Por Leandro Machado, BBC Brasil.
Em 1989, um grupo de pessoas invadiu uma área florestal da Amazônia conhecida como Terra Indígena Caru, no Maranhão. Dois anos depois, em 1991, uma ação civil pública foi aberta para julgar três homens que teriam invadido, desmatado e queimado uma parte significativa da área.
Mas condenar os acusados por danos ambientais demoraria quase três décadas. Depois de inúmeras idas e vindas judiciais, eles só foram julgados em 1º de março de 2019 — ou seja, 28 anos após o início do processo.
Na ação, os réus responderam apenas na esfera civil em relação ao dano ambiental causado – ou seja, a Justiça decidiria se eles iriam ou não reparar a área desmatada e pagar multa.
As quase três décadas de espera geraram duas sentenças em primeira instância na Justiça Federal, ambas publicadas em março. Isto é, os condenados ainda podem recorrer a órgãos superiores e o processo pode se prolongar por tempo indeterminado.
O caso da Terra Indígena Caru pode ser considerado um símbolo da demora da Justiça para julgar casos de desmatamento.
Essa morosidade preocupa ainda mais em um momento de alta da destruição por meio de desmatamento e queimadas de áreas da Amazônia – que tem ganhado repercussão internacional. Em junho e agosto, por exemplo, alertas de desmatamento da Amazônia cresceram 203% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O caso Caru
A Terra Indígena Caru, que tem cerca de 173 mil hectares, foi reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1982, ainda sob a ditadura militar. Junto com as reservas indígenas Awá e Alto Turiaçu, ela forma uma espécie de corredor de floresta amazônica no Maranhão.
Nela, vivem índios das etnias awá-guajá e guajajara.
O julgamento sobre a invasão da área, em março deste ano, juntou duas ações civis – uma de 1991 e outra de 2000.
Segundo o primeiro processo, três réus invadiram a reserva em 1989 e “devastaram diversos pontos da terra indígena ao promover o desmatamento de diversas espécies de árvores, para posterior beneficiamento e comercialização da madeira em serrarias irregulares da região”.
Eles também teriam limpado a área “com a utilização de fogo para a construção de cercas, casas, currais, barracos e plantação de roças (em especial, de capim para pastagem de gado bovino), o que impede a regeneração da área afetada.”
Porém, a destruição da mata piorou nos anos seguintes à primeira invasão. Uma inspeção da Funai em 1999 descobriu que a área desmatada havia aumentado para 20 mil hectares.
Esse relatório gerou um novo processo civil com mais quatro réus. As duas ações depois foram reunidas e julgadas em conjunto pela Justiça Federal, mas isso só ocorreu neste ano.
Em 1999, os fiscais da Funai encontraram uma comunidade com 600 famílias e 2 mil pessoas vivendo na reserva indígena – boa parte tinha vindo de cidades vizinhas e trabalhava com produtos agrícolas como forma de sobrevivência. Além disso, havia pastos com dezenas de milhares de cabeças de gado, porcos, cavalos e cabras.
Segundo o relatório da Funai, a comunidade invasora já tinha 200 casas, currais, pastagens, cercas de arame, casas de farinha, pomares e poços. Também foram encontrados máquinas agrícolas, tratores, motosserras, espingardas e rifles. Na área, foi aberta uma estrada de 60 km de extensão para escoar a madeira retirada da mata ilegalmente.
O documento apontava que um dos comandantes da invasão “aliciava as pessoas a adentrarem na Terra Indígena Caru, oferecendo lotes de aproximadamente de 20 a 30 alqueires, para a finalidade do cultivo de lavoura, na condição de que a madeira encontrada nos devidos lotes fosse destinada para comercialização junto às madeireiras”.
O documento da Funai também citava que a liderança mantinha “vigília das madeiras espalhadas no interior da reserva com pessoas fortemente armadas, o que representava uma verdadeira ameaça às comunidades indígenas.”
No processo, os três réus da ação de 1991 alegaram que tinham autorização do Ibama para realizar a derrubada de parte da mata, mas a Justiça considerou que apenas um deles tinha de fato o documento.
Os acusados também afirmaram que o crime tinha prescrito e que eles eram donos da terra, mas o juiz negou os argumentos. Segundo o magistrado Ricardo Felipe Rodrigues Macieira, não houve prescrição e, além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que títulos de propriedade dentro de reservas indígenas são nulos.
Duas pessoas foram condenadas a criar, junto ao Ibama, um plano de recuperação florestal para a área – e, caso o local esteja irrecuperável, os réus devem pagar uma indenização.
Já no processo de 2000, relativo à degradação constatada um ano antes pela Funai, a Justiça condenou quatro pessoas a pagar uma multa de R$ 50 mil, além da criação de planos de recuperação. Entre outros argumentos, os réus alegaram que havia erros na demarcação da reserva e que não houve danos ambientais, pois “não havia índios na área” – esses pontos foram refutados pela Justiça.
Por que demorou tanto?
Não há uma única explicação para a lentidão para julgar o caso. Ele ficou seis anos parado na Justiça sem qualquer movimentação.
