Escrevo essas linhas passadas 48 horas da noite de domingo 08 de janeiro, quando a tarde inicia com um ataque do gado bolsonarista da extrema direita mobilizada contra as sedes dos Três Poderes – o Supremo Tribunal Federal (STF), Congresso Nacional e o Palácio do Planalto.
Estamos diante de uma manobra oriunda da contaminação fascista em instituições oficiais de Estado, de governo subnacional (como o do Distrito Federal) e também do Alto Comando das Forças Armadas, com atenção oficial para a Força Terrestre. No caso do DF, o STF através do ministro Alexandre de Moraes já decretou a prisão de Anderson Torres (secretário de segurança do DF e exonerado em plena tarde de domingo), do comandante-geral da PMDF coronel Fábio Augusto assim como o afastamento imediato – por 90 dias – do governador reeleito, Ibaneis Rocha.
Acredito que o Poder Judiciário, uma vez diminuída a influência da Lava Jato e lavajateiros, pode tomar a dianteira das investigações e punições dos flagrantes de financiamento e mobilização do chamado “gado bolsonarista”. Talvez uma parte das frações de classe dominante apoiadoras incondicionais de Bolsonaro, seus asseclas e ex-governo de sociopatas venha realmente a ser punida. O problema de fundo é o Partido Militar.
A milicada e seu porta-voz no governo eleito
José Múcio Monteiro é muito mais o porta-voz, o títere ou o boneco de ventríloquo do Alto Comando das Forças Armadas (em especial o Exército Brasileiro, EB) do que o ministro da Defesa de um governo eleito. Esse triste papel não é raro na América Latina. Nas negociações para o final da ditadura iniciada sob a liderança do general Onganía na Argentina (1966), o exilado general Juan Domingo Perón escalou como seu delegado no país o político Jorge Paladino. Ocorre que este “homem de confiança” do “Velho” era muito mais um interlocutor do general Lanusse, o líder do processo de “abertura” controlada. Qualquer coincidência com o papel de Múcio ou da Abertura “lenta, gradual e restrita” comandada por Geisel, Golbery e companhia, não formam nenhuma coincidência.
Perón destitui Paladino e consegue voltar ao poder através de seu novo delegado, Héctor Cámpora, um “autêntico” que tinha excelentes relações com a Juventude Peronista e suas forças insurgentes. A perda de controle sobre o aparato de Estado quando existe uma imensa leva de fascistas e fascistoides dentro deste é algo sempre factível. Figuras de extrema direita como o tenente-coronel Jorge Manuel Osinde, o bruxo e cabo policial José López Rega e o comissário Alberto Villar (justiçado por um comando Montonero) comandaram as alas da Triple A, a cara visível das Três Forças. Mais de 2000 militantes socialistas de todos os matizes e níveis de envolvimento foram assassinados pela estrutura comandada por esses fascinoras. Por detrás, o aparelho de Estado e o aval das Forças Armadas, em conjunto. Quando os milicos genocidas retomaram o Poder Executivo em março de 1976, a escalada repressiva alcançou a mais de 30.000 mortos e desaparecidos em um país que na época tinha 22 milhões de habitantes.
O exemplo acima pode variar de intensidade – e é certo, são outros tempos e distintas modalidades de ataques da extrema direita – mas é muito semelhante em “essência”. Quase tudo já foi dito e analisado quanto ao papel de financiadores do ataque de Brasília (em especial de empresários do agro, vindos do Centro-Oeste e Norte, e adeptos da economia política do crime) e queria citar aqui a contribuição analítica de dois especialistas no comportamento das Forças Armadas em plena operação psicossocial (as clássicas manobras de Golbery do Couto e Silva) através da modalidade contemporânea de “guerra híbrida”. Vejamos.
