O Hamlet do socialismo democrático

A ruptura com Lenin ocorre em 1903, durante o Segundo Congresso do POSDR. Na raiz da divergência, não está a questão programática e sim a organizacional. Lenin defende um partido centralizado, formado por militantes profissionais, enquanto Martov favorece uma organização relativamente descentralizada e critérios mais amplos para filiação.

Foto em arquivo de memoiresdeguerre.com

Por Alexandre Fenelon e Victor Marques.

Há cem anos falecia Julius Martov. Amigo pessoal de Lenin e editor do jornal Iskra, denunciou a guerra imperialista e liderou a “oposição leal” ao governo soviético. Embora uma figura trágica, atropelada pela história, o marxista russo merece ser lembrado por refletir os dilemas do movimento revolucionário do início do século XX.

O marxista russo Julius Martov, um dos principais dirigentes do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), foi uma das figuras mais trágicas do movimento revolucionário. Não à toa, Leon Trotsky o apelidou de “Hamlet do socialismo”.

Martov talvez tenha sido o amigo pessoal mais próximo que Vladmir Lenin chegou a ter – ambos se conheceram na juventude, fundaram e editaram juntos o jornal Iskra [A centelha]. Mas uma cruenta disputa política separaria seus caminhos e os colocaria em campos opostos, primeiro na rivalidade entre frações no interior do partido, depois nos rumos da revolução russa, com a qual ambos tanto haviam sonhado.

Lenin, no entanto, triunfa: é postumamente elevado à figura de pai de uma nova nação, seu nome definindo todo um campo geopolítico. Martov, líder dos mencheviques internacionalistas, terá um destino mais melancólico: sem poder, torna-se uma figura marginal, quase esquecida. Sua posição intermediária, de “oposição fiel” ao novo regime soviético, terá poucos herdeiros. Sua visão de socialismo, que afirma tanto a democracia quanto a noção “ditadura do proletariado”, não encontra encarnação em nenhuma força política historicamente efetiva. Foi a Martov que Trotsky direciona sua ácida frase sobre a “lata do lixo da história”, em 1917.

Curiosamente, o implacável Lenin nunca perdeu a ternura pelo velho camarada. Ao saber que Martov estava doente, Lenin tenta transferir fundos para auxiliar seu tratamento médico na Alemanha. Em uma das suas últimas frases, logo antes do terceiro derrame lhe roubar a faculdade da fala, Lenin comenta a Nadejda Krupskaia, com profunda tristeza: “dizem que Martov também está morrendo.” Menos de um ano separa o falecimento das duas figuras mais destacadas da social-democracia revolucionária russa – com eles, morreu também uma época.

A formação de um revolucionário

“Martov” foi o pseudônimo de Iulli Osipovich Tserdebaum, nascido em 1873, de uma família de classe média judaica. Já na adolescência, Martov começa a se interessar por literatura revolucionária. Em 1891, termina o curso secundário e se matricula para estudar ciência natural na Faculdade Imperial de São Petersburgo. Com pouco interesse pelo curso, começa a frequentar aulas em outras faculdades. Acaba por se dedicar mais à atividade política do que aos estudos, e se envolve com distribuição de literatura clandestina. O grupo é infiltrado por um policial e Martov acaba sendo preso em fevereiro de 1892, condenado por participar em atividades subversivas anti-czaristas e expulso da Universidade. Não seria a última vez que a política de Martov o levaria à prisão (ou ao exílio).

Enquanto aguarda sua sentença, Martov se dedica a estudar o primeiro volume de “O Capital” e, em consequência, passa a se definir como marxista. Participa então da fundação do “Grupo de Emancipação do Trabalho de Petersburgo”, organização marxista dedicada à distribuição de literatura socialista. Seu primeiro trabalho publicado é um prefácio ao livro “Coletivismo”, do marxista francês Jules Guesde. Ainda em 1892 é preso novamente e condenado a 5 meses de confinamento solitário, seguido por dois anos de exílio, sendo-lhe permitido escolher o local para onde seria enviado. Martov faz a opção por Vilnius, a “Jerusalém da Lituânia”. Seus amigos haviam informado sobre a existência de um bom número de organizações de trabalhadores ativas na cidade.

