O Brasil imita a Europa e restringe direito humano ao refúgio

Entidades e pessoas ouvidas pelo MigraMundo veem violação das leis migratórias brasileiras com anúncio do Ministério da Justiça que visa "evitar que o instituto do refúgio seja deturpado pela migração irregular"

Afegãos acampados no Aeroporto de Guarulhos (SP). Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil – 20.jun.2023

Quem entrar com pedido de refúgio no Brasil terá que provar que está sendo perseguido no país de origem para ter autorização para ingressar em território brasileiro. Essa é a nova determinação do Ministério da Justiça, anunciada nesta quarta-feira (21) e que entra em vigor na próxima segunda-feira, 26 de agosto.

Segundo o governo federal, a medida é uma resposta a denúncias de que o país tem sido usado como rota de organizações criminosas para tráfico de pessoas.

A medida gerou reações imediatas tanto de organismos ligados à temática migratória quanto de especialistas. Eles enfatizaram que o problema real está na falta de uma política pública que defina claramente as atribuições de cada ator, público ou privado, na gestão das migrações no Brasil. E que a postura do governo federal, além de ir contra a legislação vigente, cai na tentação de se buscar o “caminho fácil” de justificar o combate a um crime com a restrição a um direito garantido por lei e abdicar da necessidade de se formular tal política pública.

O anúncio de restrição ocorre em meio a uma série de debates envolvendo medidas a serem tomadas para lidar com a questão dos migrantes retidos na área restrita do aeroporto de Guarulhos. Na manhã de quarta-feira (19), conforme dados fornecidos pela Polícia Federal ao MigraMundo, 481 pessoas se encontravam na área de inadmitidos do aeroporto de Guarulhos. Esse número chega a ultrapassar os 500 retidos em alguns momentos, segundo organismos que acompanham o assunto.

Essa permanência se dá sob condições précarias de higiene e alimentação, conforme verificado por delegações de parlamentares e da Defensoria Pública da União (DPU) que fiscalizam a situação no aeroporto. Na última terça-feira (20) veio a público a confirmação da morte de um migrante natural de Gana que adoeceu durante o período em que ficou retido na ára restrita do aeroporto de Guarulhos. O caso revoltou a comunidade migrante no Brasil, que também exigiu providências dos atores envolvidos, sejam eles públicos ou privados.

De acordo com o Ministério da Justiça, os passageiros que estão em trânsito, na zona restrita, e que, porventura, vierem a pedir refúgio, terão suas solicitações processadas até segunda-feira por meio de uma força-tarefa em parceria com a Polícia Federal.

Entenda o caso

O anúncio da restrição feito pelo Ministério da Justiça é baseado em um relatório da Polícia Federal que apontou que a maioria dos solicitantes de refúgio no Brasil não tem motivações que justifiquem a admissão no país sob tal condição.

Ainda de acordo com o relatório, a maioria dos que fazem o pedido no aeroporto de Guarulhos visa obter a permissão para entrar no Brasil e prosseguir viagem por terra, passando por outros países do continente americano e tendo os Estados Unidos como destino principal.

Entre janeiro de 2023 e junho deste ano, segundo a Polícia Federal, mais de 8 mil migrantes pediram refúgio no Aeroporto Internacional de Guarulhos. No entanto, somente 117 desses requerimentos continuam ativos no Sistema de Registro Nacional Migratório, ou seja, 1,41%. A maioria já deixou o país, ou permanece de maneira irregular no território brasileiro.

“O que vamos fazer: identificando viajantes que não possuem visto de entrada no território brasileiro e estão em transito pra outros países, mas não há risco real de perseguição, essas pessoas serão inadmitidas para entrada no território brasileiro”, disse o secretário nacional de Justiça, Jean Uema, em entrevista à TV Globo, que noticiou a medida em primeira mão.

Ainda de acordo com o Ministério da Justiça, a medida “tem como objetivo proteger o instituto do refúgio, assegurando seu acesso a pessoas que efetivamente demonstrem interesse em solicitar a proteção internacional por parte do Estado Brasileiro, além de quebrar a atuação de organizações criminosas no contrabando de imigrantes e tráfico de pessoas”.

