O fim do fascismo na Europa e o papel da Espanha

O general Francisco Franco visita o quartel-general da Frente Norte em Burgos, em 19 de agosto de 1936. Imagno / Gettyimages.ru

Por Carmen Parejo Rendón.

Nestes dias, comemoramos o 79º aniversário do Dia da Vitória, lembrando a derrota do nazi-fascismo no continente europeu após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, afirmar que a Europa se tornou um território livre do fascismo não é totalmente verdade.

Documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EUA fazem referência à “questão espanhola” e reproduzem o debate sobre esse assunto entre o presidente dos EUA Harry S. Truman, Winston Churchill do Reino Unido e o líder soviético Josef Stalin durante a Conferência de Potsdam em 1945.

Essa conversa, que foi traduzida e divulgada em diferentes meios de comunicação e obras impressas na Espanha, serve como uma exposição dos diferentes pontos de vista dessas três potências a esse respeito e ajuda a entender tudo o que aconteceu depois e também como essa situação surgiu. Não nos esqueçamos de que a França e o Reino Unido já haviam concordado com esse abominável pacto de não intervenção quando a República Espanhola e seu governo democrático solicitaram sua ajuda para combater o golpe de Estado perpetrado pelo grande capital e pelo fascismo espanhol com o apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista. Pode-se pensar que, em 1945, as potências ocidentais já compreendiam o perigo do fascismo, mas isso contrasta com a atitude que demonstraram em Potsdam.

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A insistência do líder soviético no perigo que o regime da Espanha representava para a Europa e, por sua vez, sua defesa do direito do povo espanhol de escolher seu próprio regime, contrasta com a relutância de seus interlocutores, principalmente o Reino Unido.

Churchill tentou desviar a questão em várias ocasiões. Por um lado, ele considerou que se tratava de um assunto interno da Espanha; por outro lado, acusou Stalin de ter um interesse pessoal pelo fato de o regime de Francisco Franco ter enviado a Divisão Azul para lutar ao lado dos nazistas na frente russa; e, por fim, apresentou como motivo real o medo de que qualquer ação contrária a esse regime pudesse prejudicar os interesses comerciais britânicos com o país ibérico.

Conhecendo os eventos que se seguiram, a resposta de Truman foi ainda mais surpreendente, pois ele sempre insistiu em evitar a interferência nos assuntos internos de outros países. Em 1947, dois anos depois, com a doutrina que leva seu nome, o presidente norte-americano iniciou uma fase de total interferência na América Latina, perpetrando vários golpes de Estado para garantir o domínio e a pilhagem dos EUA em todo o continente americano. A história da interferência de ambas as potências continua sendo escrita. Portanto, podemos ter certeza de que o temor dos EUA ou do Reino Unido nunca foi interferir em assuntos internos, mas sim usar essa interferência somente quando isso beneficia seus próprios interesses.

Após esse debate, uma menção direta à Espanha foi feita na declaração da Conferência de Potsdam em agosto de 1945: “Nossos três governos sentem que é seu dever salientar que não apoiarão um pedido de admissão [à futura Organização das Nações Unidas, que seria oficialmente fundada em outubro de 1945] apresentado pelo atual governo espanhol, que, tendo sido estabelecido com o apoio das potências do Eixo, não possui, em razão de suas origens, sua natureza, seu histórico e sua estreita associação com os Estados agressores, as qualificações necessárias para justificar sua adesão.”

Ao que o regime de Franco respondeu: “Em vista da alusão incomum à Espanha contida no comunicado da ‘Conferência dos Três’ em Potsdam, o Estado espanhol rejeita, como arbitrários e injustos, esses conceitos que o afetam e os considera uma consequência do falso clima criado pelas campanhas caluniosas dos vermelhos expatriados e seus apoiadores no exterior”.

Quem eram esses “vermelhos expatriados”?

Historiadores e relatórios oficiais da República Francesa estimam que meio milhão de pessoas se refugiaram na França após o golpe de Estado, a guerra e o triunfo do franquismo na Espanha. Esses refugiados foram internados em campos de concentração aos pés dos Pirineus ou nas praias do Mediterrâneo, perto da fronteira, em condições subumanas. Durante o regime de Vichy, eles foram obrigados a realizar trabalhos forçados para o esforço de guerra do Eixo.

No entanto, alguns desses exilados conseguiram escapar e se juntar à Resistência e, finalmente, ao lado dos Aliados durante a guerra mundial. Esse foi o caso de La Nueve ou a 9ª Companhia da 2ª Divisão Blindada da França Livre, composta quase inteiramente por cerca de 150 republicanos espanhóis, que foi decisiva na libertação de Paris. Embora não tenham sido os únicos, como a jornalista e escritora francesa Evelyn Mesquida apresentou em vários trabalhos. Em seu livro “E agora, voltem para suas casas”, a escritora francesa se referiu às palavras que o presidente Charles de Gaulle dedicou, após o fim da guerra mundial, a esses heróis esquecidos que, além disso, não tinham mais um lar para onde voltar e que estavam realmente esperando o fim do fascismo em toda a Europa para que pudessem voltar para casa.

Em 1953, Stalin morreu. Nesse mesmo ano, o governo de Dwight Eisenhower assinou os Pactos de Madri com o regime de Franco, que envolveriam a criação de quatro bases militares dos EUA em território espanhol, além de crédito bancário dos EUA para o regime, entre outras coisas. Em troca, o regime de Franco ganhou reconhecimento internacional e se tornou a “sentinela do Ocidente”, integrando-se à nova estratégia internacional dos EUA, para quem o fascismo não era mais um perigo, mas um instrumento a ser usado contra o comunismo e em sua luta geopolítica contra a União Soviética.

A Espanha de Franco, violando o que havia sido acordado em Potsdam, entrou para as Nações Unidas em dezembro de 1955, apesar da oposição liderada pelo México, que havia acolhido centenas de exilados espanhóis, e pela União Soviética.

Os nazistas e fascistas protegidos pela Espanha usaram a rota e o refúgio proporcionados pelo regime de Franco para chegar aos países latino-americanos. A presença desses grupos coordenados foi fundamental para os modelos ditatoriais promovidos pela Operação Condor no Cone Sul a partir da década de 1970. E, mais recentemente, com casos como o de Branko Marinkovic, ligado por laços familiares e ideológicos à organização terrorista croata ustasha, aliada do nazismo; e o presidente do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, que chegou a ocupar um cargo de ministro de Jeanine Añez após o golpe de Estado no país em 2019.

O franquismo também foi um refúgio para os militantes da Operação Gladio, que atuou por meio de ataques terroristas no continente europeu durante a Guerra Fria, principalmente na Itália, onde o movimento comunista e o Partido Comunista tinham poder e força. De fato, como Stalin apontou em Potsdam, o regime de Franco seria um problema de dimensão internacional.

O México e a URSS foram as duas únicas nações que nunca reconheceram o regime de Franco, e essas duas nações foram as únicas que, no início da história, podem ser consideradas coerentes com a premissa de que o fascismo era e é de fato um problema a ser erradicado.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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