Por Glenn Greenwald e Erick Dau.
Na tarde do dia 23 de maio, o Buzzfeed Brasil publicou um artigo descrevendo uma ligação privada entre o colunista da Veja Reinaldo Azevedo e a irmã do Senador afastado Aécio Neves, Andrea Neves, que foi presa na semana passada pela Operação Lava Jato. A conversa, que foi tornada pública pela Procuradoria Geral da República, contem alguns trechos jornalisticamente interessantes – incluindo o tom extremamente amigável de Reinaldo Azevedo e suas críticas a uma reportagem da revista Veja, o que agora levou a seu pedido de demissão.
Mas não há qualquer relevância para a prova de qualquer crime. De fato, o próprio Buzzfeed escreveu:
A PF não considerou indícios de crimes na conversa realizada entre o jornalista e sua fonte, Andrea Neves. Mesmo assim, as gravações foram anexadas pela Procuradoria-Geral da República ao conjunto de áudios anexados ao inquérito que provocou o afastamento de Aécio e a prisão da irmã.
Este fato levanta uma questão óbvia e extremamente séria: se a transcrição desta conversa entre o jornalista e sua fonte/amiga não tem relação com qualquer crime, que justificativa pode haver para que ela tenha sido tornada pública? O monitoramento e a gravação de conversas privadas constituem um poder enorme que requer cuidados redobrados para que não invadam a privacidade das pessoas.
A revelação destas ligações deve ser feita apenas quando substancial e concretamente justificada. Que justificativa há para que os procuradores tenham violado a privacidade de Azevedo desta maneira? É difícil encontrar alguma.
Mas há uma ameaça ainda maior que a invasão de privacidade: a ameaça à liberdade de imprensa. Reinaldo Azevedo é um colunista extremamente controverso. Com enorme frequência, para não dizer sempre, com pontos de vista repudiáveis. É difícil superestimar o extremismo de suas posições conservadoras.
Não é preciso dizer que nada disso interessa neste momento. O desacordo com as opiniões políticas de um escritor não justifica a publicação de seus telefonemas privados por investigadores do governo. O que deve ser defendido aqui são os direitos de uma pessoa, independentemente dos pontos de vista que se possa ter sobre ela.
Festejar ou mesmo ignorar este ataque à privacidade e liberdade de imprensa de Reinaldo Azevedo devido ao desacordo com sua visão de mundo, é tornar impossível a oposição a ataques similares feitos a jornalistas com os quais se concorda.
O que torna este caso particularmente perturbador é que Reinaldo Azevedo se tornou uma das vozes mais críticas à Operação Lava Jato – ao menos desde que a investigação se estendeu para além dos políticos do PT e seus aliados, que têm o profundo desprezo de Azevedo, e começou a ameaçar líderes do PSDB (como Aécio Neves) e outras figuras de direita admiradas pelo jornalista. Ele escreveu diversos textos críticos ao que chamava de excessos e abusos de Moro, Janot e outros investigadores da Lava Jato.
Ao tentar compreender porque suas conversas poderiam ser reveladas ao público, é difícil evitar a questão de que o motivo real é uma represália por conta de suas críticas à Lava Jato. É preciso investigar o caso mais profundamente, mas o episódio levanta a dúvida sobre se os investigadores da Lava Jato queriam punir Azevedo por criticar sua conduta, ou fazer dele um exemplo para alertar outros jornalistas de que eles também podem ser prejudicados se os questionarem ou desafiarem.
É difícil imaginar uma ameaça maior à liberdade de imprensa do que autoridades do Estado interceptando e publicando as ligações telefônicas de um jornalista para puni-lo por seus pontos de vista. Se isso é realmente o que aconteceu, os responsáveis precisam ser punidos – dura e rapidamente. Hoje, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo disse que “considera que a apuração de um crime não pode servir de pretexto para a violação da lei, nem para o atropelo de direitos fundamentais como a proteção ao sigilo da fonte, garantido pela Constituição Federal.”
Neste sentido, este caso remonta à controversa divulgação, em 2016, de várias gravações de ligações telefônicas de Lula pelo juiz Sérgio Moro. Ainda que se possa considerar que a ligação entre Dilma e Lula sobre a incorporação deste ao governo fosse relevante para um possível crime – o que nós não consideramos – isso não justificaria a divulgação de inúmeras outras ligações claramente não relacionadas a qualquer conduta criminosa, mas que clara e previsivelmente causaram danos à reputação de Lula (incluindo várias ligações em que ele falava depreciativamente de mulheres).
