- Por Diego Ferrari no Correio da Cidadania.
- 29/06/2020
“É aprender com tudo o que foi feito
e também com tudo que deixou de ser feito,
como rasgar o caminho da esperança
que lateja, que lateja,
na frágua da paciência operária”.
Thiago de Mello – “Aprendizagem no vento”
Estas palavras não se destinam a ser colocadas entre fronteiras nacionais. Mas creio que é fundamental contar que escrevo a partir do Brasil, onde eu moro há mais de 7 anos. Aqui, progressivamente a morte maciça toma conta do cotidiano e o desprezo pelos mais fracos envolve o pensamento hegemônico. Escrevo isto em meio a mobilizações convocadas para denunciar a negligência e o abandono do povo antes e durante a pandemia. O grito de “Fora Bolsonaro” vai crescendo e vai se articulando ao longo e largo do maior país da América Latina.
Neste território, há semanas a convivência com a pandemia produz cerca de uma morte por minuto, e todos os gráficos mostram que a linha de propagação da COVID 19 continua aumentando sem projetar nenhum tipo de curva. Esta situação nacional específica é principalmente produto das políticas eugenistas que aceleram a morte dos mais fracos. São amplamente conhecidas e divulgadas as ações do governo neofascista brasileiro. Seria inesgotável a quantidade de barbaridades que podem ser listadas para descrever este governo que, enquanto brinda com leite pela supremacia branca e garante a propagação do vírus através da festa da mercadoria, apoia a criação de movimentos autônomos de extrema-direita e ataca a divisão de poderes dentro do próprio Estado. Assim, dinamiza os seus próprios conflitos internos para ocupar todo o cenário político institucional, impede sistematicamente a atuação de profissionais de saúde e até reprime manifestações pela vida.
O debate sobre as manifestações foi intenso e dividiu as pessoas que querem cuidar e se manifestar a favor da vida neste cenário. Como se manifestar em tal contexto? Será responsável chamar a encontrar-se nas ruas neste contexto? É possível continuar sem expressar a indignação diante de tanta morte? Se nos Estados Unidos, epicentro da pandemia, o povo saiu à rua contra o racismo por que nós não vamos sair? (1). A confusão continua e aumenta a angústia. Uma coisa é certa: o vírus impõe que para o cuidado da vida se mantenham somente ativos os serviços essenciais. A luta contra o neofascismo será um serviço essencial para realizar durante os finais de semana quando os serviços não estão funcionando?
Vejamos (se possível) através e além da conjuntura
Não podemos culpar Deus por trazer o vírus, muito menos agradecê-lo. O Coronavírus também não é uma invenção de laboratório com fins de guerra bacteriológica, embora os tempos geopolíticos tragam múltiplos elementos para alimentar esse presságio. Também não podemos culpar o vírus pela crise em que o sistema econômico se encontra atualmente mergulhado. A pandemia, e as ações realizadas contra ela, permite que as contradições mais profundas consigam evidenciar-se mais nitidamente na superfície. É uma realidade comprovada: o capitalismo, além de produzir cada vez mais riqueza e pobreza no mesmo processo de produção, também produz ciclicamente (entre outros elementos) crises, revoltas populares e pandemias; e cada vez em um patamar mais profundo, global e difícil de controlar. Enfim, na contundência da análise da Marina (2): a culpa da crise não é do vírus.
No sistema atual, sem trabalhadorxs não há produção de riqueza. Se pararmos a produção, o sistema vacila. Este fenômeno pandêmico, inédito em nossa história e em um momento de grande velocidade das comunicações em nível global, exige à fábrica de pensamento das ciências sociais, e a todas as mediações formadoras de opinião, a explicação de intelectuais científicxs e políticxs consagrados que, além de contribuírem com importantes e fundamentais dados sobre o que está acontecendo, se animaram também a projetar afirmações que mais têm a ver com desejos pessoais e coletivos que com tendências reais a encerrar a análise do movimento do real.
