“Se você esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstruir”
Provérbio africano
Por Katiúscia Ribeiro*, em Le Monde Diplomatique.
A filosofia da ancestralidade está na confluência do pensamento contemporâneo sobre humanidade. No âmbito dos estudos que permeia este debate, as avaliações sobre as humanidades e como os sujeitos são definidos tomam os centros dos diálogos na tentativa de responder e/ou identificar quais fissuras estremecem as relações humanas na atualidade, a ancestralidade se apresenta então como categoria de reconhecimento no modo de assentir a ontologia do sujeito negro. Este artigo diálogo, é um convite a quem discorre seu olhar sobre esse texto e percebe, que se tratando do povo negro a humanidade nasceu no amanhecer de ontem.
No mês de novembro, mês dedicado ao reconhecimento das lutas históricas da população negra, os movimentos sociais em suas diferentes dimensões de lutas, comemoram nas organizações coletivas, Quilombolas e outras, processos de memórias, histórias, sociabilidades e partilhas que nos aproximaram das tradições e da ancestralidade africana e jamais renderam-se às violências nas quais foram submetidos. O novembro negro, marco simbólico, nos convida a refletir quais as estratégias que esses povos utilizaram para sobreviver e como essas ações nos ajudam a responder as inquietações que iniciam essa escrita.
Afirmo que a maior estratégia de sobrevivência foi a nossa capacidade de resistência e de imbricar conhecimentos diversos, mesmo em meio aos destroços que o colonialismo fez de nós e da diáspora africana. Temos trazido o olhar para trás e o assegurar-se nas lembranças como pontos de reflexões e de possibilidades para um viver digno que retraz as experiências de um povo que sobreviveu e sobrevive apesar das frequentes violações e desumanizações que lhe foram submetidas no processo escravista e continuam até os dias atuais. Sem dúvida, reconectar às práticas organizativas baseadas nas ancestralidades africanas é ponto fundamental que move e moverá sempre nosso futuro. A organização de uma sociedade que segue os princípios ancestrais está calcada na pratica de solidariedade-comunidade.
O secular processo de violações e violências agregaram modos e comportamentos das diferentes etnias que se fortaleceram e valorizaram a ancestralidade com um valor estruturante onde pessoas pretas encontraram espaço e fôlego para se apoiar e defender o que lhe restava de identidade humana subtraída pelo rapto e pela violência colonial. Em meio a distopia de uma realidade física o corpo em contato com outros corpos recupera sua territorialidade, estabelecendo conexões capazes de diálogos com outros corpos que imbricam histórias diferentes, fortalecem e reconstituem a memória, a palavra como vida e ação dando sentido e significado e orientam as existências pretas fora de África. Essas significações centram as resistências do povo negro em suas experiências e vivencias, e o corpo território manteve e mantém viva as marcas ancestrais por conta dos vínculos profundos com sua memória ancestral. Este foi o escudo que protegeu a população negra de não ser totalmente absorvida pela cultura ocidental dominante.
Ao identificar nesses corpos, as presenças vivas das ancestralidades, reconhecermos estes como elemento primordial e combustível onde abriremos as portas para compreender a raiz ontológica da humanidade negra, nos perguntar onde vive a nossa ancestralidade torna-se um problema filosófico e passa a ser a pergunta chave que costura cada estrofe deste trabalho. Ancestralidade neste ensaio aparece como um conceito analítico da existências e experiências humanas e suas projeções futuras.
Nesse sentido, incorrem duas perguntas que são fios condutores desta escrita: Onde vivem as ancestralidades? De que maneira a “humanidade do ser” pode ser reconfigurada a partir de um princípio ancestral? Para responder tais perguntas é importante observar que o conceito ancestralidade aparece como uma categoria de reconhecimento de uma análise filosófica da antiguidade, um procedimento filosófico onto-triádica do Ser galgado ontem e no hoje que é o amanhã. Sendo ela inicialmente o princípio que organiza um sistema filosófico e arregimenta todos os valores e imperativos na dinâmica civilizatória africana.
Este diálogo compreende que o conceito de ancestralidade não se fixa em uma era histórica, tão pouco se limitou à um modo antigo de produzir filosofia ou mesmo se limitou à pessoas, mas sim se encontra como um modo de percepção holística africana estendendo-se à diáspora.