Em Vilnius,  Martov se soma a um grupo marxista judaico. Ensina economia política e história para os trabalhadores. Posteriormente, o grupo decide caminhar para a organização de um partido de massas do proletariado judaico.  Em 1893, Martov escreve o panfleto “Sobre a agitação”, no qual defende a necessidade de conscientização da classe operária a partir da abordagem de problemas cotidianos, e da luta pela melhoria das condições materiais, até o momento em que as condições estivessem maduras para a tomada do poder. Defende também a criação de uma organização separada para os trabalhadores judaicos, fornecendo a justificativa ideológica para a criação do Bund, a organização socialista judaica.

Em 1895 Martov retorna do exílio. Juntamente com Lenin, participa da formação da “União da luta pela emancipação da classe trabalhadora”. Em poucos meses, a maior parte dos líderes é presa pela polícia, incluindo Martov e Lenin, que permanecem na cadeia durante todo o ano de 1896. Em 1897, os presos são condenados a três anos de exílio na Sibéria, em localidades diferentes. Martov vai para Turukhansk, uma pequena vila, com cerca de 200 habitantes, próxima do Círculo ártico. Mantém contato com Lenin pelo correio. Sua principal obra desse período é “A causa dos trabalhadores na Rússia”, onde discorre sobre as reivindicações do movimento operário russo e defende as greves e as alianças com a classe média liberal, mas sem concessões programáticas, como estratégia para conquistar espaço na sociedade russa.

É nesse período em que Martov está no exílio que se dá um evento chave para a consolidação do marxismo russo: a fundação do Partido Social Democrata, com o primeiro congresso realizado em Minsk, em 1898.  A organização de Martov e Lenin, mesmo debilitada pelas prisões, é um dos grupos fundadores do partido, juntamente com o Bund e o grupo do  Rabochaya Gazeta (Jornal dos Trabalhadores), de Kiev.

De volta do exílio, Martov participa, juntamente com Lenin,  da fundação do Iskra, o jornal da social-democracia russa. Como jornalista e organizador partidário, converte-se em uma figura central do movimento. Defende a ortodoxia marxista contra o revisionismo de Bernstein e o oportunismo de Millerrand; combate a vertente dos “economicistas”, focada em melhorias materiais para a classe trabalhadora, em detrimento da política revolucionária; e se posiciona contra autonomia do Bund e as vertentes sionistas do socialismo. Permanece na Rússia até 1901, quando se junta ao grupo editorial do Iskra em Munique, com posteriores mudanças para Londres e Genebra.

O cisma entre os marxistas

A ruptura com Lenin ocorre em 1903, durante o Segundo Congresso do POSDR. Na raiz da divergência, não está a questão programática e sim a organizacional. Lenin defende um partido centralizado, formado por militantes profissionais, enquanto Martov favorece uma organização relativamente descentralizada e critérios mais amplos para filiação. Ironicamente, o próprio Martov era um verdadeiro exemplar do modelo de militante profissional Leninista, tendo dedicado integralmente sua vida à organização da classe trabalhadora e à revolução social. Os eventos do Congresso levam à famigerada cisão do POSDR entre bolcheviques e mencheviques, termos que até hoje é possível se escutar nas polêmicas internas da esquerda. Os dois grupos operam, na prática, como partidos separados, apesar de tentativas posteriores de unificação. A separação formal das estruturas partidárias só vai ocorrer em 1912.

Em fevereiro de 1904, começa a guerra Russo Japonesa. Martov defende a neutralidade dos socialistas, e a necessidade de negociações de paz. Como em outros momentos, é possível constatar um forte caráter pacifista na atitude de Martov diante dos conflitos militares. A guerra vai mal para a Rússia e a situação interna se complica ainda mais em janeiro de 1905, quando as tropas do czar dispersam uma marcha de protesto, liderada pelo Padre Gapon. Centenas de manifestantes são assassinados pela repressão do Estado czarista. Em poucos dias, greves e revoltas de trabalhadores se espalham por todo o país. Em Petersburgo, os grevistas formam um Conselho de trabalhadores (Soviete).

