O cinema resiste. Por Ana Laura Baldo.

Das Leis que fomentam esse meio, até projetos que transformam a cultura e o cinema em lugares democráticos, de sorrisos e histórias

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Imagem via produtora audiovisual, Angela Reck.

Por Ana Laura Baldo, para Desacato.info.

Tudo começa com uma história, seja de um local ou pessoa, mas tudo começa com uma boa história. Primeiro se estuda, viaja pelos livros, cidades, comunidades, países, pensamentos. Depois surge a ideia e então se inicia um projeto. Os documentários, as fotografias são uma das formas de se externalizar essa aventuras, vividas por pessoas que acreditam no cinema como forma de revolução.

Os filmes não ficcionais são produzidos há anos e representam boa parte das produções cinematográficas independentes no Brasil. Mas essas produções, na maioria das vezes, só conseguem ser viabilizadas por editais e leis que fomentam a cultura, oferecendo suporte financeiro para que produtores independentes possam realizar seus projetos.

Nesta conjuntura, foi criada pela Medida Provisória 2.228-1/01, a Ancine (Agência Nacional do Cinema), que tem como missão “desenvolver e regular o setor audiovisual em benefício da sociedade brasileira”. A agência é responsável também pelo fomento, regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. Esse apoio, indireto a projetos audiovisuais, se dá por meio de mecanismos de incentivo fiscal dispostos nas Leis 8.313/91 (antiga Lei Rouanet), na Lei 8.685/93  (Lei do Audiovisual) e na Medida Provisória 2.228-1/01.

Porém, diversas pautas relacionadas a cultura no Brasil, como o fomento ao setor audiovisual e a produções culturais, estão há tempos sofrendo ameaças do governo. A primeira e talvez mais notória, foi a mudança do Ministério da Cultura para Secretaria Especial de Cultura. É importante ressaltar que essa troca de pasta foi realizada no atual governo do presidente Jair Bolsonaro, e que desde então, está dificultando a vida de produtores culturais.

Uma das leis mais importantes para a cultura, a Lei Rouanet, teve seu nome e estrutura modificados na gestão de Bolsonaro. Criada em 1991, hoje denominada Lei de Incentivo à Cultura, ela tem como objetivo incentivar a produção cultural, como espetáculos, exposições, livros, produções cinematográficas e várias outras formas de expressões culturais.

Entre as modificações realizadas na Lei, a questão do investimento em produções culturais ficou bem evidente. Antes da reestruturação, o valor máximo de captação dos recursos, por projeto inscrito, era de R$ 60 milhões, hoje esse valor é de apenas R$ 1 milhão. Já os valores máximos que hoje uma empresa do setor cultural pode obter é de R$ 10 milhões, antigamente esse valor chegava a R$ 60 milhões. Conforme afirma a Secretaria Especial de Cultura, a mudança na estrutura da Lei, deixou a mesma mais inclusiva, democrática e cidadã.

Nesta realidade, entender como está o atual cenário do cinema no Brasil, pela visão de quem está dia a dia nesta jornada, é pertinente. Conforme explica Ilka Goldschmidt, cineasta, jornalista e sócia-proprietária da Margot Filmes, muito se pode perder em relação às conquistas do setor audiovisual no país. “Perdemos muito do que há duras penas foi conquistado e corremos o risco de perder mais, pelo menos na esfera nacional. A começar pela destituição do Ministério da Cultura nesse governo federal, e toda a desastrosa gestão de agora, Secretaria Especial de Cultura e, especificamente da Ancine, que resulta em muitas incertezas em relação a aplicação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal fomento ao cinema brasileiro”, afirma.

A censura

As preocupações em relação ao cinema nacional são inúmeras. Em transmissão ao vivo no dia 15 de agosto de 2019, o presidente da República, Jair Bolsonaro, ao se referir aos filmes que estavam prontos para receber recurso da Ancine, naquele ano, declarou as seguintes palavras: “Um filme aqui se chama Transversais, veja o tema: sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará”. Em expressões de deboche e risos soltos, o presidente finalizou, “esse filme aqui, conseguimos abortar”. Bolsonaro demonstrou de forma preconceituosa, ao se referir a outro um filme. “Esses filmes não tem audiência”. Na visão dele, produções cinematográficas com essas temáticas, não poderiam ser financiadas com o dinheiro público, “é um dinheiro jogado fora”, afirmou.