Mesmo na condição de escravizados, o nosso povo conseguia se organizar coletivamente, de forma solidária, reforçando um ao outro a lembrança do que éramos em África antes do colonialismo. A ancestralidade ancora a existência do ser sujeito negro como premissa filosófica. Aliás, existir sempre permeou os desafios da filosofia, sendo o elemento primordial que motivou pensadoras e pensadores ao longo dos seus percursos filosóficos… Se fizermos uma análise sincera, vamos perceber, no modelo ocidental a que estamos submetidos, que quase não falamos sobre ancestralidade, aparentemente a maioria das pessoas não apresentam interesse pelo tema e outras acham que estão desconectados de sua ancestralidade, mas se pensarmos bem, nossa ancestralidade é a vida em suas mínimas formas como respirar, “ancestralizar” é viver.
No início dos meus estudos em filosofia me dei conta que fui ensinada a pensar a partir de um olhar exclusivo que excluía toda pluralidade da vida, do ser, do existir enquanto sujeito. Descobri ainda que esse pensamento exclusivo me impunha um jeito de ser e viver que não correspondia às minhas aspirações, necessidades e tradições. O pensamento filosófico que deveria nos impulsionar para reflexões sobre temas nobres da vida – como ética, existência, conhecimento, entre outros – partia de um olhar limitado de uma cultura, uma cultura que não levava em consideração nossa ancestralidade, a ancestralidade-história do povo preto. Comecei, portanto, uma investigação para reencontrar saberes e práticas filosóficas que dialogassem com a minha ancestralidade.
Descobri que a pergunta chave para buscar um saber filosófico africano passa por saber: “Onde vive a nossa ancestralidade?”. Agora pare, respire, pense… ouça! Esse pode ser um momento importante em que você precisa pensar sobre sua própria existência e chegar, quem sabe, na premissa filosófica de “Qual o sentido da vida?” Da tua vida!
Como compreender quem somos se não nos perguntamos o que éramos, ou melhor, de onde éramos? Ancestralidade não pode ser definida apenas como uma árvore genealógica, está muito além disso, ela percorre a linha sanguínea do tempo e firma-se na existência. Ela é uma forma respeitosa de honrar e (re)lembrar dos nossos antepassados. Para as pessoas pretas a ancestralidade é a chave que abre os portais de sua realidade histórica, filosófica, linguística e culturalmente para um projeto de povo. Ancestralidade é mais que uma reflexão, ancestralidade é um princípio filosófico que rompe os muros da academia e chega até a cadeira de sua avó ou de seu avô como voz de sabedoria que conta através de suas oralituras – leituras de oralidade – a compreensão da sua existência.
Nesse sentido o conceito de eu para o ser africano está no ontem. As oralituras são as vozes da ancestralidade em nós. Através de nós, manifestadas em mitos, estórias, histórias, segredos, mistérios, rituais, crenças, valores, saberes, dizeres, fazeres. Desde o banho de folhas de pitanga para curar a febre, até o chá de boldo para o fígado “atacado”. É o ditado popular que diz que “o aluno não sabe mais que o professor”, é o samba que diz: “Sempre me deram a fama / De ser muito devagar / Mas desse jeito / Vou driblando dos espinhos / Vou seguindo meu caminho / Sei aonde vou chegar.”. Nossa ancestralidade não se esconde nas academias ou em textos complexos de ética, moral e ontologia, nossa ancestralidade se encontra na solidariedade comunitária, no comum, nas rodas de candomblé, de capoeira, de samba, de conversas, de rimas.
Ancestralidade, enquanto princípio filosófico, é de ordem coronária que possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência materializada em diversas ações e oralituras.
Nossa ancestralidade nos faz perceber, nos faz sentir, nos faz pensar. Ela é impressa como força representativa de um saber vivo que se reinventa, uma força de vida mais criativa que a morte, que a diáspora ou a escravização. A ancestralidade é o vento materno, é o sopro de vida que é tecido no ventre de nossa mãe pelo sangue ancestral, é a música que faz vibrar as células do nosso corpo e dita o ritmo do nosso coração, é a poesia que acalma e perturba, é a filosofia e seus favos de sabedoria, é a luta pela vida e a resistência à morte, é a natureza e manifestação da vida, é o movimento e o caminhar, em cada uma de nós, em cada pessoa que respira há a marca da ancestralidade.
Pensar a ancestralidade não está em compreender qual o sentido da vida, a partir de texto complexo e termos difíceis, está em viver em movimento com a vida, este eterno vir-à-ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral.
*Katiúscia Ribeiro, mestra e doutoranda em Filosofia Africana pela UFRJ. E-mail: [email protected]