‘O problema não é viajar, é ser mulher’: viajantes solo associam violência ao machismo

Após assassinato de Julieta Hernández, mulheres relatam medo generalizado, em casa ou na estrada

Por Caroline Oliveira

O Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo – Divulgação/Redes Sociais

Faz dois anos que a mineira de Itaobim Marina Ribeiro, de 28 anos, viaja sozinha pelo Brasil. Em um de seus roteiros, foi abordada por um homem numa praia de Salvador (BA), que começou a lhe dizer coisas obscenas. Em outra ocasião, dentro de um carro de um motorista de aplicativo, foi questionada agressivamente por estar viajando sozinha, apesar de estar com duas amigas mulheres.

As situações não são muito diferentes das que passou a paulistana Lanna Sanches, de 30 anos, que é questionada frequentemente – por homens – sobre o porquê de estar viajando sozinha, mesmo quando está acompanhada de outras mulheres. “Eu estava viajando com uma amiga, mas todos perguntavam se nós estávamos viajando sozinhas. Porque, mesmo na companhia de uma outra pessoa, a falta de elemento homem nessa equação fazia com que a gente estivesse ‘sozinha'”, afirma.

 

Criadora da plataforma “Elas viajam sozinhas”, Sanches começou a passear desacompanhada em 2017 e relata que o medo é uma constante nas suas viagens. Como mostram os relatos desta reportagem, o sentimento não é novo na rotina das mulheres que decidem viajar sozinhas. Na verdade, é algo intrínseco ao fato de ser mulher em uma sociedade machista.

“O medo que eu tenho é o medo que eu tinha em São Paulo, é o medo que já era presente em mim, na minha rotina antes da viagem sozinha. Não foi algo novo. É um medo diferente, porque eu estava num lugar desconhecido. Não é um medo que eu não conhecia, porque já vivia ele no meu dia a dia e na minha vida”, relata.

Manifestação contra machismo / Reprodução

Entre as estratégias para se sentir mais segura, Lanna compartilha a própria localização com amigos e familiares, diz a estranhos que está acompanhada por um homem e grava áudios para simular que está sendo aguardada por alguém. As estratégias não são diferentes daquelas adotadas quando morava em São Paulo. “São truques que eu já usava na cidade antes mesmo de viajar. Ser mulher tem seus perigos. Ser mulher e viajar sozinha também tem seus perigos”, diz.

O mesmo comportamento é adotado também pela paulistana Camille Carboni, de 26 anos, que viaja sozinha desde 2018. “Sentir medo antes de viajar sozinha sendo mulher é quase que um sentimento obrigatório. O mundo não é um lugar muito divertido para ser mulher. É impossível não ter medo. Eu não lembro de ter feito alguma viagem que eu não senti um pouco de medo e insegurança, porque a gente tem exemplos no dia a dia que mostram que é muito perigoso”, afirma Carboni.

A jornalista cita a morte da venezuelana Julieta Hernández, de 38 anos, que viajava pelo Brasil de bicicleta espalhando sua arte. Ela estava a caminho de seu país de origem quando desapareceu no dia 23 de dezembro, no município de Presidente Figueiredo, a 117 quilômetros ao norte de Manaus, no Amazonas. A próxima parada seria em Rorainópolis, Roraima.

No primeiro sábado do ano, a polícia encontrou o corpo de Julieta dentro de uma mata. Ela foi estuprada, assassinada e teve seu corpo queimado por um casal, que confessou o crime. Segundo Valdinei Silva, delegado da 37ª Delegacia de Polícia de Presidente Figueiredo, o corpo já estava “em estado avançado de decomposição”.

Marina Ribeiro, Lanna Sanches e Camille Carboni nunca chegaram a passar por uma violência física, mas já foram seguidas e assediadas verbalmente. “É triste falar isso, mas é o tipo de coisa com a qual a gente se acostuma. Muitas vezes a gente precisa lidar com situações específicas com homens que acabam insistindo demais”, lamenta.