Ainda ao vivo, ao falar do filme “Afronte”, que trata da temática da realidade de negros homossexuais no Distrito Federal, Bolsonaro afirmou, “A vida particular de quem quer que seja, ninguém tem nada a ver com isso, mas fazer um filme mostrando a realidade vivida por negros homossexuais no DF, não dá para entender. Mais um filme que foi para o saco”, terminou. Essa realidade, em que o cinema nacional vive, nos remete aos ares da Ditadura Militar (1964-1985), onde produções culturais foram censuradas pelo governo dos militares, em atos institucionais (AI-5).

Cinema em Santa Catarina

O Estado catarinense é responsável por produzir milhares de filmes independentes, mas essas produções, como em qualquer lugar, podem não ser acessadas por muitas pessoas, que às vezes ficam presas em casa, por conta da distância delas com o cinema, entre outros fatores. Pensando nesta realidade, a Margot Filme, da cineasta Ilka Goldschmidt, idealizou o projeto: Cinema na Linha, que consiste em realizar sessões de cinema em comunidades rurais. “Nós, da Margot Filmes, sempre nos comprometemos a exibir os filmes que produzimos, porque sabemos que o ponto mais frágil da produção cinematográfica brasileira é justamente a circulação. Se não promovermos espaços e contatos para as exibições dos filmes, eles acabam não sendo vistos e discutidos”, salienta Ilka.

Margot Filmes, da cineasta Ilka Goldschmidt, idealizou o projeto: Cinema na Linha. Imagem: Reprodução Margot Filme.

O projeto conta com três grandes etapas que atualmente está em sua primeira fase, realizar sessões nas comunidades de Chapecó. Segundo Ilka, para circulação do projeto na capital do oeste catarinense, o mesmo foi contemplado com o prêmio do edital das linguagens do município. Os filmes exibidos em cada sessão, são catarinenses, contando com produções da Margot Filmes e de outras produtoras de diferentes cidades, como os filmes da diretora Kátia Klock e da Gabi Bresola.

“Em Chapecó serão oito linhas. O projeto começou a ser executado em março, na Linha Cachoeira, mas precisou ser temporariamente suspenso por conta da pandemia. A segunda etapa do projeto é circular com filmes catarinenses nas comunidades da região oeste. Para isso o projeto deve contar com fomentos a partir da Lei de Incentivo à Cultura (antiga Rouanet). O projeto está aprovado, mas a pré-produção e captação de recursos estão suspensas por conta da pandemia”. Ilka finaliza explicando que a terceira etapa será circular com o Cinema na Linha, por todo o estado de Santa Catarina e depois disso, em todo Sul, no Brasil e na América Latina.

“Afinal, filmes são produzidos para serem vistos, e quando há um cenário que privilegia o filme comercial, com investimentos privados visando a distribuição lucrativa, é preciso investir em ações para fortalecer os espaços alternativos” – Ilka Goldschimit

Além das Lentes

Longe das leis e editais, o projeto Além das Lentes, idealizado pela produtora audiovisual, Angela Reck, percorre o Brasil, levando conhecimento e produzindo cultura. Pensado inicialmente em Chapecó, melhor desenvolvido em Seara e Florianópolis, o projeto cresceu conhecendo alguns dos estados brasileiros. “Acredito na cultura como educação, não como pilar educacional, mas como ferramenta de transformação e utilizo o meu projeto cultural para mostrar isso. Através do Além das Lentes ensino fotografia e cinema em favelas, comunidades indígenas e centros socioeducativos de forma itinerante. Estava viajando por alguns estados brasileiros com duas mochilas nas costas para realizar as atividades”, explica a produtora.

Imagem da produtora audiovisual, Angela Reck.
Imagem via produtora audiovisual, Angela Reck.

Angela já passou por oito estados brasileiros. No ano de 2019 atingiu diretamente 818 pessoas com oficinas e tudo isso quase sem recursos financeiros. “Para ter um projeto no Brasil e/ou outros lugares do mundo é muito difícil, porque de tantas vezes que as pessoas falam que você é louca, muitas delas você acaba acreditando e duvidando da sua capacidade de provar o contrário. Quando saímos da nossa zona de conforto e entendemos o outro, fazemos tudo que acreditamos com mais verdade – esse é um caminho sem volta – você não vai aceitar a mediocridade de ter uma rotina em que só pensa no eu e não no nós”, salienta.

Angela explica que uma das perguntas mais frequentes que fazem a ela é sobre qual estado que ela mais gostou de ficar, sendo que a resposta, segundo ela, é difícil de se ter. “O norte do Brasil em si, tenho um carinho especial. Lá fiquei em comunidades indígenas que vivem sem energia elétrica, tomei banho no rio, andei de barco por horas, adentrei a floresta, fiquei em cidades diferentes e fui tão bem recebida que os perrengues passam para aventuras em um piscar de olhos. A Ângela antes e depois das viagens são pessoas diferentes, as histórias são as minhas conquistas e me fizeram quem eu sou hoje, agradeço muito por isso”.

