O passado que não passa: a paralisia e crise da política norte-americana

Foto: GETTY IMAGES

Por Rafael R. Ioris (*).

Os EUA vivem hoje em uma encruzilhada histórica definida por ecos de um passado que parece não querer, ou talvez conseguir, ir embora. Frutos de um processo construído há pelo menos cinquenta anos, quando grupos conservadores começam a se organizar de maneira efetiva para reverter os avanços em políticas sociais e raciais, e os últimos ciclos eleitorais têm demostrado, de maneira cada vez mais clara, que o eleitorado norte-americano se encontra hoje profundamente dividido. O resultado é que o país como um todo não tem conseguido decidir qual rumo seguir. Afinal, tornar-se-ão os EUA de fato a primeira grande democracia multicultural do século XXI, ou aprofundarão eles suas clivagens estruturais rumo a um sistema político crescentemente definido pela exclusão do direito ao voto a grupos sociais minoritários, tornando-se, assim, de vez, um governo de natureza minoritária e oligárquica?

Dentro da lógica binária da política estadunidense, tudo indica que as próximas eleições presidenciais, chave para determinar os rumos do país e mesmo do mundo como um todo, serão definidas, novamente, pelo Trumpismo e pelo anti-Trumpismo. E embora faltem meses para o pleito de novembro de 2024, o quadro eleitoral já começou a se desenhar em linhas bem claras: teremos novamente uma disputa entre um Biden buscando de maneira quase inercial sua reeleição e Trump, ou pelo menos alguém proximamente alinhado às suas posições ? definindo-se, assim, uma revanche histórica que a maioria dos eleitores gostaria de evitar.1

A se confirmar, tal cenário apresentará uma disputa bastante acirrada, mas que não apresenta nenhuma novidade. O alto grau de indefinição da política norte-americana é algo que vem, de fato, se consolidando já faz tempo, e as últimas eleições nacionais foram um retrato disso. Trump chegou a ser derrotado em tentativa de se reeleger, mas conseguiu, de maneira preocupante, um número maior de votos do que quando foi eleito em 2016. E em 2022, nas últimas eleições congressuais de meio mandato, mesmo não tendo emplacado candidatos abertamente alinhados ao seu estilo agressivo, o ex-presidente, duas vezes impeachado,se consolidou no comando do Partido Republicano, esmagadoramente hegemônico nas pequenas cidades e nas áreas rurais da “América Branca”.

Certamente, muitos imponderáveis impactarão os rumos da campanha, o que faz com que não se deva buscar previsões de resultados, mas sim, alternativamente, refletir sobre elementos que poderão ajudar a definir os rumos políticos do país. Um desses elementos, talvez o mais decisivo, refere-se aos crescentes percalços legais que o ex-presidente terá pela frente. Trump enfrenta inúmeros processos legais graves, incluindo a imputação de um possível crime de sedição, o que poderá imprimir desdobramentos inesperados ao pleito, ainda que sua capacidade de se valer de subterfúgios processuais para impedir uma condenação até novembro de 2024 seja impressionante.

Do lado Democrata, é quase impossível imaginar um nome alternativo ao de Biden, a menos que algo inusitado venha a ocorrer. Contudo, embora sem concorrentes, o atual mandatário terá um enorme trabalho para empolgar sua base a ir às urnas. E esse é o ponto chave em um país profundamente dividido e onde o voto é facultativo. De maneira muito clara, nos EUA, as eleições tendem a ser definidas pelo comparecimento efetivo dos apoiadores de cada candidato, já que cada lado possui um número similar de afiliados. Tal tarefa não será fácil, especialmente junto a segmentos latinos organizados, crescentemente importantes em estados-chave como Georgia e Nevada. Talvez um pouco mais garantido, o voto afro-americano feminino, especialmente após a decisão da Suprema Corte norte-americana de derrubar a garantia do acesso ao direito ao aborto em nível nacional, oferece alguma margem de conforto para Biden.

Ocorrendo mesmo uma revanche histórica entre Biden e Trump, teremos não só algo inusitado, mas que também reflete de maneira cristalina a continuidade das divisões profundas que vêm definindo a sociedade norte-americana no início do século XXI. Se os democratas conseguirem se manter unidos e mobilizar suas bases – que são mais amplas, mas também mais diversas e menos coesas do que as bases do Partido Republicano –, é mais provável que Biden possa vencer. Ainda assim, é também possível que o atual presidente vença no voto popular, mas talvez perca nos votos do colégio eleitoral, dadas às inúmeras mudanças que legislaturas em Estados têm aprovado e que impõem restrições crescentes no acesso ao voto a minorias étnicas, sociais ou econômicas.