“O maior problema que a gente precisa tratar não é nem o fato de viajar sozinha pelo país, mas de ser mulher. A gente sabe que o Brasil é um país muito violento e perigoso para mulheres. Viajando sozinha, entre amigas, com a família ou dentro de casa, no caminho do trabalho, no metrô, dentro dos estabelecimentos, a gente acaba correndo riscos da mesma maneira”, diz Carboni.

Na mesma linha, a paulistana Marina Cruz, de 31 anos, afirma que as mulheres “andam com um alvo nas costas pelo simples fato de serem mulheres”. “Não existe país que não seja machista, não importa o PIB, não importa a localização geográfica do país, o machismo é uma cultura global que vem muito antes de religião, política, mídia. É como se o patriarcado abrigasse os pilares que montam uma sociedade”, afirma a jornalista.

Cruz viaja desde 2015 e há quatro anos faz uma viagem de volta ao mundo. Das seis mulheres entrevistadas para esta reportagem, Marina Cruz foi que passou pela situação de violência mais grave. Ela foi sequestrada e ameaçada de morte e de estupro e teve seus pertences roubados em La Paz, capital da Bolívia.

“Acho que não existe contexto, lugar ou momento em que uma mulher não se sinta fora de risco. Mesmo que não seja algo consciente, a gente está sempre com essa programação de que o mundo é perigoso para gente viajando ou não”, afirma.

Viajando desde 2011 sozinha como mochileira, Ester Paixão Corrêa, de 38 anos, da comunidade Tatuaia, que fica a 133 quilômetros de Belém (PA), afirma que o medo “vai estar sempre presente”.

“Não tem como a gente fugir disso. Mas acho que é uma questão principal relativizar essa noção do perigo. E aí de se perguntar se a gente está segura também em casa. A gente olha para as estatísticas e vê que a gente não está segura em lugar nenhum, porque a gente também pode ser morta, estuprada por um companheiro, por um marido, por um vizinho, um tio, um pai. Também não dá para centralizar a narrativa da viagem só em torno de risco”, afirma.

Autora da tese de doutorado Mulheres na estrada: Encontros etnográficos nas rotas da América do Sul, em Antropologia Social pela Universidade do Rio Grande do Norte, Corrêa traz experiências das mulheres que viajam de mochila.

Na pesquisa, Corrêa aponta “a vulnerabilidade, o medo das violências e do abuso sexual como uma das características particulares em ser mulher fazendo um trabalho de campo que é móvel, que se desloca pela América do Sul”.

“Na estrada, estamos sempre topando com as pitadas e sobredoses de machismos e violências, as mesmas com as quais aprendemos a lidar cotidianamente, nas nossas vidas vividas nas grandes cidades sul-americanas. (…) As viajantes têm que lidar com as violências específicas nos espaços públicos, o assédio sexual no ônibus, as práticas espaciais outras, atenção aos horários para sair e chegar, encarar aquela rua escura que mostra os limites das cidades e dos lugares.”

No livro Em busca do Norte: viajante sem grana, a cabo-friense Manoela Ramos, de 30 anos, escreve que não encontrou dados específicos sobre feminicídios na estrada. Ela explica que não existe dado relevante, principalmente se comparado ao feminicídio dentro das relações íntimas e que o casamento pode ser tão perigoso quanto uma viagem.

“Em relação aos perigoso de feminicídio e violência contra a mulher, se pararmos para analisar, existem casos recorrentes de violência doméstica. Ou seja, acontecem dentro de casa, nas relações de casamento, namoro ou até mesmo caso bizarros de tios, amigos dos pais, padrasto ou mesmo o próprio pai”, diz Ramos no livro. Ao Brasil de Fato, Ramos reiterou a sua percepção de que “o assédio na estrada é um assédio da fila do banco, do mercado, do trabalho de todo dia passando carteira”.

Outros casos de morte de mulheres na estrada

Julieta não foi a primeira mulher viajante a ser violentada e morta. Provavelmente, não será a última. Também em dezembro do ano passado, a argentina Florencia Aranguren, de 31 anos, foi morta a facadas em uma trilha da praia de José Gonçalves, em Armação dos Búzios, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Antes de ser morta, também foi roubada e estuprada.

