Por Erick Gimenes, para The Intercept.
Édifícil não nos impressionarmos quando passamos por um parque eólico e vemos energia elétrica sendo produzida pelo vento que move as imensas pás dos aerogeradores. A visão das torres que se assemelham a cataventos gigantes traz a ideia de estarmos diante de um sistema limpo e sustentável, como propagandeiam empresas do setor.
Só que não é verdade. A ocupação de terras de pequenos agricultores familiares e povos tradicionais por usinas de energia eólica causa uma série de conflitos territoriais. As empresas, na maioria gigantes multinacionais, se valem da ausência de leis e regulamentos específicos para impor contratos abusivos de arrendamento e ainda assim vender a ideia de que são sustentáveis. A produção de energia limpa, cabe lembrar, é fundamental na discussão de soluções para a mudança climática em curso no planeta.
Mas o boom dos parques eólicos só viria depois da crise mundial de 2008, causada pelo esgotamento do mercado imobiliário nos Estados Unidos. Com os mercados financeiros em frangalhos e a própria reputação na lona, os olhos de investidores internacionais se voltaram para o potencial dos ventos no Brasil. Como resposta ao interesse, o governo abriu um leilão exclusivo para a contratação de projetos de produção de energia pelo vento.
“A gente trabalha com a hipótese de que ocorreu esse interesse na energia justamente porque o capital estava em crise e precisava de um novo portfólio de investimentos”, me disse a geógrafa Lorena Izá Pereira, pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária da Universidade Estadual Paulista, a Unesp.
De 2005 a 2017, tudo mudou. Com um aumento de impressionantes 43.910,3% na capacidade instalada de geração eólica, o Brasil atropelou até mesmo a China, que cresceu de 14.839% no período, e se tornou o maior mercado do setor no Sul do mundo, de acordo com dados do Conselho Global de Energia Eólica, o GWEC.
‘São contratos totalmente assimétricos. Eles beneficiam amplamente as empresas’.
Hoje, estão identificados 1.036 parques eólicos no Brasil, com potencial para gerar, juntos, 18 milhões de megawatts por ano, o que corresponde a aproximadamente 10% do total produzido no país. Os números são do Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel.
O Nordeste é, de longe, a região com mais parques. São 930 ao todo – 610 em operação, 143 em construção e 177 com licença de instalação concedida.
O mercado é dominado por multinacionais, como a espanhola Iberdrola (dona da Neoenergia, o maior grupo privado do setor elétrico no Brasil), a italiana Enel Green Power e a francesa Voltalia Energia.
Para Lorena Izá, trata-se de um novo arranjo da estrangeirização das terras brasileiras, um processo de controle de território para geração de lucro que começou com a exploração portuguesa da madeira e do ouro e atualmente se observa na produção de commodities como a soja e o milho.
“O sentido da estrangeirização sempre foi o mesmo, garantir a acumulação do capital, especialmente em tempos de crise. Diante de um contexto caracterizado pela convergência de múltiplas crises e mudanças geopolíticas globais, a estrangeirização tende a se tornar mais complexa, porém sem perder a essência de promover a concentração de terras e capital, a exploração de recursos e trabalho e a alteração de modos de vida”, analisou a pesquisadora.
Controle de território
Os parques eólicos dificilmente irão aparecer nas estatísticas de terras em poder de estrangeiros no Brasil. Isso porque as gigantes do setor perceberam que é mais vantajoso explorar as áreas sem precisar gastar dinheiro na compra delas. A jogada, agora, é fechar contratos de arrendamento com os donos de terras. Muitas vezes, são pequenos proprietários rurais, pessoas muito pobres que vivem da produção para subsistência.
Os contratos de arrendamento são regidos pelo Estatuto da Terra e pelo decreto 59.566, normas de 1965 e 1966, respectivamente. Por meio deles, as companhias eólicas oferecem um pagamento mensal aos proprietários, um valor fechado ou um percentual do lucro, em troca do direito de uso irrestrito dos imóveis rurais – em que muita gente precisará seguir morando. Os textos legais sequer tratam da energia eólica, uma inovação tecnológica que nem havia sido imaginada quando foram escritos.
Eu conversei com o advogado Claudionor Vital, do Centro Popular de Assessoria Jurídica, o Cepaj, uma organização que atua em parceria com movimentos sociais para representar famílias camponesas abordadas por eólicas no interior da Paraíba. Segundo Vital, muitos contratos não preveem garantia de renda mínima, têm prazos de vigência exorbitantes (entre 25 e 50 anos) e multas unilaterais aos proprietários em caso de desistência (que chegam a R$ 20 milhões, em alguns casos).
“São contratos totalmente assimétricos. Eles beneficiam amplamente as empresas, ao assegurar o acesso e o controle sobre terras de elevado potencial eólico, sem limites. Toda a propriedade da família agricultora passa a ser de direito das geradoras”, explicou Vital.