Ninguém ficou sem falar da pandemia, em notas de opinião, palestra ao vivo pela internet (“lives”), memes, e outras formas precárias em que se expande hoje o debate político. Assim passamos a ler e escutar sobre um possível “nocaute ao capital”, “o fim do neoliberalismo”, o impacto sobre o meio ambiente que agora respira, e até animais políticos consagrados que se animaram a festejar que a presença do vírus trazia a evidência da necessidade de mais Estado para combater o mercado (3).
Tudo parece mudar a partir da pandemia. Mas ao mesmo tempo, tudo indica que a lógica da mercadoria não foi superada, mas permanece. A disputa entre Estados pelas compras de mercadorias necessárias para a atenção da pandemia marca de maneira exemplar a falta de solidariedade e a concorrência que caracterizam o mercado e se expressam cotidianamente como prática que antecede e atravessa o fenômeno traumático. Os senhores de tudo já estão promovendo o retorno a essa sinistra normalidade. A China se afirma na sua tendência como potência hegemônica mundial e, desde seus representantes, promove a globalização e o livre comércio sobre as economias nacionais:
“Querer repartir o Oceano da economia mundial numa série de lagos pequenos bem distantes uns dos outros, não só é impossível como, além disso, vai contra a corrente da história” (4). E os Estados Unidos, em plena pandemia, deram mostras concretas de que buscam uma nova solução bélica à decadência do império. Muitos de nós sonhamos com um mundo em que o exemplo cubano, que distribuiu 30 mil médicxs e enfermeiras por mais de 66 países, se multiplique, mas parece que não será esse o comportamento entre os poderosos.
Parece que em muitas questões, além de nossos desejos e intenções práticas, a sociedade global mudará para seguir igual. Como aquele rio de Heráclito, no qual podemos (e não podemos) banhar-nos duas vezes porque é (e já não é) o mesmo rio; a realidade social do planeta muda e não muda. O filósofo grego também dizia que o Fogo é o elemento primário deste mundo que às vezes, acendendo-se, crescendo, e outras vezes se apagando, vai moldando o mundo em permanente transformação. O escritor e educador popular brasileiro Mauro Iasi afirma que depois da pandemia, o mundo será e não será o mesmo, “um mundo em que é urgente uma revolução” (5).
Partindo desta conclusiva obviedade como base, podemos arriscar-nos a pronunciar que será um mundo onde o fogo das revoltas sociais continuará a acender-se de forma imprevisível (como as crises, embora não necessariamente em sintonia com elas). E será um mundo em que é cada vez mais necessário para a esquerda aprender com o que foi feito e se organizar para entrar ativamente na disputa do sentido das rebeliões populares.
É possível que o passo a frente daqueles que estamos do lado dxs que dependem da venda da sua capacidade de trabalho para viver seja o de perder a paciência. Talvez saiamos das precárias quarentenas com a rebeldia à flor da pele, tendo identificado coletivamente onde direcionar nossa digna raiva para abrir espaço a novas formas de produzir e reproduzir a vida humana, destruindo o que for preciso para abrir espaço para o novo. Com esse princípio de esperança ativo, eu que sou muito lento, me animo a escrever agora (depois de mais de um ano sem poder fazê-lo) para registrar o pensamento gerado por muitos debates e leituras entre companheiras de diversas latitudes (6). É um momento de escrever, de lançar mensagens inflamáveis ao mar em uma garrafa, na esperança de que com alguma faísca possamos “incendiar o oceano”.
Mas como chegamos a esta situação no Brasil? No período anterior ao golpe de 2016, os governos do PT negavam o antagonismo entre as classes enquanto abraçavam a utópica possibilidade do pacto social eterno (7). Nunca chamou o povo a manifestar-se nas ruas e dedicou-se a “conter a revolta social” enquanto foi possível. Como a realidade está em permanente movimento, sua negação cria novas realidades e a enorme paciência cultivada nesse negacionismo utópico alimentou o processo de débâcle humanitária que depois de alguns anos levou à consolidação deste governo neofascista (alimentado pela dinâmica de conflito interno permanente). Um excesso de obediência, semeado religiosamente, gera a inércia de uma população que surpreende por sua capacidade de conviver com a indignidade em limites inesperados.
