Por Fausto Salvadori, diretor de redação da Ponte Jornalismo
Versão original em Newsletter da Ponte
Quando bolsonaristas foram presos pela tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro, teve gente que comemorou quando começaram a pedir respeito aos direitos humanos e a falar em devido processo legal, como se tivessem “aprendido algo” com essa experiência. Mas quem comemorou não entendeu nada. Prisões nunca ensinaram nada a ninguém, e não seria agora que essa regra universal conheceria sua primeira exceção.
A prova de que a extrema-direita não havia aprendido nada com as prisões dos seus apareceu na mesma semana, quando as mesmas vozes que haviam acabado de denunciar as supostas condições “desumanas” dos prisioneiros golpistas — obrigados, coitados, a comerem macarrão com nuggets (oh, humanidade!) — passaram a denunciar um suposto aumento do auxílio-reclusão, chamado por esse povo de “bolsa bandido”.
A indignação demonstrada contra o benefício foi de chamar a atenção. E não ocorreu só porque os extremistas houvessem sido alimentadas com fake news a respeito dos valores do auxílio-reclusão. Era um ódio tão intenso e violento que deixava claro que essa gente simplesmente não conseguia suportar a mera ideia de que a família de uma pessoa aprisionada pudesse receber alguma remuneração do Estado, não importasse quanto, ou como, ou em que condições.
Tanta indignação soa surpreendente quando a gente pensa que as famílias dos presos só estão recebendo algo pelo qual elas pagaram — afinal, apenas detentos que tenham contribuído com o INSS podem receber o auxílio, que é destinado somente a seus dependentes — e como esse benefício é restrito. No ano passado, como mostrou a reportagem de Jeniffer Mendonça, a quantidade de auxílios-reclusão ativos de dependentes de presos era de apenas 35.616, um número minúsculo diante de uma população prisional de mais de 700 mil pessoas, que deixaram aqui fora milhões de dependentes.
Mas como assim?, alguém pode perguntar. Os conservadores não estavam até ontem falando em direitos humanos para prisioneiros e agora estão chamando auxílio-reclusão de “bolsa bandido”? Não é contraditório? Na verdade, não. Nunca foi. O que acontece é que há uma visão de mundo de parte significativa da elite brasileira, que se encontra disseminado entre largos setores dos operadores do sistema de justiça, dos empresários, do jornalismo e de praticamente todos os integrantes das Forças Armadas, que nunca aceitou a ideia de direitos humanos. O lema “direitos humanos para humanos direitos”, nesse sentido, é literal e expressa algo bem mais profundo do que uma mera palavra de ordem.
A indignação com as prisões dos golpistas ocorreu não pelas prisões em si, mas pelo fato de terem sido praticados contra pessoas iguais a elas, que naõ são as que merecem ser presas: “pessoas de bem”, “trabalhadores”, “pagadores de impostos”, gente que “não é bandido”. Rótulos, enfim, que servem para delimitar uma categoria diferente de seres, que não merece ser tratada como se tratam aqueles que chamam de “bandidos”, “baderneiros”, “vagabundos”.
É uma visão de mundo que tem muito pouca relação com os crimes que essas pessoas possam vir a praticar, mas que tem tudo a ver com classe social, cor da pele, valores, onde moram. Um morador de favela será sempre um “vagabundo” em potencial, tanto mais se for negro. Mesmo que seja uma criança morta a tiros, vão dizer que estava armada e portanto merecia ser abatida. Agora, se um “cidadão de bem”, branco, rico e conservador, como Roberto Jefferson, atira granadas contra a polícia, a situação muda totalmente de figura. Os conservadores, incluindo aí a polícia, vão continuar a enxerga-lo como um ser humano, alguém com direitos a serem respeitados, que deve ser preso com vida e ainda tratado com urbanidade e deferência.
Essa visão de mundo também se expressa na constante reclamação sobre a Constituição brasileira prever “muitos direitos e poucos deveres. Por trás dessa fala, está a ideia de que “direitos” não são algo inerentes a todos os humanos — porque, para começo de conversa, esse povo nem acredita que exista uma humanidade comum. “Direitos”, segundo essa visão de mundo, são como dádivas a serem concedidas a quem tem condições de cumprir determinados “deveres”.
A herança dos genocídios e da escravidão de negros e indígenas, claro, está na origem dessa visão de mundo tão profundamente aristocrática. Durante séculos os dirigentes do Brasil se acostumaram a ver escravos como não humanos, que só poderiam se transformar em pessoas com direitos mediante a concessão de cartas de alforria. Direitos vistos como graça, como merecimento, como presente, nunca como algo inerente à humanidade.
O mais louco é que, por mais aristocráticas e pré-modernas que possam soar, essas ideias não estão amontoadas em nossa sociedade como resíduos de um tempo antigo, como lixo da história destinado a ser varrido. Noções racistas e contrárias aos direitos humanos não envelhecem, ao contrário, dão um jeito de se metamorfosear e se combinar com as práticas e ideologias capitalistas de última ponta, passando a integrar as últimas novidades. É por isso que vamos encontrar reflexos dessa visão contrária aos direitos humanos e à ideia de que pessoas são iguais incorporadas no discurso liberal do Partido Novo ou de empresários do agronegócio, nas ideias de “tolerância zero” defendidas por governadores, procuradores e desembargadores.
Os bolsonaristas que atacaram os prédios dos Três Poderes, infelizmente, são apenas a face mais tosca de uma visão de mundo amplamente disseminada, inclusive por diversas classes sociais, que vamos precisar seguir combatendo. Por mais que pareça simples, ou trivial, não é. No Brasil do século 21, como nos anteriores, o maior desafio é lutar para que todos os humanos do país sejam vistos, simplesmente, como humanos.