Na ocasião, agarrado à ortodoxia marxista, Martov defende o caráter burguês da revolução, e rejeita a tomada do poder pela classe trabalhadora, assim como a participação dos socialistas em um governo burguês. Já Lenin argumenta que a burguesia russa é muito fraca para tomar o poder e propõe a fórmula da “ditadura democrática operária e camponesa”. O desfecho do processo revolucionário mostra que ambos estavam parcialmente corretos – e parcialmente errados. A burguesia, de fato débil e sem iniciativa própria, foi facilmente cooptada por concessões mínimas. A tentativa de um levante armado, no final de 1905, levada a cabo com mais afinco pelo proletariado do que por qualquer outro segmento social, foi esmagada. A Rússia não estava – pelo menos ainda – madura para a revolução social. A posição de Martov, em termos estritamente teóricos, estava mais em linha do que era tido como o “marxismo ortodoxo” da época, expresso na direção da II Internacional, do qual o POSDR era membro. Havia já se tornado evidente, contudo, um problema de ordem prática. O que, exatamente, ganhariam operários e camponeses ao arriscar a vida e a liberdade, para, no final, entregar o poder ao inimigo? Esse dilema confrontou todos os partidos socialistas da época, que de alguma forma se comprometiam com a doutrina da revolução em etapas.

Martov volta à Rússia no final de 1905, mas tem pouca participação nos últimos atos da revolução. Defende a participação dos social-democratas nas eleições para a Duma, uma das modestas concessões arrancadas do regime. As eleições resultam em uma maioria liberal. Martov ajuda a organizar a bancada operária da Duma, mas é preso por duas vezes em 1906. Ao ser libertado, tem a opção de escolher entre três anos de exílio na província de Tomks, ou saída voluntária do país. Vai para Berlim, mas depois retorna a Finlândia, prosseguindo suas atividades políticas.

Os eventos de 1905 haviam resultado na reunificação temporária do POSDR, e Martov participa do Quinto Congresso do partido, em Maio de 1907. Os Bolcheviques saem vitoriosos no Congresso, com uma pequena maioria no Comitê Central, e a maior parte de suas teses aprovadas. No mês seguinte, o golpe do Stolypin liquida de vez com qualquer esperança de transformar o POSDR em um partido de massas com atuação parlamentar legal. Martov não retorna para a Finlândia, preferindo se estabelecer em Paris. Em 1910 ocorre a Conferência de Paris, mais uma tentativa de reaproximação entre Bolcheviques e Mencheviques, em meio a uma campanha dos Bolcheviques contra os chamados “liquidacionistas” (defensores do desmantelamento da estrutura clandestina do partido). A reunião tem resultados inconclusivos, e o balanço de poder no partido permanece mais ou menos inalterado. A cisão é formalizada em 1912, quando Lenin convoca um congresso do partido – mas, dessa vez, sem convidar os mencheviques.

Da guerra à revolução

Aeclosão da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914, é um duro golpe para Martov. Não tanto pelo conflito em si, mas pelo seu horror frente à escandalosa adesão generalizada dos partidos socialistas aos respectivos governos nacionais. A traição começa com a aprovação dos créditos de guerra pelo Partido Social Democrata Alemão (SPD), a liderança moral e intelectual da II Internacional, o maior partido operário europeu, que havia servido de modelo e inspiração para os marxistas russos. A oposição de Martov à guerra, mais uma vez, tem muito de pacifismo. Já Lenin e Trotsky, igualmente horrorizados pela capitulação dos partidos socialistas ao chauvinismo nacionalista, enxergam no conflito uma oportunidade para a abertura de um momento revolucionário, que converteria a guerra imperialista entre nações em guerra civil entre as classes.

A guerra virtualmente destrói a Internacional Socialista, a II Internacional dos partidos operários, criada sob as bênçãos do próprio Engels e por meio da qual o marxismo pode conquistar a hegemonia teórica do movimento internacional da classe trabalhadora. Martov lamenta o fato e considera necessária sua reconstrução. Já Lenin, apostando que havia se iniciado uma nova “época de guerra e revoluções”, defende a criação de uma nova Internacional, mas sem oportunistas. Lenin também enxerga, na guerra, a falência do sistema capitalista e a oportunidade para a revolução mundial, chegando a defender que os socialistas trabalhassem para a derrota dos seus próprios Estados, na tese que ficou conhecida como “derrotismo revolucionário”.  Lenin e Martov ficam lado a lado novamente na Conferência de Zimmerwald, realizada pelos grupos socialistas que se mantinham em resoluta denúncia e oposição à guerra.

