Por Luis Felipe Miguel.
O ano de 2016 marcou o fim do experimento democrático iniciado no Brasil com a Constituição de 1988. A ordem que ali fora instituída era ancorada no desenho democrático liberal: o acesso ao poder dependia do voto, todos os cidadãos eram dotados de um conjunto de direitos, a lei valia igualmente para todos. Para muita gente à esquerda, esse arranjo não era suficiente; na permanência de uma desigualdade social profunda, a capacidade de fazer uso desse conjunto de prerrogativas e de garantias também seria muito desigual. Ainda assim, esse ordenamento jurídico apresentava uma base a partir da qual era possível sonhar com e lutar por uma democracia mais genuína.
Ao mesmo tempo, a Constituição alimentava este sonho e esta luta, na medida em que o discurso que a organizava era o discurso dos direitos. Se, para lembrar da expressão célebre de Hannah Arendt, o ato fundacional da cidadania é o estabelecimento do direito a ter direitos, então a Carta de 1988 representou este ato. Fruto de um processo longo e tenso, marcado por múltiplas pressões e barganhas, ela carrega ambiguidades e não se apresentava como integralmente satisfatória para nenhum dos lados em disputa. Mas traz também os traços do momento histórico em que foi escrita. É um documento da superação da ditadura, fruto de uma luta que foi tanto pelo restabelecimento das liberdades civis e políticas quanto por justiça social. Quando Ulysses Guimarães, no discurso que pronunciou ao promulgá-la, disse que a Constituição havia sido escrita com “ódio e nojo à ditadura”, não se referia certamente à totalidade de seus redatores – muitos haviam compactuado alegremente com o arbítrio. Referia-se ao momento de sua redação, em que o Brasil desejava superar seu legado autoritário. Por isso, a Constituição fala a linguagem dos direitos. Em muitos casos, a consignação do direito no texto constitucional não garantiu sua efetiva conquista na vida social. Mas estabelecia um terreno de lutas e legitimava as ações em seu favor.
Esse quadro – limitado, mas formalmente democrático, liberal e vazado na linguagem dos direitos – foi perdido em 2016, no golpe de maio e agosto, que destituiu uma presidente da República sem que houvesse amparo legal para tanto, pelo simples desejo nos derrotados nas urnas. A ordem de 1988 foi perdida não apenas porque Dilma Rousseff foi removida do cargo, mas porque todo o arcabouço institucional projetado para protegê-la agiu no sentido de destruí-la. O Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal e o Congresso Nacional, sem falar da pretensa imprensa livre: por motivos às vezes coincidentes, às vezes diversos, todos se uniram para revogar os procedimentos democráticos e ferir de morte a Constituição.
A essa altura do campeonato, as características do regime que emergiu do golpe já estão claras. Seu programa é o retrocesso acelerado nos direitos e o reforço das hierarquias sociais. Trata-se de um governo que não faz concessões à fachada de imparcialidade que os Estados costumam perseguir e, pelo contrário, assume sem rodeios que se coloca ao lado do capital contra o trabalho. A destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários, culminando na recente proposta de realinhamento das relações de trabalho no campo que praticamente reinstitui a escravidão, é a face principal desta ofensiva. O Estado também reduz suas políticas redistributivas ou compensatórias, como determinado pela emenda constitucional que congelou os gastos públicos ou ainda pela medida provisória que alterou o ensino médio, substituindo o princípio da educação universal pelo treinamento da força de trabalho para suas posições predeterminadas. Indígenas e quilombolas estão sob ataque, seguindo a lógica de que todas as riquezas do país devem estar potencialmente disponíveis para a acumulação privada. Também são ameaçados os direitos das mulheres e de gays, lésbicas e travestis, seja porque o regime julga que o conservadorismo moral pode lhe fornecer base popular, seja porque a retração das políticas sociais exige que a lacuna que ela gera seja suprida por cuidados privatizados dentro da família tradicional.
Ao lado da abolição de direitos vem – quase que naturalmente – a ampliação da repressão. Militantes políticos têm sido perseguidos e presos. O caso mais chocante, o de Rafael Braga, mostra que ocorre uma exacerbação de tendências autoritárias que já afloravam no ocaso dos governos petistas. Preso em 2013, com base em acusações cuja fragilidade é gritante, foi agora condenado a 11 anos de prisão. É um prisioneiro político, uma pessoa privada da liberdade por sua participação em movimento coletivo. Braga ainda é um ponto fora da curva; parece ter sido escolhido como exemplo, para o que certamente pesou sua condição de jovem preto e periférico, sem conexões com a elite política ou econômica. Mas muitos outros manifestantes têm sofrido detenções arbitrárias. A vigilância e a intimidação policial sobre o movimento popular é crescente, a repressão nas ruas aumenta, organizações como sindicatos ou o MST são invadidas. Ao mesmo tempo, cresce a perseguição no serviço público e a censura a órgãos da imprensa alternativa.