O procurador Marcelo Santos Correa, que recentemente assumiu a área ambiental da Procuradoria de São Luís e o processo relativo à invasão da Terra Indígena Caru, diz que uma série de entraves na burocracia da Justiça Federal, responsável por julgar danos a áreas públicas da União, tem atrasado os processos relativos à Amazônia, como o do Caru.
Em meados da última década, a Justiça Federal criou uma vara especializada em crimes ambientais no Maranhão. Ela ficou responsável por julgar ações de desmatamento, acelerando os processos dessa área e desafogando outras seções. No entanto, em vez de ajudar, a medida causou confusão.
“Houve uma grande discussão sobre quem tinha competência para julgar os casos. Muitos processos, até de questões fundiárias, eram repassados para a vara ambiental, depois retornavam para a comum. E aí ficava nesse impasse sobre quem deveria julgar. Muitas vezes, a Justiça demorava anos para se chegar a uma conclusão sobre isso”, diz Correa.
Essa discussão tem ocorrido também no Pará, onde seções da Justiça Federal também têm “disputado” quem pode julgar alguns casos.
Além da enorme quantidade de processos, outro problema, afirma Correa, é a dificuldade para encontrar e ouvir réus e testemunhas que vivem em cidades muito distantes das varas federais, que normalmente ficam em cidades médias ou grandes. O território da Terra Indígena Caru, por exemplo, está localizado nos municípios de Bom Jardim e São João do Caru, a mais de 270 quilômetros de São Luís.
“Nesses casos, a Justiça Federal envia uma carta para a Justiça Estadual ouvir a testemunha ou o réu, como uma espécie de favor. Mas às vezes isso demora anos para acontecer, porque os fóruns estaduais também estão cheios de processos”, diz.
No caso da invasão ao Caru, por exemplo, o depoimento de uma única testemunha demorou quatro anos para ser colhido depois que ele foi pedido pelo juiz federal. Essa lentidão acabou paralisando o processo e atrasou ainda mais a obtenção de sentenças.
“É um absurdo que um processo demore mais de 20 anos para ser julgado. Ainda mais quando há flagrante e provas claras do dano ambiental, como ocorreu no Caru. Era um caso relativamente simples de julgar”, diz Correa.
‘Demora como incentivo ao desmatamento’
Hoje subprocurador-geral da República, Nicolao Dino estava em início de carreira no Ministério Público Federal quando participou da ação contra os invasores da Terra Indígena Caru, nos anos 1990.
“A intenção dos invasores era extrair madeira ilegalmente, além de implantar a cultura do gado na região”, afirmou Dino à BBC News Brasil, por telefone. “Houve uma redução gradativa de espaços demarcados e prejuízos socioambientais e à cultura indígena da área”.
Dino não sabia que os dois processos relativos à área demoraram tanto para serem finalmente julgados, pois, ao ascender na hierarquia do MPF, a ação foi assumida por outros procuradores – cinco ao todo, nesses 28 anos.
“Preocupa essa demora para a resolução de casos de extrema importância, como é a destruição de matas virgens, que fazem parte do patrimônio ambiental brasileiro”, explica.
Para ele, processos de destruição da Amazônia deveriam ser tratados como prioridade pela Justiça. “A demora na resposta do Estado e a sensação de impunidade são interpretadas como estímulo por quem pratica ações ilícitas. É preciso que o Estado dê uma resposta rápida”, afirma.
O procurador Daniel Azeredo, que também trabalha em processos de dano ambiental, concorda que casos de desmatamento deveriam ser priorizados.
“Há algumas áreas da Justiça, como a Trabalhista, que trabalham com metas de resolução de processos. Talvez essa seja uma alternativa a se estudar nesse campo”, diz ele, que atua no projeto Amazônia Protege, grupo de trabalho do MPF e do Ibama criado para combater a destruição de áreas florestais.
Desde 2017, o projeto já moveu 2.539 ações judiciais de danos ambientais. Nenhuma delas recebeu condenações definitivas até agora, segundo levantamento do UOL.
Azeredo também é a favor de um endurecimento das penas criminais impostas a quem desmata. Hoje, a lei prevê de um a cinco anos de prisão para quem causar danos em áreas públicas protegidas e de conservação. Na prática, as condenações de prisão são, em sua maioria, convertidas em multas ou prestação de serviços à comunidade.I
“É importante que a punição tenha o efeito de ser um exemplo. As pessoas precisam entender que crime ambiental pode dar cadeia”, afirma Azeredo.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, o procurador Luís de Camões, que trabalha no Pará, resumiu a situação das penas com outras palavras: “Hoje, se você furtar um celular, talvez fique mais tempo preso do que se botar fogo na floresta”, disse.
É difícil resumir os motivos de tanta demora, pois cada caso tem problemas próprios, como enorme quantidade de recursos, problemas para ouvir testemunhas, excesso de processos e até indefinições sobre qual seção da Justiça Federal tem competência para julgar.
A Operação Curupira da Polícia Federal (PF) e MPF, por exemplo, descobriu em 2005 um esquema de desmatamento e extração ilegal de madeira em três Estados. O processo completou 14 anos e ainda está aberto na Justiça Federal, sem resolução.
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