Embora as nostálgicas lembranças de tempos recentes, em que os pobres podiam consumir mais e melhor, gerem alguns espasmos de resistências em ações performáticas e algumas narrativas épicas latino-americanas tentem ressuscitar politicamente heróis passados, a luta de classes é dinâmica e não se detém (nem se concilia). Ela avança subterrânea pelos processos de consciência, numa tendência que alimenta a esperança de saber que algum dia a indignação explode. Quem ainda estiver com vida poderá aprender com o vento, como diz o poeta. E, para isso, precisamos falar. Nós precisamos gritar algumas verdades.
Alguns elementos de debate que a pandemia trouxe
Antes da pandemia, vivíamos numa sociedade que não só produzia e reproduzia a vida humana de certa forma, como também elaborava uma política correspondente para administrar a morte. Nos últimos 300 anos, em que esta forma de sociedade nasceu, cresceu e se espalhou com aceleração desenfreada até dominar o conjunto do planeta aparentando sucessiva e insistentemente consagrar o final da história humana, o capitalismo, em suas diferentes fases, foi estabelecendo e consolidando uma verdade na prática: quase todos os seres humanos nesta sociedade precisam vender e comprar para viver.
Desta forma, a dinâmica do conjunto da vida social no planeta está mediada pela lógica da mercadoria. Qualquer pensamento que negue ou ignore esta determinação fundamental da atual realidade social converte-se numa expressão de desejo, abstrata, poética, que bem pode alimentar a lógica que tenta combater. A morte nesta sociedade é administrada de tal forma que se torna mais acessível para aqueles que têm dificuldade em obter o equivalente geral que lhe permita comprar as coisas de que precisam para sobreviver.
1. A crise econômica, que já estava em andamento como uma nova onda do grande impacto de 2007-2008, se aprofundou com a pandemia gerando uma crise sem igual que provoca a queda do crescimento econômico em quase todos os países. Neste tempo extraordinário, a produção diminuiu, mas a capacidade produtiva permanece intacta. E embora a necessidade de um piloto de tempestades específico esteja no centro das atenções das organizações internacionais como o FMI, o Banco Mundial e outras entidades econômicas; e a Organização Mundial da Saúde ocupa o lugar central dessa legitimidade; a necessidade humana de permanecer vivo, resolver suas necessidades, ou seja, comprar e vender, vai trazer novamente a centralidade desses organismos para garantir os processos de concentração e centralização que a reprodução expandida do capital impõe. E o fará de forma mais acelerada. Para a saúde do perverso sistema que nos trouxe até aqui, ainda a lógica do capital fictício domina a dinâmica societária. É fundamental que se mantenha a garantia de realizar hoje o valor que será produzido no futuro. Ou seja, viver hoje o amanhã, portanto, anular hoje a possibilidade de um amanhã diferente.
2. Sabemos que, historicamente, a saída da crise para os capitalistas impõe medidas que colocam a dignidade humana daqueles que precisam vender sua capacidade de trabalho para viver numa situação crítica. Se a linguagem de gestão da pandemia na maioria dos países é uma linguagem de guerra, não parece coincidência. Trata-se do capitalismo em sua fase neoliberal, que anda precisando aprofundar a precarização da vida como nas guerras. Não é por acaso que o epicentro da atual pandemia seja o mesmo das “políticas de austeridade” depois da crise de 2008. Uma coisa foi levando a outra e consolidando o cenário de guerra que não deixa de se apresentar como tendência possível.