Por fim, o governo é marcado pelo temor da competição política. Nascido de um golpe, implantando políticas que jamais foram capazes de obter apoio majoritário no Brasil, patina em níveis de popularidade liliputianos. Apesar da enorme campanha publicitária e do apoio unânime da mídia empresarial, não há aprovação para a retirada de direitos. Possíveis candidatos às eleições presidenciais associados ao governo se veem diante de derrota quase certa.
Frente a isso, quais são alternativas de futuro? Um cenário é continuarmos deslizando para formas cada vez mais autoritárias de resolução dos conflitos, com desprezo cada vez mais indisfarçado pelo princípio da soberania popular, até chegarmos para uma ditadura aberta (ou algo próximo disso). Há discreta movimentação de setores das forças armadas para apoiar esta solução, que sem dúvida nenhuma contaria com expressivo suporte no judiciário e na mídia. As eleições de 2018 poderiam ser canceladas, seja pela imposição de medidas emergenciais por algum motivo conveniente, seja pela implantação de um parlamentarismo de ocasião. Tal como em 1964, esta solução provavelmente seria apresentada como provisória – para durar apenas o tempo necessário ao esmagamento dos movimentos populares e das organizações de esquerda.
Há pesados ônus associados à implantação da ditadura, tanto internos quanto externos. Por isso, o caminho preferido dos controladores do poder parece ser outro: a “normalização” do golpe. As eleições de 2018 colocariam no poder novamente um presidente com respaldo do voto popular. No entanto, todo o retrocesso produzido durante o período Temer estaria incorporado à ordem institucional. Fosse quem fosse, o novo presidente governaria sob uma Constituição fraturada, com direitos perdidos e políticas estatais engessadas. Em particular, governaria ciente de que as instituições da democracia representativa vigoram de forma tutelada, podendo ser suspensas quando seus resultados contrariam determinados interesses.
De certa maneira, esse é o funcionamento normal das democracias capitalistas. Os governos petistas foram muito ciosos deste fato, optando por uma linha de enfrentamento mínimo e evitando projetar qualquer ameaça aos dominantes. O lulismo foi um projeto desmobilizador, para não assustar a classe dominante; inclusivo, mas não igualitário, para não ameaçar os privilegiados; voltado a reduzir a pobreza sem tocar na apropriação privada do fundo público. Foi uma opção de menor atrito para fazer frente às premências da condição de vida da maioria do povo brasileiro, uma opção que pareceu exitosa, mas que a derrubada de Dilma mostrou que atingira seu extremo. Para nossas elites, até um pouquinho de igualdade já é demais.
O que o golpe mostrou foi isso: que quem quer permanecer no jogo deve aceitar limites ainda mais estreitos do que antes se imaginava. A elite política brasileira parece particularmente disponível para esse tipo de acomodação. Cabe lembrar que a ditadura de 1964 manteve um simulacro de instituições representativas, com partidos, eleições e parlamento. Os militares decidiam quem podia e quem não podia concorrer, as regras mudavam de acordo com suas conveniências, mandatos eram cassados, o poder do Congresso era muito limitado e, quando necessário, ele podia ser fechado. Mas, ainda assim, o longo período autoritário permitiu o surgimento de uma nova elite política civil. Uma elite formada sob o entendimento de que é normal que a competição política seja tutelada pelos donos do poder – uma característica que talvez ajude a explicar a rápida adaptação ao cenário posterior ao golpe de 2016, mesmo por muitos de seus opositores.
De acordo com algumas especulações, essa normalização seria comandada pelo próprio Lula. O pragmatismo a toda prova do líder do PT poderia julgar que valia a pena aceitar a nova realidade e tentar um programa ainda mais mínimo, adaptável a ela, de enfrentamento das consequências mais dramáticas do retrocesso. Não há dúvida de que parte da elite política tradicional aposta nesta saída, seguramente por compreender que uma eleição presidencial esvaziada de seu candidato mais forte (caso Lula seja proibido de competir) não é capaz de produzir a relegitimação necessária. Em algumas de suas declarações públicas recentes, Lula tem adotado um discurso mais duro e sinalizado que não está disposto a tal arranjo. Seja como for, ainda é um horizonte em aberto.
Nem o fechamento autoritário, nem a normalização do retrocesso interessam ao campo popular. O único caminho para ele não é fácil, e não permite atalhos: é uma reconstrução democrática em novas bases. Uma democracia que, para ser sustentável, tem que ser sustentada na mobilização social. Da mesma maneira que a resistência ao golpe e à perda de direitos depende do enfrentamento cotidiano, para além das instituições políticas, por meio das greves, ocupações, manifestações, “perturbações da ordem pública” e outros atos de desobediência civil, a produção de um regime democrático mais substantivo depende da existência permanente desse mesmo arsenal de formas de ação. Sem eles, a pressão dos poderosos sempre curvará a “democracia” em seu favor. Sem eles, permaneceremos prisioneiros do dilema que sempre assombrou a política brasileira: o regime democrático só sobrevive quando abre mão do enfrentamento das desigualdades.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
Fonte: Blog da Boitempo.