O alto preço do encarceramento feminino

Por Sílvia Lisboa e Carla Ruas.

Jéssica Rodrigues, 26 anos, ouviu um murmurinho do lado de fora da sua pequena casa de tijolo em Sapiranga, cidade de 80 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Era setembro de 2016. Ao abrir a porta, levou um susto: deu de cara com três meninas, com idades entre três e oito anos, debaixo de chuva. Uma vizinha que acompanhava as crianças explicou que a prima de Jessica, Jocasta dos Santos, tinha sido presa naquela manhã por organização criminosa ligada ao tráfico de drogas, e tinha nomeado Jessica para cuidar das crianças. “Elas pareciam tão perdidas e confusas. Nem pensei duas vezes e acolhi as meninas”, lembra.

Aos 24 anos, Jocasta foi presa por fazer parte de uma organização criminosa. De acordo com sua advogada, a prisão ocorreu porque ela trocou mensagens de WhatsApp e apareceu em fotos do Facebook com traficantes conhecidos da Região Metropolitana de Porto Alegre. De dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, Jocasta admitiu que seu marido estava traficando drogas em um bar improvisado que mantinham nos fundos de casa. Apesar de se beneficiar da renda extra advinda do tráfico, jurou que nunca se envolveu nos negócios do marido, preso na mesma ocasião.

Jessica de repente se viu cuidando de quatro crianças: as três meninas e mais um enteado de 15 anos que já morava na sua casa de apenas duas peças. Antes da prisão da sua prima, Jessica vivia uma vida simples, mas estável, com a aposentadoria do marido. Cuidar das três meninas rapidamente aumentou as despesas da casa. Mesmo com R$ 200 extra do Bolsa Família, ficou impossível fechar as contas no final do mês, obrigando-a fazer uma série de bicos.

Os juízes se mostraram em geral conservadores, especialmente no que diz respeito à posse de maconha, e as populações carcerárias incharam com mulheres pobres e negras.

O que mais conseguia era montar fivelas metálicas, uma tarefa comum na Região Metropolitana de Porto Alegre, conhecida como um enclave calçadista. O trabalho lhe permitia que ficasse em casa e cuidasse das crianças, mas pagava apenas R$ 4 por milheiro, e lhe exigia que trabalhasse por muitas horas. Quando terminava o serviço, ainda fazia tarefas domésticas. “Muitas vezes todo mundo ia dormir e eu ligava a TV e ficava limpando”, diz, apontando para os pratos sujos na pia da cozinha.

Jessica faz parte de uma força de trabalho invisível que está crescendo rapidamente no Brasil, consequência de uma escalada sem precedentes no encarceramento feminino. Entre 2000 e 2016, a população de detentas aumentou 698%, chegando a 44.721 presas, de acordo com o Departamento de Justiça. O aumento é muito superior à taxa média nas Américas – de 51,6% no mesmo período, de acordo com dados recentes do Instituto para Pesquisa de Políticas Criminais.

O aumento dramático tem sido atribuído à Lei das Drogas aprovada em 2006, que deu aos juízes mais liberdade para determinar quem é traficante e quem é usuário de drogas. Os juízes se mostraram em geral conservadores, especialmente no que diz respeito à posse de maconha, e as populações carcerárias incharam com mulheres pobres e negras, muitas presas por causa das atividades ilegais dos seus maridos e namorados.

Segundos dados do governo, cerca de 68% dessas mulheres têm uma vinculação penal por envolvimento com o “tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas”. A maioria, portanto, ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas, armazenamento ou pequeno comércio.

Pais ausentes

Não existem dados oficiais sobre o número de mulheres presas que são mães no Brasil, mas o levantamento Tecer Justiça, realizado em 2012 pela ONG Pastoral Carcerária com presas provisórias na cidade de São Paulo dá uma ideia da dimensão do problema. Entre as presas entrevistadas para a pesquisa, 81,2% eram mães e 56,2% moravam com seus filhos no momento do encarceramento. Quando essas mulheres são enviadas para o presídio, a responsabilidade de cuidar dessas crianças recai inesperadamente sobre outras mulheres – principalmente familiares, vizinhas e amigas.

“É uma situação muito comum. Os pais dessas crianças muitas vezes estão ausentes, presos ou simplesmente não estão dispostos a assumir o cuidado dos filhos”, disse Surrailly Youssef, pesquisadora do Instituto da Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). As presas procuram cuidadores na família para evitar o envio de seus filhos aos abrigos porque temem perder a guarda das crianças até ganharem liberdade.