Tanto as posições iniciais de Lenin quanto de Martov, no que diz respeito à guerra, tinham lá suas deficiências. O pacifismo principista de Martov se mostra de cara pouco efetivo. A esperança de recompor os cacos da Internacional era irrealista, até ingênua: os partidos socialistas já haviam optado pela lealdade ao estado nacional, contra o princípio do internacionalismo proletário, ao qual poucos anos antes todos haviam jurado obediência nas atas dos congressos da Internacional. Por outro lado, a posição de Lenin era, pra dizer o mínimo, arriscada. É perfeitamente plausível sabotar o esforço de guerra e trabalhar pela derrota do seu próprio governo, mas isso pressupõe que seus camaradas, do outro lado da fronteira, estariam dispostos a fazer o mesmo. Caso contrário, o movimento socialista seria não apenas taxado de “anti-patriótico”, como de fato foi, como se colocava no perigo de isolamento em relação às grandes massas populares. A audaciosa postura de Lenin envolvia a aposta de que, mais cedo ou mais tarde, as massas mesmas se revoltariam contra a guerra, e se veriam dispostas a mirar as balas nos próprios generais. Não é preciso dizer que a ousadia de Lenin acabou levando a melhor, uma vez que um ciclo revolucionário internacional foi de fato desencadeado pela guerra imperialista mundial. Aqui temos uma situação que irá se repetir nos próximos anos: Martov pregando no deserto, defendendo uma posição baseada em princípios, porém irrealista frente às circunstâncias, e Lenin, por outro lado, assumindo até às últimas consequências os riscos e contradições decorrentes de sua análise do processo revolucionário.

A Revolução de fevereiro abre o caminho para o retorno dos exilados. Lenin volta em abril. Martov, que decide não embarcar no famigerado “vagão lacrado”, demora umas semanas a mais para retornar. Quando enfim põe os pés de volta na Rússia, encontra seus camaradas de organização, os mencheviques Dan e Tseterelli, integrando uma coalizão com os partidos burgueses – e, pior, defendendo a continuidade da guerra. Martov se vê isolado e minoritário dentro de sua própria corrente. Para complicar ainda mais a situação, o governo provisório de Kerensky tenta uma nova ofensiva militar. O fracasso humilhante da ofensiva resulta na virtual desintegração do exército Russo, o que abre espaço para a tentativa de golpe branco do general Kornilov, o que significaria o fim da revolução democrática de fevereiro.

A partir de julho de 17, Martov passa a defender uma coalizão puramente socialista, envolvendo apenas os partidos de esquerda, representados nos Sovietes. Escapando da paralisia menchevique, formula um programa prático, com 7 itens emergenciais, visando à reorganização da vida política e econômica do país, com um forte componente de planejamento estatal. Se tivesse vindo antes, talvez pudesse ter sido o maior acerto de sua vida política. Infelizmente para Martov, chegava tarde demais: seu próprio partido estava desmoralizado pela participação no governo burguês, dividido e hesitante demais para se comprometer com uma proposta ambiciosa. A hesitação frente ao fato da revolução cobra um preço alto.

A questão do poder acaba por ser resolvida pela iniciativa bolchevique, em Outubro de 1917. No Congresso dos Sovietes, realizado logo após a tomada do poder, um Martov que contava ainda com considerável autoridade frente aos operários defende, sob forte aplauso da plenária, uma proposta de governo de coalizão socialista. Mas os bolcheviques, energizados pela vitória militar da insurreição e convertidos em um partido de massas ao se posicionar como a tendência de maior disposição revolucionária, não estão mais interessados em compromissos. Coube a Trotsky, o implacável orador recém-chegado às fileiras bolcheviques, proclamar o duro julgamento contra seu antigo mentor: “aqui nenhum compromisso é possível; vá para onde vocês devem ir – a lata de lixo da história”.  Os mencheviques decidem abandonar o congresso. Em seu caminho, Martov é interrompido por um delegado operário: “havíamos pensado que pelo menos o Martov ficaria conosco”.

Outro caminho era possível?