Esse quadro de profunda divisão se agrava ainda mais, dada a realidade do declínio relativo do país em um mundo em grande turbulência, onde cisões Norte-Sul e rivalidades Leste-Oeste se aprofundam. Mas se não poderia ser maior a urgência de tais questões, o quadro eleitoral que se vislumbra no horizonte, a menos de um ano das eleições, é de profunda paralisia. O que esperar, pois, de tal rematch entre Biden e Trump, em um contexto no qual o primeiro não empolga nem mesmo sua própria base e o segundo passará boa parte do próximo ano como réu em diferentes tribunais ao redor do país? Uma disputainusitada ? e mesmo preocupante ?, pois tendente a gerar um alto grau de apatia, abstenção, descrédito político e talvez mesmo violência. Quais cenários poderão surgir dos resultados de um pleito tão polarizado e disfuncional?

A consolidação da polarização e a indefinição de rumos

A profunda polarização política e ideológica da sociedade norte-americana envolve uma crescente distância entre visões de mundo assumida por membros de cada partido. Essa distância teria dobrado ao longo dos últimos 30 anos, e alguns comentadores apontam que, desde a Guerra Civil de 1860, o país nunca esteve tão dividido, e que os eventos de 6 de janeiro de 2021 em que uma turba de apoiadores do então presidente Trump invadiu e depredou a sede do Congresso Americano em uma tentativa de reverter os resultados das eleições presidenciais que deram a vitória a Joe Biden ? representam mesmo uma quebra institucional sem precedentes.2 E ainda que mais da metade dos norte-americanos se consideram “liberais” (ou progressistas, no sentido usado no Brasil) – número que cresceu muito ao longo dos últimos anos, já que há trinta anos esse número correspondia a cerca de um quarto da população –, três quartos dos apoiadores do Partido Republicano se definem como muito conservadores – número que, por sua vez, também subiu cerca de 50 por centro em relação há cerca de vinte anos.3

Os EUA vivem, pois, uma situação na qual divisões partidárias têm se tornado cada dia mais tribais, dentro de um quadro onde múltiplos pontos de vista sobre um grande número de temas de entendimento não binário são forçados a se enquadrar em linhas excludentes, nas quais a posição de um lado necessariamente implica a não existência do entendimento do outro lado. De maneira concreta, aborto, porte de armas, pena de morte, saúde pública etc., assuntos complexos sobre os quais cabem múltiplas abordagens, acabam se alinhando em linhas exclusivas, cuja posição contrária é vista como uma ameaça à própria existência e sentido do engajamento político de cada parte. Além disso, genuínas noções a respeito da identidade de cada um, por exemplo, sobre sua sexualidade, religião e etnia, são forçadas a se fixar dentro de um dos dois lados binários de uma disputa que fala cada vez menos sobre políticas públicas e cada vez mais sobre a imagem e modo de vida de cada polo, em uma disputa sem reconciliação possível.

Mas se a polarização atual nos Estados Unidos é histórica, pelo menos ao longo do século XX, ela não é única. Fenômenos semelhantes vêm ocorrendo em outros países ao redor do mundo, algo certamente associado à crescente fragmentação ideológica alimentada e aprofundada pela mídia eletrônica, especialmente as redes sociais. O que talvez distinga o que ocorre nos Estados Unidos de países como Reino Unido e Brasil, onde fortes divisões têm tido consequências significativas em anos recentes, seria a lógica exclusivamente binária do sistema partidário norte-americano, onde temas em que possíveis acomodações poderiam ser construídas acabam sendo subsumidas em questões tidas como não negociáveis, ao redor das quais linhas divisórias crescentemente irreconciliáveis são traçadas. E assim, de dois campos ideológicos, o país parece ter passado a conter duas grandes facções de forças que se veem mutuamente como autoexcludentes em uma lógica cada vez mais entendida como de soma zero.