Desde meados de 2023 é possível verificar junto ao governo federal uma tendência de se enfatizar o Brasil como um país de trânsito de pessoas. Nos estudos sobre migração no país, o território nacional é abordado tanto como um local de origem como de destino de migrantes, e não apenas de trânsito.

Um sinal anterior dessa postura pode ser verificado na portaria que mudou as regras para concessão de vistos humanitários para afegãos. Um dos motivos alegados pelo governo para essa alteração foi justamente o de evitar que o Brasil “se tornasse uma porta de entrada” para uma jornada migratória continente americano adentro com os Estados Unidos como destino final.

Reações

De acordo com Uema e com a pasta, a inadmissão é um mecanismo previsto na legislação migratória brasileira e que não fere garantias internacionais do ponto de vista do refúgio com as quais o país se comprometeu.

“Nesses casos, não há que se falar em violação ao parágrafo único do Art. 45 da Lei de Migração, que pondera que “ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade, permanência a grupo social ou opinião política”, posto que está configurado uso fraudulento do instituto de refúgio”, diz a pasta.

No entanto, especialistas ouvidos pelo MigraMundo apresentam uma visão diferente e veem na medida anunciada pela Secretaria Nacional de Justiça uma violação a dois princípios basilares da política brasileira sobre migração: a acolhida humanitária e a não devolução (non refoulement).

“A inadmissão está prevista na Lei de Migração, mas não em casos de solicitantes de refúgio, que mesmo sem um visto de entrada tem pleno direito de solicitar refúgio e ser admitido no Brasil sem maiores questionamentos. É o que está na Lei de Refúgio e na Lei de Migração. E ainda que aceitemos a versão que a inadmissão não ferirá garantias internacionais, após inadmitido a próxima medida para retirada da pessoa inadmitida do país será a repatriação, e a repatriação viola frontalmente o princípio do non-refoulement no caso de solicitantes de refúgio. Ou seja, esse argumento que essa medida não irá violar garantias internacionais simplesmente não se sustenta”, analisa o advogado Vitor Bastos, especialista em migração.

A também advogada Carla Mustafa, coordenadora do Núcleo de Migrantes e Refugiados da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, vê como preocupante a mudança de posicionamento do Ministério da Justiça e da Segurança Pública com relação à entrada de solicitantes de refúgio em território nacional.

“Sabemos que a solicitação de refúgio pode ser utilizada como meio de regularização migratória mais acessível para pessoas que não se enquadram nas hipóteses de reconhecimento da condição de refugiado. Contudo, criar obstáculos que dificultam o acesso ao direito de solicitar refúgio, como a exigência de vistos de entrada e de trânsito, pode prejudicar àquelas pessoas que realmente se deslocam forçadamente em razão de perseguição ou graves e generalizadas violações de direitos humanos. A possibilidade do Brasil ter se tornado um país de trânsito, utilizado para rotas de tráfico de pessoas e contrabando de migrantes não pode justificar a adoção de medidas severas que dificultam o acesso ao direito de solicitar refúgio”.

O Centro de Proteção de Refugiados e Migrantes Internacionais (CEPREMI) repudiou as declarações do secretário Jean Uema. “O espírito securitário e a criminalização do migrante do Secretário Nacional de Justiça lembram a lei migratória da ditadura, felizmente abolida no Brasil democrático”, escreveu a entidade, por meio de manifestação no antigo Twitter, o X.

Coletivos de migrantes também expressaram repúdio à medida. “O Brasil deve garantir o direito de refúgio. Exigimos também um posicionamento oficial do Ministério da Justiça”, informou por meio das redes sociais a Equipe de Base Warmis – Convergência de Culturas, formada por mulheres migrantes e brasileiras filhas de migrantes.

Reação da DPU

O anúncio da restrição pegou de supresa a Defensoria Pública da União, que poucos dias antes havia entregue uma série de recomendações ao governo federal e outros organismos públicos e privados envolvidos na questão do aeroporto de Guarulhos. “A DPU informa que não recebeu nenhuma informação prévia do Secretário Nacional de Justiça, conforme divulgado em veículos de comunicação, a respeito de eventuais mudanças nas regras de entrada no Brasil”, disse, por meio de nota.