Neste fio, o coronel da reserva do EB Marcelo Pimentel demonstra de forma cabal o conjunto de fatos e evidências de comprometimento da hierarquia superior da força terrestre na “guarimba da gadaiada” de domingo. Guarimba é a modalidade de rebelião da direita venezuelana, em seus atos de sabotagens iniciados ainda nos governos de Chávez e ampliadas nas criticáveis administrações de Nicolás Maduro e Vladimir Padrino López. Vale observar que se não fosse o comando do general Vladimir Padrino e na era de Hugo Rafael Chávez Frías, a constante e correta colaboração do G2 (inteligência cubana), o país de Bolívar já teria sido tomado por mercenários paramilitares contratados entre narcotraficantes e apoiadores do ex-presidente colombiano Uribe Vélez com suporte dos EUA.
Outro especialista que sugiro é este fio, do antropólogo Piero Leirner. Sempre considerei o conceito de “guerra híbrida” quase como tautológico e em muitos momentos fui crítico das entrevistas deste colega professor universitário. Mas, reforço, sua contribuição é inestimável e neste caso aqui citado, irrefutável.
O jogo está sendo jogado
É possível que até a difusão deste artigo José Múcio já tenha caído e os bens de toda a família Bolsonaro venham a ser completamente bloqueados. O debate político também está em aberto, na análise se Lula perdeu ou ganhou em legitimidade ou fortalecimento das instituições republicanas. O certo é que o Cartel dos Parasitas (o pequeno número de pessoas jurídicas que manipulam e controlam o custo de financiamento do Estado brasileiro e incidem sobre o câmbio) pode economizar seus recursos de pressão e chantagem considerando a prioridade da milicada em desestabilizar a base “amplíssima” do terceiro governo de Luiz Inácio. Nos dedicaremos a este tema em textos futuros.
Outra certeza é o objetivo de anistia nos crimes sanitários e das ameaças golpistas do generalato, e para assegurar esta meta, outros episódios como o da “guarimba da gadaiada” ou um Riocentro no século XXI podem ocorrer. Há uma possibilidade concreta de “vôo cego”. As capacidades do GSI cuja cadeia de comando está contaminada serão um desafio permanente do novo governo. Administrar um país sem uma inteligência confiável e cujo cliente único e final seja a Presidência é simplesmente impossível. É bom que a social-democracia saiba e lembre disso a todo o momento.
Por parte dos movimentos sociais, da esquerda mais à esquerda e de milhões de apoiadores e participantes da luta popular a decisão de responder ao episódio do Capitólio em atos públicos e alerta total antifascista é acertada. As palavras de ordem de “esmagar o fascismo nas ruas” e “sem anistia” também. Estamos diante de um problema continental, onde em toda América Latina (com o trumpismo tropical ou sub-tropical) e de forma ampliada, no conjunyo dos países ocidentalizados, o problema do neofascismo ou do protofascismo forma uma ameaça contínua.
Se vale o aprendizado entre a arte e o mundo da vida, termino sugerindo assistirmos (todas e todos) a dois filmes. Um é o clássico de Costa Gravas, Z (França/Argélia, 1969) onde se explica de forma detalhada o avanço fascista na sociedade helênica que antecede a ditadura dos coroneis na Grécia da OTAN. O outro aponta a forma contemporânea de mobilização da extrema direita. Je suis Karl (Christian Schwochow, Alemanha, 2021) é uma ficção onde o nazismo transeuropeu se torna um fascismo cultural, manipulando uma juventude caucasiana a partir das identidades supremacistas.
A filmografia poderia ser muito maior, tal como exemplos de resistência, luta e vitória do antifascismo como primeira linha de defesa dos interesses populares. Ressalto que o mais importante neste momento é não recuar um milímetro, não gerar ilusões de “convivência pacífica” com a extrema direita e o golpismo e menos ainda desmobilizar ou baixar a guarda. O presidente chileno Salvador Allende recebeu recomendação da inteligência cubana para mobilizar 2000 profissionais de segurança leais a tempo completo. Recrutou apenas 45 para sua “guarda técnica” e terminou derrubado por um de seus ministros na última formação de gabinete. Somando as experiências das ditaduras do Cone Sul e dos golpes na era do Lawfare e Guerras Híbridas – como o golpe de 2016 – nos permite um amadurecimento para ampliar os níveis de vigilância e atenção necessárias para jamais tomar outra virada de mesa contra a soberania popular.
*Bruno Lima Rocha é cientista político, jornalista e professor de relações internacionais
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