Tais divisões vêm assumindo cada vez mais contornos geográficos, dificultando ainda mais a possibilidade de negociação. Eleitores de um lado não convivem mais com eleitores do outro. Cidades grandes, onde o poder aquisitivo médio e nível educacional são maiores, tendem a votar cada vez mais nos democratas, ao passo que cidades pequenas e zonas rurais, com crescimento econômico e padrão de formação mais baixos, se consolidam como redutos republicanos. Interessantemente, ao longo de décadas, os partidos políticos norte-americanos serviram como frentes, heterogêneas, mas estáveis, de ordenamento das forças sociais e grupos de interesse em disputa.

A tradição bipartidária norte-americana foi mesmo capaz de oferecer longos períodos de estabilidade institucional e da consolidação de pautas comuns entre os dois partidos (como por exemplo, a construção de um aparato de defesa incomparável). No mais, contudo, isso se deu com base na exclusão estrutural de importantes segmentos da população que foram sistematicamente excluídos do processo eleitoral ou cujas demandas demoraram muito a serem vistas como legítimas, como a dos afro-americanos, por exemplo. Além disso, faz tempo que há uma percepção, antes difusa, mas hoje cada dia mais perceptível, de que o sistema como um todo já não consegue dar conta das demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e com níveis históricos de polarização, seja ela medida em níveis ideológicos ou simbólico-culturais, assim como com um grau de desigualdades socioeconômicas crescentes.

E assim, dentro de um processo que consolida uma profunda fragmentação política e social duradoura, cresce a preocupação com a própria viabilidade do sistema, já que o país atravessa uma inusitada transição que talvez nenhuma outra democracia estável e rica tenha experimentado. Por um lado, a maioria histórica do país (a população branca e protestante de origem europeia) está se encaminhando rapidamente para se tornar a minoria, na medida em que mudanças demográficas e ideológicas se desdobraram ao longo dos últimos 50 anos. Ao mesmo tempo, o sistema político, de natureza conservadora, não parece capaz de prover canais de expressão efetivos para as crescentes demandas decorrentes das profundas mudanças que a sociedade tem atravessado.

Em vez de permitir a criação de meios de acomodação em temas e pautas complexas, o sistema político tende à polarização, crescentemente consolidada em partidos e eleitores que se veem cada vez mais com suspeição mútua, se não mesmo como portadores de posições políticas não passíveis de conciliações. Assim, é sempre muito difícil ampliar as bases de cada lado, e as eleições tendem a ser definidas nas margens, especialmente entre os poucos eleitores indecisos, em geral menos de 5 por centro, que podem mesmo decidir não comparecer ao escrutínio. Lembremos que Biden venceu em 2020 não por ter agregado votos da base republicana, mas por ter conseguido motivar sua própria base ? especialmente setores mais progressistas e ligados a movimentos sociais, sobretudo entre as minorias étnicas de centros urbanos de estados decisivos como Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. E se os democratas conseguiram mobilizar seus apoiadores, os republicanos também o fizeram, já que cada lado se vê como sob uma ameaça existencial vindo de um grupo cada dia menos entendido como ilegítimo.

É esse alto grau de polarização que, por fim, ajuda a entender que, mesmo em meio a uma das maiores crises econômicas e sanitárias que o país já enfrentou, Trump tenha conseguido receber 7 milhões a mais de votos em 2020 do que em 2016. Parece mesmo plausível supor que, caso a crise da Covid-19 não tivesse existido e, assim, a economia estivesse nos padrões baixos de desemprego do início de 2020, Trump teria sido reeleito. Parece também certo que, pelo menos no curto prazo, o Partido Republicano continuará sendo pautado pela agenda e estilo político de Trump. Mas agora, após quase 4 anos de mandato de Biden, seria possível um retorno do magnata ao poder dos EUA?

Uma possível volta de Trump, seus significados e eventuais impactos

Os que hoje veem como pouco provável um cenário em que Trump possa ser novamente eleito presidente cometem o mesmo erro dos que pensavam que sua candidatura era inviável em 2016. De fato, inúmeras sondagens ao longo dos últimos meses confirmam de maneira clara e conclusiva que o eleitorado continua profundamente dividido: tudo o que ocorreu nos últimos três anos não teve quase que nenhum efeito decisivo em reconfigurar as preferências eleitorais de cada lado, que parecem atuar, cada vez mais, como blocos inamovíveis.4

Se houve alguma mudança, foi a favor de Trump, que venceria caso a eleição tivesse ocorrido no início de novembro de 2023 e não de 2024, quando de fato vai ocorrer.5 Alguns apontam um quadro em que cada lado detém hoje 45 por cento das intenções de votos, e tenderá a deter os mesmos números daqui a um ano. Sucede que Biden corre mais risco de perder votos até lá, especialmente agora que o conflito palestino tem começado a provocar erosão de apoio entre minorias sempre decisivas em estados-chave, como Michigan.