A instituição, por meio do Grupo de Trabalho para Migrações, Apatridia e Refúgio, reforçou o coro feito por especialistas sobre um combate ao tráfico de pessoas e contrabando de migrantes que não implique na restrição a direitos já estabelecidos.

“A instituição considera que o combate ao contrabando de migrantes e à atuação de coiotes em redes criminosas de aliciamento e transporte não pode ser feito à custa de violação de direitos. Deve-se evitar a ideia de que há uma crise causada pelas pessoas migrantes, que podem ser aliciadas e iludidas com a possibilidade de migrar para outros países em jornadas muito caras e perigosas. O melhor caminho é o da repressão ao contrabando nos países de origem e conscientização sobre os direitos no Brasil e os riscos da migração irregular aos migrantes que já chegaram”, disse a DPU, na mesma nota.

Necessidade de políticas públicas e apelo a Lula

Outro ponto levantado pelas vozes críticas à medida anunciada pelo Ministério da Justiça é a falta de uma política pública que de fato defina responsabilidades para cada ente público e privado envolvido na temática migratória.

A regulamentação de uma política nacional migratória está prevista na Lei de Migração, o que ainda não ocorreu mesmo passados quase sete anos depois de ter entrado em vigor. O atual governo iniciou o processo e fez consultas públicas junto à sociedade civil, meios acadêmicos e outros atores, mas ainda não há uma previsão de quando o decreto com essa finalidade será publicado ou mesmo discutido, embora existam pressões da sociedade civil para que esse trâmite seja agilizado.

O ex-coordenador de politica migratória do Ministério da Justiça Paulo Illes fez um apelo para que o governo federal reconsidere a medida, por meio de vídeo divulgado nas redes sociais. E pede que não se caia na tentação da busca pela saída mais fácil, que é a restrição, mas sim pela regulamentação de políticas que garantam um acolhimento digno para todas as pessoas migrantes no Brasil e um melhor atendimento com estrutura no aeroporto de Guarulhos.

“Eu espero que o Ministério da Justiça e governo federal voltem atrás. Acho que o Brasil está equivocado em sua política migratória neste momento e precisa revê-la. Espero que o governo volte atrás e faça um amplo debate com todos os agentes envolvidos na pauta migratória para encontrar uma solução que de fato seja duradoura e que possa tratar as pessoas com dignidade”.

O Fórum Nacional de Conselhos e Comitês para Refugiados, Migrantes e Apátridas (Fonacceram) disse que foi surpreendido por uma atitude que classificou como arbitrária, discriminatória e anti-humanitária por parte do Ministério da Justiça. E também apela ao presidente Lula revogue a medida.

“O discurso de segurança jurídica e soberania sempre foram usados pela extrema direita e que sequer o governo anterior teve a coragem de tomar tal atitude tão absurda quanto esta que o Ministério anunciou. O Brasil precisa é de mais recursos para o setor de migrações, e digo política pública de acolhimento de forma integrada entre Ministério da Justiça, Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Saúde, Cultura, Educação, Trabalho e Emprego. O país necessita de uma política nacional, de um plano nacional que avance com o tema e que não tenha um viés discriminatório”, expressou a entidade em nota.

Na mesma nota na qual expressou surpresa e decepção com as medidas anunciadas pelo Ministério da Justiça, a DPU reforçou a necessidade de elaboração de um plano de longo prazo para lidar com a questão em Guarulhos.

“A Defensoria Pública da União reforça seu compromisso de defesa do direito de solicitação de refúgio, pois o Brasil tem o dever legal de receber e acolher pessoas que solicitam proteção internacional, que devem ser entrevistadas individualmente e ter seus pedidos analisados pelo CONARE. Por isso, cobra das autoridades responsáveis o fortalecimento das estruturas de processamento e assistência emergencial, e relembra que não se trata de uma crise pontual ou um fato isolado. Em várias oportunidades houve acúmulo semelhante na área restrita, o que torna necessária a busca de soluções de longo prazo. Não há como anunciar a solução do problema sem que haja um plano de contingência discutido por todos os atores envolvidos e pelo grupo de monitoramento, que existe desde 2015”, completa a entidade.

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