O costume de transmitir o cuidado dos filhos para outras mulheres – e não aos homens – reflete a enorme disparidade de gênero no Brasil. As mulheres representam 60% da força de trabalho remunerada, mas dedicam 24,4 horas por semana às tarefas domésticas, mais do que o dobro do que os homens, de acordo com um uma pesquisa do IBGEdivulgada no ano passado. “Se trabalho doméstico fosse considerado parte da economia nacional, elevaria o PIB brasileiro em 12%”, diz a economista de gênero Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal Fluminense. Seu método para calcular esse trabalho invisível, conhecido como o “PIB da vassoura”, elevaria o PIB brasileiro em R$ 766 bilhões.

A situação é ainda mais dramática entre as mulheres que são encarceradas grávidas – atualmente, as prisões brasileiras têm 622 gestantes ou lactantes segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça. Elas podem ficar com as crianças só até um ano – se o juiz não conceder a prisão domiciliar, uma raridade entre presas de baixa renda. Em muitos casos, porém, elas são afastadas dos filhos recém-nascidos pela falta de penitenciárias com instalações adequadas para acolher as crianças. Dados do Ministério da Justiça de 2014 dão conta que apenas 34% dos estabelecimentos femininos tinham cela ou dormitório adequado para gestantes.

Direitos e benefícios desiguais

Embora o Brasil tenha um histórico de aprovar legislações que permitam que detentas permaneçam com seus filhos, o benefício raramente é concedido.

O país é signatário das Regras de Bangkok das Nações Unidas, um conjunto de diretrizes que impulsiona sentenças penais alternativas para mulheres em todo o mundo com o objetivo de minimizar o impacto dessas prisões na sociedade. A nível nacional, entre outras legislações, uma lei de 1941 permite prisão domiciliar para mulheres encarceradas que aguardam julgamento e que são mães de crianças menores de 12 anos de idade. Mas as iniciativas dão espaço para a interpretação, e os direitos das mães são concedidos a critério dos juízes. Advogados e defensores públicos precisam provar que as mães são “imprescindíveis” às crianças, uma questão nebulosa e sujeita a julgamentos morais por parte dos magistrados.

O caso da ex-primeira-dama do estado do Rio de Janeiro Adriana Ancelmo ilustrou essa desigualdade. No total, Adriana foi condenada a 25 anos em duas ações penais por lavagem de dinheiro e organização criminosa e, em dezembro de 2016, enviada à prisão de segurança máxima Bangu para aguardar julgamento. Em março de 2017,  ganhou o direito de cumprir a sentença em casa porque tem dois filhos, de 11 e 14 anos, e o pai das crianças, o ex-governador Sérgio Cabral, também estava preso. Uma decisão do ministro do STF Gilmar Mendes em dezembro passado alega que “a condição financeira privilegiada da paciente não pode ser usada em seu desfavor”.

Na época, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, pediu ao STF para estender o benefício a todas as mães na cadeia na mesma condição de Adriana, mas não foi atendida. O Ministério da Justiça sequer sabe quantas presas são mães no país porque não consta esse tipo de informação em seus cadastros. Em 20 de fevereiro deste ano, porém, a Segunda Turma do STF concedeu um habeas corpus coletivo autorizando a substituição da prisão preventiva por domiciliar de presas gestantes ou mães de crianças de até 12 anos. A decisão deve ser implementada em até 60 dias pelos tribunais federais e estaduais. O pedido foi feito por um Coletivo de Advogados em Direitos Humanos.

Imprescindíveis

Enquanto a ex-primeira dama do Rio se beneficiava da legislação, de dentro de uma cela cinzenta da Penitenciária Estadual das Mulheres de Guaíba, Natacha Albino Pinho se perguntava por que ela não recebia os mesmos benefícios. Em agosto de 2015, a jovem de 21 anos foi presa em Charqueadas, cidade interiorana do Rio Grande do Sul, enquanto segurava seu bebê de apenas 5 meses. A polícia vinha investigando o seu namorado por tráfico de drogas e, em uma batida, encontrou 6 gramas de maconha  numa bituca dentro de um violão na casa que compartilhavam. Apesar do namorado ter admitido que a droga era dele, Natacha foi detida preventivamente por quatro meses e depois condenada a oito anos de prisão por tráfico de drogas e envolvimento em crime organizado.