De fato, a aprovação de Biden se encontra em níveis muito baixos para um presidente tentando a reeleição. Muitos eleitores o veem como demasiado idoso para continuar no cargo – embora ele seja somente três anos mais velho que Trump.6 Muito embora a economia venha apresentando bons números, especialmente em termos de desemprego ou no controle da escalada inflacionária do início do ano ? fruto em parte do aprofundamento da guerra na Ucrânia ? Biden tem tido muita dificuldade em colher os frutos de tais resultados.7

Além disso, é mais provável que surja um novo candidato de um terceiro partido pela esquerda, tirando votos de Biden, do que pela direita.8 E esse fator – a fidelidade a um nome – não pode ser menosprezado, já que mesmo imerso em tantos escândalos jurídicos, Trump continua a dominar o campo republicano, numa clara indicação de que seus apoiadores tenderão a apoiá-lo até o fim.9

Parece certo que o eleitor republicano em geral, e o de Trump em particular, tende a ser mais leal ao seu candidato, seja por interesse de classe, convicção ideológica ou religiosa, medo de perder status frente a novos grupos sociais, ou mesmo racismo e xenofobia puros e simples.10 Além disso, o fato de que nenhum outro nome entre os republicanos conseguiu empolgar sua base como o do ex-presidente demonstra bem o grau de extremismo que hoje define os rumos do partido.11 Da mesma forma, o alto comprometimento por parte de seus apoiadores em se mobilizarem na defesa de seu líder e, especialmente, em comparecerem às urnas no ano que vem – para garantir que “seu país não lhes seja roubado” ? indica a alta probabilidade de que os EUA tenham novamente Trump na Casa Branca a partir de janeiro de 2025. E considerando tudo o que o ex-presidente já fez, buscou fazer e prometeu fazer, caso volte à Presidência, esse eventual retorno deveria ser visto como sintoma de uma crise maior.

Afinal, a repetição de um pleito tão polarizado, com caraterísticas de farsa, reflete, de fato, insuficiências mais profundas no funcionamento, talvez mesmo na própria lógica, da política americana como um todo. Mas se a ameaça de uma possível volta de Trump ao controle da maior potência militar do mundo é vista como preocupante não só por eleitores democratas, mas mesmo por comentadores dos principais jornais conservadores do mundo,12 apoiadores de Trump também expressam muita preocupação sobre os prospectos da próxima eleição que veem como inerentemente fraudulenta, já que, na visão deles, seu líder foi roubado na última eleição, demonstrando, assim, o alto grau de imprevisibilidade e prováveis atos violentos, relacionados ao próximo pleito presidencial.13

No mesmo sentido, há um sentimento crescente de que a democracia norte-americana como um todo não é, de fato, um sistema político digno de tal designação, já que, a maioria de seus membros a veem como um regime oligárquico, em que as perspectivas de cada cidadão são, em grande parte, definidas por fatores como renda e raça, e onde a polarização política, crescentemente radicalizada, define o funcionamento do processo decisório.14 Dentro de um quadro político tão polarizado e preocupante, por mais difícil que seja, parece ser desde já necessário pensar como seria uma segunda presidência de Trump.

Mesmo entre ex-apoiadores de Trump, há hoje a concordância de que sua presidência foi errática e causou enormes danos para o funcionamento do governo norte-americano, assim como para a imagem do país no mundo. Especialmente no que se refere ao influente tema da segurança nacional, especialistas temem que uma nova presidência Trump conduza a novos estranhamentos com aliados tradicionais, como a União Europeia, Japão, Coreia do Sul e Taiwan, assim como a uma possível politização ainda maior das agências de inteligência e mesmo das forças armadas, em geral.15

Se em temas de segurança e diplomacia cresce a preocupação geral sobre a perspectiva da volta de Trump, com relação à política doméstica há também uma maior concordância, inclusive entre republicanos minoritários, de que a precarização e partidarização do funcionamento do governo seria ainda maior em um segundo mandato do ex-presidente. Trump tenderia mesmo a buscar substituir servidores públicos de carreira por seguidores alinhados e obedientes, levando a um aparelhamento do estado similar ao que fez Victor Orban na Hungria ao longo dos últimos anos. Se ele seria capaz ou não de implementar tais ações dependeria em grande parte do tipo de oposição que ele viria a ter no Congresso, assim como nas cortes do país – embora muito possa ser feito pela chamadas Ordens Executivas, uma espécie de medida provisória turbinada, ou decreto-lei, que não necessita análise congressual.