3. As contradições que já estavam expostas desenvolvem-se mais rapidamente. Falamos de sistemas de saúde colapsados, o mundo da cultura mediatizado pela internet, a centralidade de algumas empresas de aplicações que aumentaram de forma exorbitante seus lucros, a ampliação e ramificação das formas de teletrabalho, os comportamentos ecopredatórios, a educação a distância favorecendo a desigualdade e a precarização educativa ao ponto de reconfigurar o vínculo pedagógico, o desenvolvimento ainda mais acelerado da polêmica Inteligência Artificial etc. São apenas alguns dos problemas inquietantes que a pandemia potencializou resolvendo cada problemática através do aumento da mercantilização.
4. Na maior parte dos países estão sendo realizadas ações emergenciais em matéria de assistência social. A existência temporária de subsídios econômicos para o setor informal aumenta as expectativas da implantação de uma Renda Básica (urgente e necessária) que cumpre a dupla função de conquista de condições menos indignas para “xs de baixo” no aqui e agora, uma garantia de sobrevida e uma legitimação das formas capitalistas de resolver as necessidades humanas.
5. A ciência se configura ainda mais como um campo de disputa estratégica. Os criminosos (como o presidente brasileiro) a negam abertamente. E aqueles que se interessam por administrar racionalmente o sistema a instrumentalizam eficientemente para mercantilizar gradativamente o que ainda não é mercantil. A legitimidade da ciência usada para fortalecer o Estado que controla: é uma verdade prática neste momento. Mas, ao mesmo tempo, a ciência, em diálogo permanente com os saberes populares é um instrumento eficaz para transformar e conhecer a realidade, e pode-se usar em defesa da vida frente àquilo que produzimos e se volta contra nós mesmos. É evidente a necessidade de emancipar a ciência da lógica da mercadoria para que realmente seja transformadora, mas sabemos que não será com súplicas moralistas que vamos conseguir.
Na pandemia aparecem, como noutros momentos da história, as polarizações do estilo saúde x economia que nos obrigam a tomar partido sem distinguir as nebulosidades que se escondem por detrás dessas construções. Entre as principais, devemos refutar a polaridade Estado-mercado, uma vez que se trata de uma necessidade material da dinâmica do capitalismo e que na sua fase atual do capital-imperialismo garante a unidade de concentração e centralização dos meios de produção na concorrência monopolista. Sempre no capitalismo houve sintonia e divisão de tarefas entre mercado e Estado, por momentos destacando as funções de um e em outros momentos a do outro.
Defender uma política de gestão da pandemia desde o Estado como o máximo virtuosismo é defender a administração deste sistema que desde o seu nascimento afirma cada “avanço civilizatório passado” sobre uma base criminosa e assassina. Retomar a produção e reprodução da vida em cada país, sem questionar a fundo a organização da vida social que cada vez produz mais destruição e pobreza, é negar a realidade do sociometabolismo do capital, que é incontrolável. E já vimos a realidade que o negacionismo produz. Defender e cuidar da vida não são algo específico deste momento de pandemia. Defender a vida exige nunca mais produzir riquezas com as mãos manchadas de sangue das trabalhadoras e trabalhadores.
Como saída da crise, no mundo pós-pandemia o que se vislumbra é mais capitalismo. A crise tem essa função de superar-se expropriando mais meios de vida para transformá-los em capital, disputando novamente o que havia outorgado em forma de direitos ou fundos públicos, aumentando a convivência entre Estado e Mercado, reunificando o que parecia estar separado.
E então o que podemos fazer para transformar a realidade?
Em todo processo de transformação é necessário contar com uma grande insatisfação popular, compartilhar um horizonte estratégico e juntar força para dar os primeiros passos, superando a resistência que possam oferecer as forças conservadoras. Nesse sentido, para alimentar o diálogo necessário entre os de baixo, proponho, arriscando um caminho para a unidade na práxis, que o primeiro passo é se organizar para a rebelião.
