Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
O dia começou nublado, frio, o despertador tocou às seis horas da manhã, Deméter foi a primeira que acordou, chamou sua filha, seus irmãos e seu namorado, todos foram até o bufê do hotel para tomar café. Quando chegaram no bufê, Perséfone achou um bilhete que alguém havia deixado na mesa, seus olhos brilharam, a inteligência aguçada foi despertada, em seguida a menina falou:
– Encontrei um bilhete interessante, vou ler para vocês: “um homem, uma mulher e uma criança descem da montanha. O motivo de estar ou sair da montanha já não estava mais em seus espíritos. Alguns minutos passaram, curiosamente esqueceram que desceram da montanha. Então, surgiu a pergunta: qual o motivo de lembrar? Não encontraram respostas, mas havia uma única certeza: estavam com fome, com sede e a memória não tinha qualquer sentido ou significado, já não era mais importante dizer quem eram, apenas havia o desejo, o impulso de satisfazer as necessidades de sobrevivência”.
Roberto – Essa mensagem serve para impulsionar um debate, só para começar o nosso dia, já que a memória tem um papel fundamental na vida humana, ela não apenas possibilita a consciência sobre o tempo, isto é, a relação entre o passado, o presente e o futuro, o que por sinal já é muito importante por possibilitar experiências sobre o modo de ser, fazer e construir uma percepção da realidade, isto é, uma experiência interna do ser humano que chamamos de consciência sobre o tempo.
Ulisses – Além do que você mencionou, vejo que a memória traz a relação dos seres humanos entre a coletividade e a individualidade, dado que a maneira como as pessoas aprendem, falam, pensam está atrelada a um conjunto de experiências que são bem significativas para a construção da identidade do ser humano, que não se limita a uma mera individualidade ou a um determinismo biológico.
Inaiê – Agora, fiquem atentos a frase, imagine o que seria de nós se por algum motivo não lembrássemos de quem somos, o motivo de estar viajando, buscando pelos irmãos, por nossa família, teríamos a consciência sobre nós? Uma identidade?
Roberto – Provavelmente, no meu modo de ver, não seríamos ninguém, nem estranhos, não teríamos nada sobre nós e muito menos sobre as nossas histórias, não haveria uma identidade, restando como diz a frase apenas o impulso por comida e água, mais nada.
Deméter – Isso não seria uma vida, apenas uma existência!
Roberto – De fato, se olharmos a memória corresponde a nossa capacidade de obtermos e guardarmos informações sobre as nossas vivências, que podem ser ouvidas, relatadas, sentidas, com o passar do tempo, a memória que permanece é que define quem somos, como somos, claro que existem as condições biológicas para isso, mas há, também, o estímulo para apresentação e sistematização dessas experiências. Poderíamos dizer que a memória possibilita o nosso acesso ao mundo propriamente humano, que é abstrato, conceitual, até mesmo virtual, onde são apreendidas as nossas experiências individuais e coletivas.
Ulisses – Poderíamos afirmar que existe uma memória coletiva e individual?
Deméter– Há alguns autores que concordam com essa visão, no caso da memória individual teríamos as experiências relacionadas e mais significativas dos indivíduos no seu cotidiano e durante as suas vidas. Já a memória coletiva, estaria ligada ao conjunto de experiências e fatos narrados de um determinado povo.
Inaiê – Eu penso que essa relação da memória é dialética entre indivíduo e sociedade, pois a linguagem que usamos apresenta um traço da coletividade, uso palavras que são de vários povos que não tive o contato direto, sem contar com os costumes, tradições. Por isso, acredito que influenciamos e somos influenciados, assim, tem muitos conceitos aprendidos por nós que são decorrentes de uma memória coletiva, nem sempre temos consciência desses aprendizados!
Perséfone – Quando minha professora fala da história, ela traz a memória de um povo, então aprendo como era de verdade, é isso?
Deméter – Minha filha, sobre as experiências que temos durante a vida, elas podem ser diferentes para cada um de nós, temos diferentes olhares, por exemplo, você não gosta do gosto do queijo, isso quer dizer que esse alimento e o trabalho realizado pelas pessoas é ruim e que essa é a única verdade?
Perséfone – Não, mas poderia ter deixado de lado esse exemplo. Agora fica a pergunta: se não há uma única maneira de ver, qual o motivo de estudar e discutir história?