Em julho de 2020, a estudante Julia Rosenberg, de 21 anos, foi morta por estrangulamento na região da praia de Paúba, cidade de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Ela estava fazendo uma trilha sozinha até a cidade de Maresias. Ela foi encontrada com uma corda no pescoço e tecido dentro da boca.

Em 2017, a canoísta britânica Emma Kelty, de 43 anos, foi morta em em Coari, a 363 quilômetros de Manaus (AM). A britânica foi atacada por “piratas” de rio enquanto acampava em uma praia. Antes de ser morta, assim como Julieta Hernández, Kelty foi roubada e estuprada. Ela foi assassinada a tiros, e seu corpo foi jogado no Rio Solimões.

Julieta Hernández. / Foto: @utopiamaceradaenchocolate.

Companhia feminina parece não garantir proteção contra violências. Basta ser mulher. Em 2016, as argentinas, Marina Menegazzo, de 21 anos, e María José Coni, de 22 anos, foram mortas no balneário de Montañita, no Equador. Ambas foram roubadas e estupradas antes de serem mortas a golpes e facadas.

Em 2003, as adolescentes Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado foram assassinadas num canavial no distrito de Camela, também em Ipojuca, próximo a Recife (PE). A investigação mostrou que o corpo de Tarsila tinha três perfurações de tiros, sendo duas na cabeça e uma na mão. Ela também teve o biquíni e o vestido arrancados do corpo. Maria Eduarda foi morta com tiros na testa e no maxilar, provavelmente após ser estuprada, já que teve o short puxado até a altura das pernas. Após 20 anos, o caso ainda não foi solucionado.

Dados

Segundo dados de 2019 do ranking Women Danger Index, o Brasil é o segundo lugar do mundo mais perigoso para mulheres viajarem sozinhas, perdendo apenas para a África do Sul. O levantamento considera e compara estatísticas de feminicídio, assédio, segurança e serviços. Em outro estudo, feito pela Money Transfer em 2023, o Brasil aparece como o terceiro destino mais perigoso, atrás da África do Sul e do Peru.

Não há um levantamento, de acordo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do número de feminicídios contra mulheres que viajam sozinhas no país, apenas de feminicídio em geral.

No Brasil, os feminicídios e homicídios femininos tiveram crescimento de 2,6% no primeiro semestre do ano passado em relação ao mesmo período de 2022. Na mesma comparação, os estupros e estupros de vulnerável apresentaram crescimento de 16,3%, segundo dados do relatório Violência contra mulheres e meninas, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

“O Estado tem preferido contabilizar os corpos do que dar suporte e atenção para quem fica, para as sobreviventes do feminicídio” / Fernando Frazão/Agência Brasil

No total, 722 mulheres foram vítimas de feminicídio no primeiro semestre de 2023. No ano anterior, foram 704 assassinatos. Quanto aos estupros, foram 34.428 casos. Isso significa uma menina ou mulher estuprada a cada 8 minutos, o maior número da série iniciada em 2019.

Poder público

Brasil de Fato perguntou ao governo federal se existe alguma política pública em prol da segurança das mulheres que viajam sozinhas. Em nota, o Ministério do Turismo sugeriu buscar as informações com a startup Sisterwave, que desenvolve um trabalho voltado para o turismo feminino. Também indicou a leitura de artigo publicado no site da pasta com dicas para mulheres que viajam sozinhas.

Em setembro do ano passado, Marcelo Freixo, presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), começou a discutir formas de melhorar a experiência turística de mulheres que viajam sozinhas ao Brasil.

“As mulheres que viajam sozinhas são bem-vindas em nosso país. Garantir uma boa experiência para essas turistas é uma prioridade para a Embratur. Queremos que as mulheres do mundo inteiro se sintam seguras para conhecer o Brasil da sustentabilidade e da democracia, e que também é um país seguro para as mulheres viajarem sozinhas”, disse Freixo em reunião com uma agência dedicada a viagens para mulheres

A reportagem também questionou o Ministério das Mulheres sobre políticas públicas em benefício da segurança das mulheres que viajam sozinhas. Até o momento, não houve retorno. O espaço segue aberto para a manifestação da pasta.

Edição: Thalita Pires

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