No momento em que isto aconteceu, afirmamos que parecia ser um grave abuso de autoridade do Juiz Sérgio Moro, porque a revelação das ligações de Lula não poderia ser justificada por qualquer investigação criminal. De fato, foi esta decisão abusiva de Moro, e a patética reencenação melodramática do conteúdo das ligações pelo jornal Nacional, que nos levou a concluir que pela primeira vez a operação e a cobertura da mídia eram suspeitas, e precisavam ser criticadas e responsabilizadas.
É muito difícil ter qualquer empatia por Reinaldo Azevedo, especialmente sabendo que ele se aproveitou das revelações de Moro, mesmo reconhecendo sua falta de justificativa legal, para capitalizar politicamente seu discurso contra a então presidente.
[O trecho em que Dilma fala do termo de posse] “É irrregular, não poderá ser usado em juizo, mas o juiz fez uma aposta polêmica, que é o seguinte: é de interesse público, está aqui, vou divulgar. Eu acho polêmico. Acho que há coisas graves o bastante no período legal de escuta, ele não precisava ter operado com esse tempo de fora, mas ele decidiu lieberar tudo. […] Que fique claro desde já: em juízo, essas não poderão ser usadas. Agora, politicamente, acabou [risos]. A Dilma pode ficar insistindo ‘ah é ilegal, é ilegal, é ilegal’, mas que resposta ela tem pra isso? Nenhuma. É claro que isso está fomentando a rua, a Paulista está cupada, Brasília está ocupada. Aliás, meus queridos, occupy Brasília.”
Vale a pena enfatizar aqui o alarmante fato de que, em muitos aspectos, as liberdades de imprensa são extremamente fracas se comparadas a outras democracias. O país é o 103 no raking anual de liberdade de imprensadivulgado pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Nós denunciamosordens judiciais que solicitavam a organizações de mídia – inclusive as grandes – a revelação de suas fontes.
Além disso, em março, o próprio Moro criou uma enorme controvérsia quando ordenou a apreensão e condução coercitiva do jornalista Eduardo Guimarães, autor e editor do Blog da Cidadania, uma decisão criticada inclusive por muitos defensores da Lava Jato. (Infelizmente, muitos jornalistas da grande mídia justificaram o ataque à liberdade de imprensa de Guimarães argumentando que ele seria um ativista, e não um “jornalista” – algo que muitos poderiam dizer sobre Azevedo.).
A revelação das gravações de Azevedo levanta esta mesma questão. O poder de monitorar e gravar pessoas é muito intenso. Só é – ou só deveria ser – permitido se sujeito a pesadas regras e limites sobre como deve ser usado. Estes limites parecem ter sido ignorados neste caso. Uma vez mais, temos outra situação onde é a conduta dos investigadores da Lava Jato que necessitam de uma séria investigação.
Atualização: 23 de maio, 21h55.
Após a publicação da reportagem pelo Buzzfeed, a PGR divulgou nota em que afirma que a reportagem possui um erro, e que suas peticões contêm apenas informações constantes de relatórios da Polícia Federal. A nota afirma ainda que neste caso a PF não indicou a ligação entre Reinaldo Azevedo e Andrea Neves como material relevante, e que portanto ela não é utilizada pela Procuradoria.
Segundo reportagem da Folha, a transcrição da ligação foi tornada pública, junto com outras 2.200 ligações, por despacho do Ministro Edson Fachin, quando suspendeu o sigilo sobre o caso da JBS.
Caso se confirmem as informações da nota da PGR, a responsabilidade pelo ocorrido não recai sobre a Procuradoria Geral da República, como afirmou o Buzzfeed, mas sim sobre o STF, que revelou informações cujo sigilo é protegido pelo dispositivo constitucional que garante aos jornalistas o sigilo de suas fontes.
Mudam portanto os agentes da perigosa ameaça descrita neste artigo, mas não se modificam os argumentos. Ainda se trata de uma instituição oficial atentando contra o direito fundamental de um jornalista de ter suas fontes preservadas e de um cidadão de ter sua privacidade respeitada.