Ulisses – Então, imagine que haja somente algumas pessoas autorizadas para contar a história dos alimentos necessários para as crianças consumirem e que tais pessoas decidam que o queijo é necessário para todos, será o nosso queijo! Nesse momento teremos uma única visão, pois não discutimos, pesquisamos ou refletimos, acredito que você não vai gostar muito disso!
Perséfone – Então, se não discutimos corremos o risco de ter uma única visão, aquela que algumas pessoas considerarem melhor para as outras, obrigando todos comer queijo, credo!
Roberto – Quando discutimos história é sempre importante olhar para aqueles que contam, você Perséfone iria contar uma história que esconderia o queijo, ao menos não falaria deles!
Perséfone- É claro!
Roberto – Entretanto, com essa atitude, você e todas as outras pessoas deixariam de aprender, pois olha só, você tem muita coisa relacionada com as experiências e as formas de sentir que estão ligadas com a produção do queijo, do leite, sem contar que muitas pessoas a sua volta produzem, fazem alimentos e ganham a vida com essa atividade. Por isso, podemos dizer que a história sobre uma atividade, um povo traz a nossa identidade.
Perséfone – Se é como você fala, ao não contar sobre o queijo e as atividades relacionadas eu deixaria muita gente de fora, o que poderia levar a uma coisa muito ruim.
Roberto – Qual?
Perséfone – Essas pessoas seriam esquecidas, ainda mais se fosse a única pessoa que pudesse contar a história!
Inaiê – Roberto você tentou simplificar e descobriu um cérebro juvenil muito aguçado, igual a tia! Falando sério, temos versões sobre a história de um povo, há os relatos acadêmicos, que muitas vezes é passado nas escolas, que sempre tem a necessidade de estar pesquisando, há também um contar da história, presente de várias formas, na oralidade, no cotidiano, nos costumes que são passados de geração para geração, que são memórias que as pessoas preservam e muitas vezes nem se dão conta. O problema é que na sociedade pode haver interesses que excluí determinadas narrativas, impossibilitando a visibilidade de muitas pessoas!
Ulisses – Podemos dizer que na narrativa sempre há uma intencionalidade!
Roberto – Agora, que tal pensarmos em mundo fictício, no estilo que George Orwell apresentou na sua obra 1984, para discutirmos a questão da memória?
Inaiê – Eu li essa obra, podemos fazer boas reflexões. Eu começaria trazendo a ideia em que o Estado apresenta estruturas para manipular a forma de pensar e interpretar as coisas, de acordo com as pessoas que estão a sua frente. Por esse motivo, a história seria contada de uma única maneira, já que a verdade teria uma única percepção.
Ulisses – O que aconteceria com aqueles que discordassem?
Roberto – Quem viesse relatar ou se organizar para pensar diferente seria punido, pois estaria afrontando os interesses do estado, ameaçando o ministério da verdade, responsável pela disseminação de notícias, de entretenimento e de educação.
Ulisses – Então, haveria uma polícia não apenas para as ações, mas também para o pensamento.
Inaiê – Exatamente, dessa forma muitas histórias do povo, da maneira como foi formado, com os diferentes, como foi produzido o mundo dos estranhos seria apagada pela polícia do pensamento.
Ulisses – Diante disso, o que acontece quando essa história dos diferentes, dos estranhos é apagada?
Inaiê – A resistência e o exercício do pensamento morrem!
Roberto – Claro, pois nesse caso, seria destruída a capacidade de defender, de lutar por algo, só haveria indivíduos dispersos na multidão.
Ulisses – Como atuaria a fiscalização desse processo?
Roberto – George Orwell mencionava que nas telas de televisão, por exemplo, os indivíduos não apenas assistiriam programas, mas seriam, também, fiscalizados e vistos pelo governo, trazendo para os nossos dias, imagine as nossas vidas, fiscalizadas, monitoradas nas redes sociais, pelos computadores, pelas câmeras, todos ficam monitorando o que fazemos todos os dias. Só bastaria a polícia de pensamento dizer o que você pode falar, quais conceitos são adequados de acordo com o que determina, na perspectiva de Orwell, o Ministério do amor, responsável pela lei e pela ordem.
Ulisses – Esses ministérios e o governo aprisionariam o povo, não haveria liberdade!
Inaiê – Será que a liberdade não seria apenas a escravidão justificada por ordenamentos jurídicos, do que é considerado, segundo a ordem, adequado?
Ulisses – Sem contar que as pessoas com o passar do tempo passariam achar tudo isso natural, que a verdade é única e deve ser tutelada não pelo exercício do pensamento, mas pelo Estado.