Ao longo da história, tem-se demonstrado que a própria dinâmica do capital gera explosões do movimento de massas. Revoltas populares que emergem de forma imprevisível num momento de fusão das massas. Uma reação que atua como gatilho da luta de classes na superfície do cotidiano. No período anterior à queda do muro (8), que dividia o mundo em dois grandes polos com propostas societárias diferentes, essas explosões sociais eram disputadas e reprimidas em um sentido ou em outro em função de reorientar as transformações que desde baixo se impunham. Durante a última década, assim como a crise, também as revoltas populares estavam explodindo com maior intensidade em diversos pontos do planeta e com características escorregadias a qualquer classificação.
Surgem de forma inesperada, partindo de um gatilho desconhecido e imprevisível (9), e são faíscas que acenderam o fogo de transformações em sentidos abertos e discutíveis. Como dizia Rosa Luxemburgo, ao referir-se às greves de massa, as explosões sociais nascem sempre de incidentes particulares locais fortuitos e não surgem de um plano preconcebido e deliberado. Voltarão a nascer, porque a vida ameaçada insiste em florescer embora a brutal lógica da mercadoria insista em subjugá-la. A necessidade explode em raiva diante de tanta desigualdade. É o momento em que se deixa de desejar a nostalgia do que já foi ou poderia ter sido e se perde o medo (de adoecer, de morrer, de ser reprimido(a) ou preso(a)). É um momento em que as pessoas coletivamente são empurradas pela necessidade a transgredir, a rebelar-se, a desobedecer, a procurar a saída por fora do quadro estabelecido, já que dentro das normas não há solução.
Indignada com as mortes da vizinhança nas mãos da intervenção militar que entrou na favela com a desculpa de uma “guerra às drogas” (que permite a droga circular pela cidade e semeia a morte de jovens pobres nas favelas do Rio de Janeiro), uma vizinha perguntou-me há uns anos: “A quem serve o pacifismo, Diego?”. Ainda não encontrei a resposta. Ou sim, mas é irritantemente violenta para expressá-la. Enquanto o capitalismo se apoia na violência sistemática contra as vidas humanas, nas rebeliões populares usamos a violência em autodefesa da vida.
A revolta é contra a guerra imposta pelas necessidades da mercadoria. Nossa violência rebelde é contra as coisas. Já vimos que as faíscas acendem o fogo nos bancos, nos depósitos de mercadorias e nos ônibus que transportam seres humanos como mercadorias. Vimos fogo nas delegacias de polícia e nos palácios e sonhamos com que o FOGO alcance “o OCEANO da economia mundial”. E, no entanto, as rebeliões não significam necessariamente revolução: pode abrir disputa entre irmãos de diferentes identidades oprimidas que conformam a classe trabalhadora e também podem ficar soltas diluindo-se no cotidiano, como costuma acontecer.
A necessidade profunda que impulsiona a revolta da humanidade é criar outra forma de produzir e reproduzir a vida. Uma alternativa societária que deixe de atacar a natureza e possa desenvolver-se em sintonia com ela, com a sua abundância. Uma organização das relações sociais que possa nos igualar a partir do respeito das nossas diferenças, anulando principalmente a divisão entre proprietários e não proprietários.
Abre-se um tempo em que, uma vez mais, defender a vida humana é provocar a revolta. É tempo de incendiar o oceano, e que o fogo (que tudo transforma) cresça e se mantenha aceso durante um bom tempo.
Como podem as nossas organizações estar ligadas à revolta popular?
No nosso amplo leque colorido, as esquerdas atualmente devem repensar o que consideramos como organicidade e acúmulo de forças em um tempo que se acelera. Partindo de uma práxis reflexiva, é necessário realizar balanços sinceros de nossas lutas históricas.
Existem gestos da nossa esquerda latino-americana que emocionam profundamente. A solidariedade demonstrada no meio da pandemia é um sinal de humanidade que, organizada, resiste à economia de morte. Mas é necessário que possamos olhar crítica e autocriticamente para as nossas práticas. A solidariedade filantrópica, que busca conter e evitar uma revolta popular “inorgânica”, configura atualmente parte da política de uma socialdemocracia aggiornada com poderes vaticanos. Está pensada em função de interesses de uma esquerda estadólatra que às vezes de forma tática e outras de forma estratégica aposta na conciliação de classes como um caminho possível.