Aproposta de uma coalizão exclusivamente socialista era viável? Teria evitado a guerra civil? Para elaborar uma resposta, teríamos que examinar a situação da Rússia em 1917. É possível que um governo socialista “puro” tivesse tido algum sucesso em reorganizar a economia e fazer uma paz em separado com a Alemanha, mas a partir de junho de 1917, com a ofensiva de Kerensky, o exército russo havia, para todos os efeitos, deixado de existir. Porque a Alemanha negociaria aquilo poderia ser tomado de qualquer forma? Por outro lado, um exército mais ou menos intacto teria sido uma arma poderosa na mão dos reacionários, e é plausível que àquela altura uma guerra civil tivesse ocorrido independente da natureza do governo que assumisse o poder.

Ademais, a história não foi nada gentil com os exemplos de coalizões entre reformistas e revolucionários nas revoluções e guerras civis do século XX, seja no caso da Hungria (1918) ou no da Espanha (1936-39). Nem mesmo em tempo de paz as chamadas “Frentes Populares” tiveram sucesso (Chile 1970-73, França 1936 e 1981); foram experiências curtas e instáveis. A principal questão é qual programa pode ser colocado em prática por uma coalizão de partidos socialistas, e em que medida ele pode ser compatibilizado com a democracia liberal. Por mais atrasada que fosse a Rússia em 1917, uma coalizão dessa natureza só poderia se manter no poder pela execução de um programa de transição ao socialismo. Afinal, não se toma o poder para simplesmente entregá-lo ao inimigo. A classe trabalhadora deve então aspirar a se tornar classe dominante. Mas a que custo? Enfrentando que resistência? Estariam, por exemplo, os Social-Revolucionários de direita, ou os Mencheviques, dispostos a promover a transição socialista? E como se comportariam as antigas classes proprietárias expropriadas ou os Estados capitalistas em volta?

Nos primeiros meses que se seguem à Revolução de Outubro, Martov ainda participa das negociações, todas fracassadas, para a composição de uma coalizão de partidos socialistas. Os Social-Revolucionários de Esquerda inicialmente integram o governo Bolchevique. A ala esquerda dos mencheviques assume o controle do partido, ou pelo menos do que havia sobrado dele. Com apenas 3% dos votos na eleição da Assembleia Constituinte, o partido já tinha deixado de ser uma força política significativa. Mas os Bolcheviques, que nas urnas recebem apenas 24% dos votos, também ficam bem longe de conseguir controlar o órgão. A Assembleia Constituinte, cuja convocação havia sido uma das demandas da revolução de outubro, é fechada pelos próprios bolcheviques – que por isso recebem críticas mesmo de alguns de seus aliados no movimento operário europeu.

Martov lidera os mencheviques a partir da linha de oposição fiel ao novo regime soviético. Critica sempre a repressão bolchevique e o terror vermelho, mas recusa de maneira categórica qualquer tipo de aliança com a direita – e defende publicamente o apoio ao exército vermelho durante a guerra civil. Na raiz de sua oposição está a análise de que não existem condições objetivas para implantar o socialismo na Rússia, mas enxerga a Revolução de Outubro como um mal menor, e tem esperanças de que o novo governo passe por um processo de democratização. Os mencheviques atuam como um partido de oposição legal no VTsIK (Comitê Executivo Central da União) e conseguem ganhos significativos nas eleições para os Sovietes, até que o espaço para a oposição vai se fechando. Em junho de 1918 os mencheviques acabam sendo finalmente expulsos do VTsIK.

No final de 1918, a oposição reacionária recupera posições e se fortalece apoiada pelos Estados que temem a contaminação revolucionária internacional. A guerra civil entre Vermelhos e Brancos é uma realidade inescapável. Diante dela, Martov apoia decididamente o governo Soviético, contra os exércitos brancos. O partido é formalmente relegalizado no final de 1918, embora ainda esteja sujeito à censura e perseguição. Na mesma época, começa a revolução na Alemanha. Assim como Lenin, Martov era da opinião que a revolução alemã seria essencial para a sobrevivência da revolução russa, e passa nesse momento a considerar viável a transição imediata para o socialismo, desde que contando o apoio de uma Alemanha vermelha, sob governo operário. Quando a Guerra Civil enfim se encerra, no final de 1920, os Bolcheviques saem vitoriosos e consolidados no poder, mas comandando uma economia arrasada e reivindicando a representação de uma classe operária que havia praticamente sido destruída. Pior: a revolução alemã fica pela metade. A República Democrática é instaurada, mas a democracia dos conselhos é pisoteada por um governo social-democrata. Os Bolcheviques agora devem lidar com o isolamento e o atraso econômico, sem contar com a possibilidade de qualquer tipo de socorro externo.