Seu bebê foi entregue a uma bisavó paterna, Elvira da Silva Machado, uma mulher de 64 anos que sustenta uma família de quatro pessoas com apenas R$ 1.876,59 de sua aposentadoria e uma pensão da filha. O custo do leite da criança é de cerca de R$ 75 mensais. Uma neta contribui com mais de R$ 250 mensalmente para comprar brinquedos e roupas para a criança. O pai do menino, que acabou passando apenas dois meses em um centro de detenção juvenil por ter menos de 18 anos  na época da batida policial, também mora com Elvira, mas não contribui com o orçamento da família.

Durante uma entrevista em seu escritório, o promotor do caso da Natacha, Rodolfo Grezzana, justificou a sua decisão de não recomendar prisão domiciliar enquanto ela aguardava julgamento lendo em voz alta a lei de 1941 sobre o assunto. Ele enfatizou as partes da legislação que afirmam que o benefício só deve ser dado quando fica provado que a mãe é “indispensável” para o cuidado de seu filho – o mesmo argumento foi utilizado para beneficiar a Adriana Ancelmo.  Apesar de o namorado de Natacha ser um pai ausente e ela estar amamentando, o promotor não viu esses fatos como uma prova fundamental de que a mãe era imprescindível ao bebê. Na entrevista, também enfatizou que “6 gramas de maconha é tráfico, sim”.

Depois do julgamento de Natacha, em março de 2016, a palavra “imprescindível” foi retirada do artigo 318 do Código de Processo Penal com a entrada em vigor do Marco Inicial da Primeira Infância. A possibilidade de substituição da prisão preventiva por domiciliar deve ser concedida a mães de crianças até 12 anos e para pais, caso sejam os únicos responsáveis. Porém, um ano após a implementação da lei, apenas 72 presas se beneficiaram da alteração, de acordo com o Tribunal Superior de Justiça do Brasil (STJ).

“No Brasil, os juízes são muito conservadores e tendem a condenar as mulheres não só por seus crimes, mas pelo que consideram ‘pouco femininas’ e ‘más mães’.”

Heidi Ann Cerneka, ativista americana que trabalhou com mulheres presas no Brasil por 20 anos e que participou da criação das Regras de Bangkok, acredita que parte do problema é o viés judicial. “No Brasil, os juízes são muito conservadores e tendem a condenar as mulheres não só por seus crimes, mas pelo que consideram ‘pouco femininas’ e ‘más mães’”, explica.

Em 16 de janeiro deste ano, a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a ministra Laurita Vaz, negou o pedido de prisão domiciliar à mãe de um recém-nascido presa de forma preventiva por ter sido pega em flagrante com 8,5 gramas de maconha na revista de uma prisão com o argumento de que não ficou comprovada “a imprescindibilidade da presença da presa no lar”. Na decisão, Vaz disse que “conforme o artigo 318 do Código de Processo Penal, a substituição da prisão preventiva a mães de crianças menores de 12 anos não é automática” e que, segundo a lei, “é necessária a comprovação de requisitos como a imprescindibilidade da presença da presa no lar, o que não foi demonstrado pela ré”. A lei a qual a magistrada se refere foi aquela, alterada há quase um ano.

De volta para casa

Em abril de 2017, Jessica ouviu nova agitação na frente de sua porta por volta da meia-noite.Desta vez, era a sua prima, Jocasta, que tinha chegado depois de passar sete meses na prisão Madre Pelletier aguardando julgamento sem nunca ver as suas filhas. Ela finalmente havia recebido o deferimento da prisão domiciliar para aguardar a sentença em casa.

De acordo com a sua defensora pública Loraina Scottá, ela se beneficiou da pressão pública que seguiu o caso da primeira dama do Rio. O escândalo trouxe à luz a discrepância judicial entre os ricos e os pobres no Brasil e até levou o governo brasileiro a emitir um decreto do “Dia das Mães”incentivando penas reduzidas e indultos para 13 mil presas que são mães e avós. Especialistas em direitos humanos avaliam que a medida vai enfrentar obstáculos na burocracia excessiva, acesso limitado a assistência judiciária e o fato de os juízes terem a última palavra nas decisões.

Ao ver a prima, Jessica correu para acordar as crianças. A família reunida se abraçou por vários minutos enquanto choravam lágrimas de alegria e alívio. No entanto, as duas primas sabem que a luta continua. Jocasta teve a casa saqueada quando estava na prisão e não tinha sequer roupas para vestir. Seu marido segue preso. No mês passado, ela pediu à Justiça para visitá-lo, mas teve o pedido negado. Seu processo encontra em fase de instruções para ouvir novas testemunhas. Enquanto isso, as primas planejam criar as meninas juntas,  à espera do julgamento. Caso seja condenada, Jocasta pode receber uma sentença de até 20 anos de prisão.

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