A revolta é agir no presente pelo próprio presente, como única opção para “abrir o caminho da esperança”. Aquela “esquerda” que tenta evitar ou conter a revolta com a banal ameaça de “fazer o jogo à direita”, traz alguns problemas para o movimento revolucionário. Estes grupos que ostentam a “não-violência” são hoje o que Fanon caracterizava como “vanguarda das negociações e da transação” (10), aparecendo na revolta com a função de apagar o fogo, sentar-se para resolver o conflito sobre a toalha verde de uma mesa de jogos. A nossa política em relação à revolta não deve ser a de contenção, muito menos de repressão (como outros fizeram em Kronstadt). Será aprendendo a pensar e agir em um contexto de revolta permanente que criaremos o programa necessário.
Só a rebelião, a rejeição do existente, abre a possibilidade de afirmar um novo futuro. E não em abstrato, mas em concreto. Por isso é o primeiro passo necessário. Organizar a revolta é tão necessário como deixar o ar de sua espontaneidade à “autoatividade das massas”. Organizá-la inclui saber que temos um horizonte estratégico para orientá-la. E que seu sentido será disputado. Ter atenção para não reproduzir certo culto à espontaneidade messiânica, e começar a discutir os primeiros passos firmes, sem perder de vista a totalidade do horizonte estratégico.
Vão emergir focos de rebeldia inorgânicos aos grandes movimentos sociais que realizam um culto à distribuição de tarefas para manter a própria estrutura e demandam uma gigante quantidade de esforços militantes autocentrados. Para sermos militantes orgânicos com a revolta talvez seja necessário deixar de pensar a sociedade desde uma lógica de gestão estatal e começar a desafiar o Estado visto desde a sociedade. Não sabemos de que setor surgirá a explosão. Não se trata de ascender faíscas por toda parte, mas de como nossas organizações podem ser orgânicas ao fogo, inflamáveis. Na medida em que seja qual for o setor do povo em luta, o mantenham vivo e o ampliem a outros setores.
A necessidade é de uma revolta global. Sabendo que os detalhes em cada lugar serão determinados por cada país, dadas as características de cada formação social. Durante e depois da pandemia, e no tempo entre pandemias que virão, quando o fogo crescer, ainda estaremos aqui e será fundamental observar de que lados da revolta nos encontrarão. Será o que tenhamos aprendido no vento.
Saiamos do isolamento social com a revolta à flor da pele, para identificar e superar violentamente tudo o que nos trouxe até aqui. O apoio e a organização das revoltas permanentes que destruam o capitalismo se constituem nos passos necessários e indispensáveis para criar uma nova forma de produzir e reproduzir a vida social no planeta.
Precisamos ultrapassar a lógica da produção de mercadorias em grande escala que se alimenta da relação aparentemente contraditória entre o Estado e o mercado e que está orientada para a acumulação. Podemos tentar pôr em prática uma lógica comunitária que possibilite uma produção local baseada em alimentos e outros elementos básicos que precisamos para viver em abundância e em sintonia com a natureza?
Em tempos de colapso iminente, de vida ameaçada, o chamado é a observar o básico. Saber fazer por nós mesmos para sobreviver com autogestão aos tempos que vêm. Revelar-nos exigindo que coisas elementares para a vida (alimentos, roupas, moradias, saúde, educação, transporte) não devem ser mercadorias. Olhar o horizonte estratégico para o qual caminhamos, e avançar: produzir o necessário para viver bem, distribuir o trabalho aproveitando as máquinas para trabalhar menos e não para produzir mais. É possível planejar nossas vidas com liberdade para viver mais e melhor. Iremos produzindo novas revoltas para abrir novos horizontes. Até que compreendamos que a liberdade de um começa onde também começa a do outro, e termina onde a do outro também termina. Até que não existam classes, nem ideologias.