Os pagamentos são geralmente calculados segundo o número de aerogeradores (os cataventos gigantes) instalados. Em um assentamento em João Câmara, no Rio Grande do Norte, por exemplo, representantes da empresa de energia eólica prometeram colocar 15 torres no local, onde vivem 25 famílias. O acordo era pagar R$ 1.069 ao mês por torre. Ou seja, os moradores dividiriam R$ 16.035 mensais – que já não eram grande coisa, algo como R$ 640 por família. No entanto, a promessa foi desfeita após pressão de fazendeiros da vizinhança, e só duas torres foram instaladas. Aí, as 25 famílias tiveram que dividir R$ 2.138 ao mês – meros R$ 85 para cada uma.
Cabe frisar que os contratos incluem uma cláusula de confidencialidade, que impede que os signatários falem sobre o assunto – e, claro, exponham a injustiça formalizada neles. “Se descumprirem a cláusula de confidencialidade, as famílias pagam multa. Isso gera receio nelas. Enfrentamos muita dificuldade exatamente por causa disso”, me disse o advogado.
Questionei a Associação Brasileira de Energia Eólica, a ABBEólica, sobre os contratos denunciados como abusivos pelo advogado. A entidade me respondeu que não pode discutir “cláusulas específicas de contratos específicos”, e disse que os proprietários têm autonomia para aceitá-los ou não. Em relação aos anos de vigência, a associação afirmou que os longos prazos têm relação com a natureza dos leilões, que inviabilizam a mudança de localização das torres.
Ainda segundo a ABBEólica, os contratos são confidenciais porque os projetos irão para um leilão competitivo e, portanto, os dados não podem ser expostos.
A pesquisadora Mariana Traldi, professora do departamento de geografia do Instituto Federal de São Paulo, o IFSP, também se debruçou sobre contratos do gênero para escrever sua tese e notou que os documentos, no fim, são instrumentos de “despossessão” de um bem público. “O vento, sendo uma riqueza natural, é de todos, um benefício da sociedade. Quando ele é apropriado privadamente, em benefício de um grupo restrito e com a finalidade da obtenção do lucro, é um processo de despossessão. O ar em movimento está sendo apropriado para o lucro de alguns”, explicou a pesquisadora.
‘Quem está saindo prejudicado nessa relação são os pequenos proprietários’.
Para pensar em melhores compensações para o uso privado do vento, portanto, primeiro seria preciso definir quem é o dono do ar em movimento. Existe há anos um debate que reivindica o direito à água como bem público universal, por exemplo. Mas ele ainda não chegou aos ventos. E a legislação brasileira não trata do assunto.
De acordo com a Convenção sobre Aviação Civil Internacional, da qual o Brasil é signatário, o espaço aéreo de um estado é definido em altura por toda a extensão da atmosfera e em superfície pelos limites territoriais terrestres. Por esse entendimento, o vento seria um bem da União. No entanto, a regra versa apenas sobre o uso do ar pela aviação e não trata da exploração econômica a partir do solo.
Já o Código Civil Brasileiro define, no artigo 1.229, que a propriedade de terra inclui o espaço aéreo. Portanto, o ar é um bem atrelado ao espaço territorial sobre o qual está. Assim, o direito à exploração do potencial eólico pertenceria ao proprietário da terra. Mas, outra vez, não há nenhuma linha escrita sobre essa situação específica.
Tramita na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 97/2015, que busca transformar o potencial de energia eólica em patrimônio da União e exigir o pagamento de royalties pela exploração do vento, num modelo parecido com o das hidrelétricas. O texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 2017 e, desde então, está à disposição para ser pautado para votação em plenário pelo presidente da Casa – atualmente, o bolsonarista Arthur Lira, do PP alagoano e do Centrão.
Traldi, do IFSP, diz que é possível pensar nas duas hipóteses para melhorar a compensação pela exploração privada do vento. No caso de ele ser considerado um bem pertencente aos donos das terras, o valor a ser pago por quem o explora teria que ser bem maior, afirmou.
“Acho que a fórmula deveria sair de um processo que seja negociado com as pessoas que estão sendo impactadas, e não de uma decisão de cima para baixo. Porque, de toda forma, quem está saindo prejudicado nessa relação são os pequenos proprietários. A gente não pode fazer algo que vai prejudicá-los novamente”, argumentou a pesquisadora.
Para além de melhorar as regras, é preciso pensar em um modelo equilibrado de geração de energia no país, diz a pesquisadora. Ela afirma que não há consenso sobre a pureza da energia eólica.
“A gente tende a pensar, quando vê as torres eólicas, que aquilo é energia limpa e ponto. Mas a gente esquece que existe uma cadeia produtiva. Os equipamentos eólicos demandam mineração de minérios muito específicos para as baterias. O lítio é um deles. É um processo predatório e extremamente devastador para o meio ambiente”, ela afirmou.