De todo modo, em especial em temas controversos como os que tratam do acesso às armas, aborto, igualdade legal de gênero, programas sociais, migração, etc., cresce a sensação de que Trump agiria com ainda mais vigor que em seu primeiro mandato para implementar uma agenda extremamente conservadora e muito diferente da que a maioria da população americana – mesmo entre eleitores republicanos – apoia.16 Além disso, cresce também a preocupação de que, novamente na Presidência, Trump não reconheça eventuais derrotas eleitorais ou conceda a si mesmo perdão por seus crimes em esferas federais – ambos temas que as legislações vigentes não sabem bem como tratar ?, e isso poderá gerar uma crise constitucional inédita na história do país, com possíveis desdobramentos de violência.17

Turbulência e declínio como únicas certezas no front

Olhando do ponto de vista de hoje, parece certo que os Estados Unidos irão vivenciar as eleições presidenciais de 2024 mais uma vez em meio a um cenário de profundas divisões políticas e ideológicas crescentemente percebidas como de difícil, senão mesmo impossível, conciliação. Preocupantemente, cada vez mais cada lado tende a ver sua posição como vital para a defesa do seu próprio modo de vida, quando mesmo para a sua própria existência, ao passo que o lado oposto é percebido como ilegítimo, como uma ameaça a ser eliminada ? não só por meios políticos, mas também pelas chamadas “vias de fato”. No mesmo sentido, cresce a desconfiança nas instituições políticas, especialmente na sua capacidade de resolver as questões mais prementes para a vida de cada um.

Cresce também, e de maneira não surpreendente, a percepção de que a polarização doméstica da sociedade norte-americana se associa de maneira acelerada ao seu declínio, relativo e absoluto, no cenário global. A hegemonia norte-americana, que parecia tão certa e inevitável nos anos 1990, se vê nos dias de hoje como cada vez mais precária. E o país é cada vez mais visto ao redor do mundo como tendo um sistema político disfuncional, e o próprio sistema global de comércio largamente estabelecido pelo país no pós-Segunda Guerra, e que o beneficiou por tanto tempo, apresenta-se hoje como um espaço em disputa com novas forças econômicas em ascensão, especialmente o gigante chinês, cujo peso manufatureiro dos últimos anos passa a assumir também um peso geopolítico e militar.

A crise da democracia norte-americana certamente não começou com a eleição de Donald Trump. Na verdade, tal é uma expressão dessa crise, não sua causa. E é certo também que o processo eleitoral norte-americano é, ao mesmo tempo, supreendentemente estável e profundamente confuso e injusto, e existem desafios muito mais profundos a serem resolvidos a fim de que a dita promessa da democracia norte-americana possa se efetivar. Paralisia decisória crescente, manipulação de mapas eleitorais e restrição no acesso ao voto, discriminação racial e social e a crescente deslegitimação do processo eleitoral pelas redes sociais são questões estruturais que se agravaram ao longo dos últimos anos e cuja resolução, caso se estivesse sendo tentada, não poderia ter sido conseguida somente com a saída do novaiorquino da Presidência.

De todo modo, é certo que Donald Trump ajudou a aprofundar a crise da democracia dos EUA, seja como o presidente errático e destrutivo que foi, seja como um ex-presidente que continua a promover ataques à legitimidade das instituições. Assim, uma possível volta de tão fatídico personagem à cadeira presidencial da maior economia do mundo não deve ser vista com bons olhos por qualquer pessoa que preze pela democracia e pelos valores a ela associados. Seja como for, tal desdobramento parece cada vez mais provável. 

(*) O autor é professor de História e Política da Universidade de Denver e Pesquisador do Instituto para Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: [email protected]

NOTAS 

1. Nancy Cook & Joshua Green, ‘Biden-Trump 2 Is the Election No One Wants’, Bloomberg News. 6 de novembro, 2023. (https://www.bloomberg.com/news/newsletters/2023-11-06/biden-trump-rematch-in-2024-election-americans-want-more-choice).