Inaiê – Não haveria mais pensamento crítico, já que quem ousasse seria preso ou morto com base na lei.
Roberto – Para piorar, imaginem se existisse um computador muito eficiente, capaz de apagar a história das pessoas e dos povos, o que o Estado poderia fazer? A partir dessa máquina, somente as pessoas saberiam o que viveram, contudo, as suas histórias seriam apagadas, não haveria mais resistência, uma determinada ordem seria imputada sem questionamentos.
Ulisses – Qual parte do governo seria responsável?
Roberto – Sem dúvida, o ministério da verdade!
Deméter – O mundo seria mais tranquilo, não haveria debates e a necessidade deles, todos concordariam com uma única versão, as pessoas teriam uma existência programada, sem saber de onde vieram, de suas raízes, não haveria rebeldias, já que essas seriam apagadas!
Ulisses – Se alguém começasse a questionar, a polícia do pensamento faria o diagnóstico rápido, havendo uma repressão eficiente, uma vez que sem a memória não há consciência da coletividade, apenas individualidades dispersas que são facilmente influenciadas ou reprimidas quando necessário.
Inaiê – Vocês acham que seria mais tranquilo? Isso seria loucura! Nessa hipótese, vejo que quando as pessoas sofreram ou sofrem uma violência muito brutal existe a tendência de haver uma ‘calma’ assustadora, que esconde os sentimentos de revolta, de medo, de dor, os seres agonizam, mas sem poder expressar a dor e se o fazem ninguém se importa, caso comova a opinião pública a polícia do pensamento age para silenciar e manter as aparências, mostrando uma força cruel, capaz de silenciar os sofrimentos das pessoas, das vítimas no decorrer da história e o pior de tudo sem ter a possibilidade para contar para seus descendentes o sofrimento que foi imposto, já que se quer possuem o direito da memória.
Deméter – Saindo dessa hipótese, se as pessoas não fossem educadas para valorizar a memória e suas histórias, não seria o mesmo que ensinar ou programar as pessoas para apagarem a memória de sua gente, dos seus sofrimentos, silenciando e mascarando tudo?
Inaiê – Claro que sim, sem memória, sem lembrança não somos nada a não ser uma mera existência que pode se apagar a qualquer momento!
Roberto – Para garantir a nossa dignidade é necessário ter a experiência de ser, como dizem os filósofos, o que pressupõe a memória das pessoas, das relações, não se trata de um registro ou de um dado aleatório, uma mera informação que deva ser decorada, mas trata-se da memória carregada de relações e intencionalidades, de sonhos, de lutas e frustrações, da vida de um povo, tais memórias trazem a nossa identidade e nos impulsionam para além do mero existir, a vocação da humanidade é transcender a existência para o ser.
Inaiê – Agora meu cunhado falou bonito, mas não entendi a última parte.
Roberto – Transcender é ir além de, além da experiência, nesse caso o ser humano não é apenas uma existência, que depende de comida, de água, mas um ser de consciência, o que o leva ao pensar como ser.
Inaiê – O que é impossível se não trabalhar com a memória, com a consciência, com as múltiplas vivências. Tudo isso torna o humano o mais complexo dos seres, agora se tirar a memória, teremos um animal calculista cheio de desejos e paixões, teremos uma mera existência.
Ulisses – A nossa conversa está boa, mas está na hora de partir, continuaremos na Combi e vamos ver se não achamos um exemplar do livro 1984.
Os viajantes pagaram a conta, prosseguiram a viagem impulsionados pela discussão sobre a reação entre as memórias e as versões contadas da história, com uma dose de ficção provocada por George Orwell, sabendo, em contra partida, que o ser humano necessita mais do que comer e beber, há o imperativo de problematizar e reconstruir as versões sobre suas experiências, sobre os fatos, principalmente quando se trata do mundo dos estranhos, já que muitas vezes o tempo de valorizar a memória não chegou, devido a triste realidade de não ter o mínimo para sobreviver ou um teto seu para que possa divagar e impulsionar o pensamento. Por outro lado, surge um mistério que pode ser sintetizado na questão: como é possível haver sempre uma gota de resistência ou por resgate? As memórias apagadas surgem constantemente e agem como se fossem fantasmas para alguns, por atormentar aqueles que possuem medo das novas versões, sobre o que pode emergir das profundezas escondidas na estranheza.
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Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.