publicação dá início a uma espécie de romaria até a casa do autor/criador, que organiza uma noite de autógrafos para uma multidão encantada enquanto a mulher mal consegue carregar o próprio peso.
A história daquele nascimento, como a fuga para o Egito, é conhecida: aquele filho adorado vai ser entregue a uma multidão em fúria que não o compreende. Será, em seguida, morto e crucificado.
Esta é a história que conhecemos sob o olhar de um Deus misericordioso, acolhedor e pai de toda a criação. Se no começo era o verbo, é ele quem tem o poder de gerar a vida por meio da palavra (lembrei da passagem do documentário Imagine, em que John Lennon recebe em sua casa no campo um fã que atravessou rios e florestas para bater à sua porta e ouvir que não, as músicas dos Beatles não eram feitas para ele, eram apenas jogos de palavras que não justificavam aquele fanatismo. Lennon seria assassinado pouco depois por um outro fã).
Na narrativa oficial, temos daquela mãe a leitura da figura intercessora. Que assiste a tudo com espanto, mas pede ao pai que tome a decisão conforme a sua vontade.
No filme, escrito e dirigido por um homem, como os sucessores da pedra angular sobre a qual é fundada a tradição cristã, cabe à mãe romper o papel de observadora, a certa altura da história, e convocar o Apocalipse.
Pudera: a casa está tomada, seu filho foi oferecido em sacrifício para um mundo que não se emedou. Suas chagas serão cutucadas, seu corpo e seu sangue serão devorado pelos seguidores, num ritual macabro que, pelos olhos da mãe, os mesmos olhos dos espectadores, antes provocam a revolta do que devoção ao mistério.
A essa altura, muitos espectadores já haviam abandonado a sessão, ao menos na minha sala. Os que ficaram ou riram de nervoso ou bufaram alto.
O filme, de fato, é carregado e poluído. Grita com o espectador como se ele corresse algum risco de não relacionar as passagens bíblicas com o mundo atual, também tomado de perversidade, muitas engendradas em nome de algum criador, como pai do filme.
O estado de loucura observado naquela casa é o estado de loucura da sociedade contemporânea que, na busca por respostas, promove todo tipo de confronto na fila para a salvação.
Concentrados nos corredores daquela casa violada estão não apenas as alegorias bíblicas, mas muitos dos fenômenos que cansamos de observar no presente. As mobilizações. As torturas. As guerrilhas. As guerras santas. As justiças com as próprias mãos. Os morteiros. Os extermínios. A violência policial. A ação desordenada de assaltantes. Os testes da paciência divina. A espera em compasso pela vingança dos criadores.
Esse novo mundo em gestação, mostra o diretor, pede uma implosão na base – e o universo como conhecemos é resultado de uma grande explosão de astros e satélites.
Cabe tudo isso em uma casa de campo? Caber não cabe, mas a ideia do diretor era justamente causar indigestão.
Mais do que um profeta do Apocalipse, Aronofsky deixa em aberto uma série de possibilidades de leitura. Que divindade é aquela mãe? Seria a natureza? Seria o equilíbrio perturbado por uma ordem de ocupação e destruição?
Ou aquela casa é apenas uma impossibilidade real de isolamento? Uma casa atravessada por todos os conflitos mundo afora, como as casas onde residiam mulheres e crianças e foram também destruídas por morteiros na Síria, no Iraque, no Afeganistão?
Ou seria aquela mãe apenas, e não somente, uma…mãe – uma mãe que compreende a dimensão da solidão da gestação, dos cuidados da casa, da vigilância de uma paz quebrada por estranhos que apontam para ela o tempo todo o que e como deve ser enquanto o companheiro tem toda a disposição, sobretudo física, para se dedicar a outros projetos fora do lar, como o livro definitivo sobre a humanidade?
Essa mãe, que se depara o tempo todo com o lado vazio do marido na cama, não é só abandono. É a mãe em estado de desespero. Que ousa gerar uma nova vida em um mundo em conflito e desarranjo. Não importa o quanto grite, poucos darão ouvidos e muitos já foram suficientemente engolidos pela ideia de que é preciso matar para não morrer.
Eis um mundo pronto para estraçalhar, até mesmo em nome de Deus, o que amamos e carregamos de melhor dentro de nós.
Fonte: Carta Capital