Martov atuou como líder dos mencheviques durante todo o período da guerra civil. A sua política, de apoio crítico aos bolcheviques, foi parcialmente bem-sucedida. Apesar das deserções, à esquerda e à direita, manteve o partido relativamente coeso, e impediu sua desintegração. No campo econômico, defendeu políticas muito similares à NEP (Nova Política Econômica), de abertura controlada de mercados e apaziguamento com os camponeses, de fato adotadas finalmente pelos bolcheviques a partir de 1921.

O período que vai do final da guerra civil, até meados de 1922, é desastroso para a Rússia socialista. Uma fome generalizada atinge o sul do país, matando cerca de 5 milhões de pessoas. Várias revoltas camponesas eclodem, sendo particularmente violentas na província de Tambov. Os marinheiros da base de Kronstadt, outrora um baluarte da revolução, se rebelam, e são brutalmente reprimidos. Com o colapso da indústria, ocorre uma migração massiva da cidade para o campo e uma redução da classe trabalhadora urbana. A base de apoio dos bolcheviques em larga medida se evapora. Na tentativa de reviver a economia, os bolcheviques fazem uma série de concessões à propriedade privada e aos mecanismos de mercado. Esse conjunto de medidas é conhecido como a Nova Política Econômica, e terá um sucesso considerável nos anos seguintes. No entanto, no cenário político, a repressão se acentua. O regime de partido único é oficializado: os partidos Menchevique e Social-Revolucionários são colocados na ilegalidade e muitos dos seus líderes presos.

A consolidação do regime bolchevique praticamente encerra as atividades políticas de Martov na Rússia. Sua voz havia se tornado quase inaudível: seja no sentido físico, com a saúde profundamente debilitada por, ao que tudo indica, uma tuberculose; seja no sentido político, sem poder participar do debate público e com seu partido condenado à ilegalidade. No final de 1920, vai à Alemanha, para o congresso do Partido Social Democrata Independente (PSDI) da Alemanha, onde é discutida a adesão à Internacional Comunista. Sua última aparição pública foi um debate com Zinoviev, a essa altura presidente da executiva da Internacional Comunista. Martov tenta, sem sucesso, convencer os delegados do PSDI a não aderir à nova organização. A votação é apertada, e resulta afinal no racha do partido: cerca de metade, a minoria derrota decide retornar ao partido social-democrata, enquanto a maioria se soma ao partido comunista.

Embora combalido pela doença, Martov continua a publicar no jornal do partido, “Sotsisalistichesky Nestnik” (Mensageiro Socialista), até o fim da vida, sem nunca abdicar do marxismo. Há exatamente um século sua voz se apagaria completamente. Em 4 de abril de 1923, morria Julius Martov, então com apenas 49 anos de idade.

Um “meio-bolchevique”

Martov foi um revolucionário. Da juventude até os últimos dias foi um marxista convicto. Sua vida foi inteiramente consagrada ao movimento operário e à causa da revolução social. Não pode, portanto, de forma alguma ser comparado a um Scheideman ou um Ebert, a direita social-democrata alemão que no poder não deixou de expressar seu desprezo pela revolução. Mas foi um político hesitante em uma época de revoluções. Em momentos cruciais, se deixou imobilizar pela dificuldade de agir, evidenciando uma certa rigidez de princípios, seja teóricos seja morais.

Sua desconfiança frente a possibilidade da construção do socialismo na Rússia fazia sentido à luz do marxismo; o próprio Lenin talvez concordasse com a tese. As esperanças de Lenin, ao encaminhar os bolcheviques para a tomada do poder, estavam vinculadas à possibilidade da revolução internacional. A combinação de vitória na guerra civil e derrota da revolução mundial não estava nos planos originais. Cercada de potências hostis, e arruinada economicamente, a União Soviética foi capaz de reconstruir a economia, e até alcançar um certo nível de prosperidade material e bem-estar, mas a um custo humano muito alto, e por um período limitado. Havia alternativa?