2. Ronald Brownstein, ‘Trump leaves America at its most divided since the Civil War’, CNN Politics. 19 de Janeiro, 2021. (https://www.cnn.com/2021/01/19/politics/trump-divided-america-civil-war/index.html).

3. Lydia Saad, ‘U.S. Political Ideology Steady; Conservatives, Moderates Tie´, Gallup. 17 de Janeiro, 2022. (https://news.gallup.com/poll/388988/political-ideology-steady-conservatives-moderates-tie.aspx).

4. Walt Wickey, ‘Make no mistake, it’s absolutely possible Trump wins the 2024 election’, Business Insider. 23 de setembro, 2023. (https://www.businessinsider.com/its-absolutely-possible-trump-wins-the-2024-election-2023-9).

5. Ariel Edwards-Levy, ‘Trump leads Biden in 4 key swing states, new polling finds’, CNN Politics. 5 de novembro, 2023. (https://www.cnn.com/2023/11/05/politics/trump-leads-biden-in-key-swing-states-new-polling-finds/index.html).

6. Rich Lowry, ‘Trump Actually Has Pretty Good Odds of Getting Back to the White House’, Politico. 3 de agosto, 2023. (https://www.politico.com/news/magazine/2023/08/03/trump-2024-victory-00109534).

7. David Zimmermann, ‘Bidenomics not resonating with voters pessimistic about the economy’, Washington Examiner. 3 de agosto, 2023. (https://www.washingtonexaminer.com/news/bidenomics-not-resonating-voters-pessimistic-economy-poll).

8. Robert Reich, ‘Third-party candidates will help Trump win’, The Guardian. 11 de setembro, 2023. (https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/sep/11/robert-reich-third-party-candidates-will-help-trump-win).

9. Jason Lange, ‘Trump indictment: Reuters/Ipsos poll shows most Republicans think charges are politically motivated’, Reuters. 14 de junho, 2023. (https://www.reuters.com/world/us/poll-trump-holds-double-digit-lead-after-federal-indictment-reutersipsos-2023-06-12/).

10. Kim Moddy, ‘Who Put Trump in the White House?’, Jacobin. 11 de janeiro, 2017. (https://jacobin.com/2017/01/trump-election-democrats-gop-clinton-whites-workers-rust-belt), Ronald Brownstein, ‘Mike Johnson symbolizes a new turn for the religious right’, CNN Politics. 31 de outubro, 2023. (https://www.cnn.com/2023/10/31/politics/mike-johnson-donald-trump-religious-right/index.html).

11. Alexander Bolton, ‘GOP sees turnout disaster without Trump’, The Hill. 14 de agosto, 2023. (https://thehill.com/homenews/senate/4149548-gop-sees-turnout-disaster-without-trump/).

12. Martin Wolf, ‘A Trump win would change the world’, Financial Times. 7 de novembro, 2023. (https://www.ft.com/content/4a14c19e-8285-4688-aa19-542023520798).

13. Aaron Zitner & Annie Linskey, ‘The 2020 Election Fueled a Crisis of Democracy. Voters Fear a Repeat in 2024’, The Wall Street Journal. 5 de agosto, 2023. (https://www.wsj.com/articles/the-2020-election-fueled-a-crisis-of-democracy-voters-fear-a-repeat-in-2024-72d84fbd).

14. Sarah Repucci, ‘From Crisis to Reform: A Call to Strengthen America’s Battered Democracy’, Freedom House: Special Report 2021. (https://freedomhouse.org/report/special-report/2021/crisis-reform-call-strengthen-americas-battered-democracy).

15. Miles Taylor, ‘Another Trump Presidency Would Be Even Worse Than You Think,’ Time Magazine. 12 de julho, 2023. (https://time.com/6294052/new-trump-presidency-would-be-even-worse/).

16. Anthony Zurcher, ‘What a Donald Trump second term would look like’, BBC News. 3 de novembro, 2023. (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-67272569).

17. David Atkins, ‘A Trump Victory Would Create a Constitutional Crisis’, Washington Monthly. 25 de agosto, 2023. (https://washingtonmonthly.com/2023/08/25/a-trump-victory-would-create-a-constitutional-crisis/).

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