Com as viagens, a produtora audiovisual, realizou uma série documental, intitulada, “Além das Lentes”, onde abordou histórias que conheceu e criou, pois como ela já disse, o “eu” de Angela, mudou com as suas novas experiências. O episódio I, documentado na Amazônia, demonstra toda a sensibilidade da produtora com o seu trabalho. É muito mais que um filme, é um “processo”, de autodescobertas que Angela faz consigo mesma.

Porém, ao abordar questões referente às políticas públicas e editais de fomento à cultura, Angela demonstra sua preocupação com essa temática e afirma que existem poucas políticas de incentivo à cultura e também, nem todas as classes conseguem ter acesso a elas. “É difícil falar sobre isso porque toda produção que fiz veio de muitas noites acordadas, fazendo toda a produção sozinha. Porque eu sou criativa e teimosa demais para conseguir, muitas vezes, explicar o que eu quero e fazer com que a loucura da minha cabeça seja mais plausível, de quando está na ideia. Parece que consigo explicar somente com o resultado final. Se eu usasse essa teimosia para estudar editais, por exemplo, as coisas poderiam ser diferentes, mas ao mesmo tempo penso que existem muitas pessoas que já estudam para isso e só basta eu encontrar essas pessoas que acreditam no mesmo do que eu”, enfatiza Angela.

Conforme a produtora, em 2018 foram produzidos 185 filmes nacionais vinculados diretamente pela Ancine. Na visão dela, se cada filme fosse exibido nas salas de cinema, seria possível ter filmes nacionais a cada dois dias. “Considerando o que foi produzido no ano (2018), nós não tivemos acesso a 90% dessas obras. Temos uma lei em vigor, que a exibição de um filme nacional é obrigatória no mínimo três títulos diferentes, e ao menos 28 dias cada. Questiono como é feita a fiscalização dessas salas sendo que os que veiculam normalmente são filmes “padrões Globo”. Além das preocupações referente a realização das produções, produtores precisam pensar na democratização ao acesso”, finaliza.

Conexões de outrora

Os encontros de dois grandes projetos, em um cenário audiovisual que resiste dia após dia, mostra o quão importante a cultura, o cinema é para a vida das pessoas. Ilka e Angela são produtoras audiovisuais que rompem barreiras para produzir seus filmes. Mulheres à frente do cinema, mulheres que produzem, mulheres que incentivam outras mulheres a colocarem em prática seus trabalhos, sonhos.

Conforme Ilka, durante muito tempo as mulheres eram vistas e colocadas apenas para produção, direção de arte, sendo difícil a participação delas na direção, montagem e fotografia. Porém com o tempo e lutas, essas realidades foram se modificando, e as mulheres ocupando os seus espaços. “Para essa realidade, políticas públicas afirmativas foram e são necessárias para mudar o cenário. Mas ainda há muito caminho a percorrer. Em Santa Catarina temos a Elascine, um coletivo de mulheres que surge para unir, dar visibilidade, organizar e trocar. Desta iniciativa, surge a primeira diretoria da Cinemateca Catarinense formada apenas por mulheres, e da qual tenho muito orgulho de fazer parte. Somos fruto da Elascine, somos em oito mulheres e estamos reerguendo a Cinemateca Catarinense”, ressalta.

A cineasta lembra que a nova logomarca, do Elascine, foi criada por mulheres que trabalham no escritório de design da Unochapecó. “Penso que assim vamos mudar o cenário – mulheres chamando mulheres para trabalhar, para ocupar espaços de produção, de decisão, de política, de protagonismo”, finaliza.

As experiências que cada personagem carrega dentro de si são enormes. Ilka, uma das idealizadoras do projeto Cinema na Linha, é mais experiente, com um caminho mais vasto pelo cinema. Referência para Angela, criadora do projeto “Além das Lentes”, e ex-aluna de Ilka. O cinema é feito assim, de experiências, de histórias, de cultura. Ele une pessoas que acreditam na arte como forma de revolução. Fica mais bonito quando se é democratizado entre as pessoas, quando se tem mulheres à frente desses trabalhos.

Ilka e Angela se encontraram há muito tempo, mas sempre estiveram unidas na defesa de um cinema livre, democrático e social. Valorizar produções nacionais, faz com que mais projetos como o Cinema na Linha e o Além das Lentes, possam realizar seus trabalhos, levando conhecimento e histórias por todos os lugares.

Viva o Cinema Nacional!
            Viva a Cultura!

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Ana Laura Baldo é jornalista e mora em Chapecó/SC.

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