Uma coalizão de partidos socialistas, como chegou a vislumbrar Martov (e, em alguns momentos, os próprios bolcheviques) talvez pudesse ter sido uma alternativa à guerra civil e à posterior ditadura de partido único. Certamente a Rússia vermelha teria melhores chances de sobrevivência se a guerra civil fosse evitada, ou ao menos não tivesse causado tanta devastação. Mas é válido perguntar se as divergências internas, entre os grupos socialistas, não teriam dificultado ainda mais a luta contra os Brancos, ou mesmo se a democracia seria sustentável em meio a uma inclemente ofensiva reacionária. A estrutura centralizada do partido Bolchevique pode não ter sido a melhor possível para administrar a economia nos anos de 1917 a 1921, e muito menos, claro, para construir uma democracia operária socialista viva e duradoura – mas foi, não há dúvida, eficaz em garantir a vitória na guerra civil e em manter o poder.

Martov, e nisso ele estava em perfeita continuidade com o “marxismo clássico” dos partidos operários de massa, sempre acreditou que democracia e socialismo são inseparáveis. Mas até que ponto as instituições da democracia liberal são compatíveis com a transição ao socialismo? As experiências do século XX mostram, para dizer o mínimo, que as esperanças originais dos socialistas, que acreditavam em uma transição por meio do sufrágio universal e do aprofundamento da democracia, eram excessivamente otimistas. Na prática, a burguesia está sempre mais do que disposta a decretar o fim do jogo democrático, e atropelar as regras do jogo inescrupulosamente, sempre que um governo eleito ameaça a sacrossanta propriedade privada.

Se formos analisar a totalidade da obra de Lenin, o que encontramos é um ardente defensor da República Democrática, e em seus últimos anos, que coincidem com os primeiros anos da experiência de construção do socialismo na Rússia, o que frequentemente aparece é a expectativa de que os conselhos de operários e camponeses pudessem realizar a velha visão de Marx do “auto-governo dos produtores livremente associados”. A democracia soviética, expressão da atividade autônoma proletária, poderia ser uma forma de democracia superior à democracia liberal sob regime burguês. Mas o sistema de Sovietes foi rapidamente esvaziado, e o poder exercido de forma opaca – com os debates políticos frequentemente resolvidos por métodos policiais – pela burocracia do partido único. O problema da democracia continua em aberto. Esse não é um problema menor: continua o problema central do socialismo.

A tragédia de Martov é que ele até poderia estar frequentemente certo em termos de  princípios, mas isso quase nunca se expressava na forma de uma política resoluta e eficaz. Seu pensamento nuançado e sofisticado frequentemente desaguava em uma prática hesitante, débil. No mais das vezes, apesar de seu brilhantismo e boa fé, Martov ficou a meio caminho.

Chega a ser irônico que a organização sucessora da II Internacional a qual os mencheviques de Martov se filiaram, a União Internacional dos Partidos Socialistas, ficou conhecida como “Internacional 2,5”. Nem tanto aqui nem tanto ali: uma posição intermediária entre o reformismo e o comunismo. Existe alguma controvérsia sobre a posição final de Martov. Seu principal biógrafo, Israel Gletzer, acredita que ao fim da vida teria finalmente rompido de modo definitivo com o apoio crítico ao bolchevismo, e se alinhado de vez ao anticomunismo da nova social-democracia. Essa interpretação é questionada por Andre Liebich, segundo o qual “Martov continuou a adotar, certo ou errado, aquilo que seus críticos chamavam de posição ´meio-bolchevique´”.

A tragédia de Martov não foi apenas a tragédia de um homem. Foi a tragédia do movimento socialista de massas no século XX. Entre a capitulação social-democrata ao capitalismo e a interpretação bolchevique, endurecida pela guerra civil, de “ditadura do proletariado”, Martov se viu ao fim da vida como um homem sem lar. A velha cultura política que o havia formado, a da social-democracia revolucionária, se encontrava agora despedaçada. Que a memória desse drama possa nos ajudar a pensar outros caminhos para o século XXI.

Sobre os autores
Alexandre Fenelon é médico, marxista e defensor das causas perdidas.
Victor Marques, é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

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