Depois da pandemia, aqueles de nós que sobreviverem continuarão a ter graves problemas. Cuidar da vida é dedicar-lhe essa causa, antes que seja mais tarde do que já está sendo. Que saibamos transitar esta pandemia incorporando uma lógica de cuidados, e alimentando a rebelião. Que saibamos – como diz o poeta – incorporar as experiências para que quando acabe a paciência de trabalhadores trabalhadoras saibamos “abrir caminhos de esperança” por meio de rebeliões que necessariamente ponham (criticamente renovado) “o socialismo na ordem do dia”.
Notas:
1) Pensando um pouco melhor: por que não saímos no final de 2019? Se no Haiti, Equador, Chile, Colômbia, e outros lugares a onda de revoltas populares agitou toda a região. Motivos para sair contra este governo baseado no crime naquele momento também não faltavam. Por que sair num domingo e não fazê-lo um dia de semana impactando o funcionamento “normal” das instituições? Por outro lado, as frentes que reúnem movimentos sociais convocam para um “ato virtual nacional para o próximo sábado”, é a forma que acharam… Tudo está muito confuso. E toda opinião parece válida. Só que não. Pois num país onde o “terraplanismo” e as fake-news demonstraram um poder importante, é muito arriscado afirmar que toda a opinião vale o mesmo.
2) “A culpa da crise não é do vírus” Marina Machado Gouveia. “Em tempos de pandemia: propostas para defesa da vida e de direitos sociais. Organizadores: Elaine Moreira, Rachel Gouveia (et all). Rio de Janeiro – UFRJ. CFCH-ESS. 2020. (p 19-28)
4) Discurso do Presidente Xi Jinping na cerimônia de abertura da Conferência Anual de 2017 do Fórum Econômico Global em Davos.
5) “Pré-história, pós-pandemia e o que virá” Mauro Iasi. Blog da Boitempo https://?blo?gdab?oite?mpo.?com.?br/?2020/?04/?17/?pre-?his?tori?a-?pos-?pan?demi?a-?e-?o-?que-?vira/
6) Esta produção, portanto é e não é um texto pessoal. Surge alimentada desse pensamento coletivo e numa tentativa crítica pretende voltar para alimentar o mesmo.
7) Algumas notas são necessárias porque internamente continuo dialogando com certo espaço militante que aprendeu a etiquetar pensamentos em caixas separadas para desprezar antes de incorporar criticamente o argumento. É evidente que NÃO SÃO A MESMA COISA, e evidentemente apontavam para direções opostas dentro do campo aberto pelo mesmo sistema. A continuidade da negação como método de governo requer mudanças abruptas para renovar o impulso das reformas que o capitalismo necessita.
8) Período sobre o qual a esquerda deve aprofundar sua análise autocrítica, para superar incorporando os limites e as potencialidades abertas pela primeira e principal experiência de transição societária para além do capitalismo. Devemos superar aquelas avaliações que acompanham um movimento pendular entre quem promove a aceitação incondicional e defesa acrítica da experiência, e aqueles que a negam desprezando os níveis de emancipação mais elevados que a classe trabalhadora tenha alcançado a nível mundial.
9) O assassinato de um homem negro nos Estados Unidos, a juventude pulando catracas no metrô Chileno, o “Nenhuma a Menos” na Argentina, as lutas pelo passe livre em junho de 2013 no Brasil, entre outros inúmeros episódios
10) “Los condenados de la tierra” Frantz Fanon. Fondo editorial casa de las Américas, Cuba. 2011 (P. 28)
(Agradecimento especial para Julieta Mellano pela edição na publicação em espanhol em “Incendiar el Océano”, México – E para Maiara Marinho pela revisão da tradução ao português – 9/6/2020).
Diego Ferrari