“Será que, no balanço final da equação, estamos de fato poluindo menos, degradando menos, emitindo menos gases de efeito estufa? Não sei. Alguém precisa fazer essa conta. É o que alguns pesquisadores estão tentando”, me disse Traldi. “É claro que é muito melhor a gente não queimar combustível fóssil. Mas temos que fazer uma análise crítica e profunda da coisa. Não é na superfície que vamos encontrar respostas”.
Os atravessadores
Entre as empresas de geração eólica e os agricultores donos das terras, há uma figura que lucra muito com todo o negócio. São os atravessadores, geralmente conhecidos dos moradores que são convocados pelas empresas para convencê-los a assinar os contratos. Eles são chamados pelos locais de “corretores dos ventos” e recebem uma porcentagem dos acordos fechados.
Mariana Traldi calculou os ganhos dos atravessadores com base em dados disponíveis na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, a CCEE, e no Operador Nacional de Sistemas Elétricos, o ONS.
Em um dos parques eólicos analisados, da francesa Voltalia Energia, a pesquisa estimou que um mesmo advogado intermediador recebeu quase cinco vezes mais do que cada um dos arrendatários. Em 2017, a empresa arrendou 57 lotes (ao todo, 2.850 hectares) e fechou acordo para ratear 2% do faturamento bruto mensal da empresa entre todos os proprietários. Na ponta do lápis, são R$ 50.716 anuais para cada um, ou R$ 4.226 ao mês. Já o atravessador recebeu 7,5% de cada um dos contratos. No saldo final, embolsou R$ 234 mil.
Procurada, a Voltalia, me disse desconhecer a existência de atravessadores e fechar contratos diretamente com os donos de terras. Contudo, admitiu que estimula os proprietários a contratarem, “por livre escolha deles”, advogados que prestem assistência jurídica nos acordos.
Moema Hofstaetter, pesquisadora do Laboratório Sociedades, Ambientes e Territórios da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, afirma ter se deparado em campo com vários abusos cometidos pelos atravessadores.
“Encontramos situações em que o terreno foi arrendado por R$ 1 mil a cada torre, mas os assentados recebiam só R$ 300, porque o atravessador embolsava R$ 700”, ela afirmou.
Hofstaetter contou que, ao visitar famílias que negociaram arrendamentos para as eólicas, topou com sítios cercados e vigiados por capangas armados. Além disso, as empresas impediam que os agricultores proprietários entrassem na área, circulassem livremente por estradas que dão acesso às usinas e plantassem coqueiros, mangueiras e cajueiros.
A proibição ao cultivo da terra é uma ordem silenciosa de expulsão, afirma. Os pequenos agricultores muitas vezes acabam obrigados a ir embora para a cidade, se encostando em familiares distantes ou buscando subempregos em ramos que mal conhecem. “Eles são expropriados, espoliados e já perdem a posse da terra, mesmo que simbolicamente, quando são impedidos do acesso a toda a propriedade”, diz Hofstaetter.
Questionada sobre as situações relatadas pelas pesquisadoras, a ABBEólica negou que agricultores sejam impedidos de acessar suas terras ou seguir com suas atividades.
A entidade também disse repudiar a atuação de atravessadores. “É uma prática que repudiamos e que as empresas, nas regiões em que atuam, tentam coibir por meio do seu relacionamento com a comunidade”.
Regras ambientais frouxas
Olicenciamento ambiental para as companhias eólicas tem regras frágeis, com brechas que facilitam a autorização dos empreendimentos sem muitas exigências.
A resolução 462/2014, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, exige que as empresas apresentem Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, o EIA/Rima, e realizem audiências públicas em caso de potencial atividade poluidora.
A norma exige o estudo para todas as usinas localizadas em formações dunares, planícies de deflação, mangues e áreas úmidas, Mata Atlântica, zona costeira, áreas de rota, pouso, descanso, alimentação e reprodução de aves migratórias ou locais em que venham a gerar impactos socioculturais diretos. É o caso de quase todos os parques no Nordeste.
No entanto, a mesma resolução determina que órgãos licenciadores estaduais podem classificar as usinas eólicas como atividades de baixo potencial de impacto ambiental. Neste caso, só é exigido um Relatório Ambiental Simplificado, o RAS, um documento simples com a descrição do projeto, um diagnóstico dos prováveis impactos e propostas de medidas preventivas e corretivas.
Segundo a geógrafa Lorena Izá Pereira, na tentativa de atrair investimentos para os estados, os governos estaduais deixaram de exigir o EIA/Rima e se contentam com o relatório simplificado. “O RAS é um documento esdrúxulo, de poucas páginas, só contando mais ou menos o contexto do local, colocando as áreas que são impactadas”, ela explicou.
‘A gente viu cisternas quebradas em regiões com torres eólicas. As mulheres voltaram a ter que buscar água’.
Uma resolução anterior à 492, a Conama 369/2006, é um dos instrumentos utilizados pelas eólicas para erguer suas torres onde bem entendem. A norma libera a instalação de empreendimentos de energia que sejam considerados “obras essenciais de infraestrutura” em qualquer canto do território nacional, inclusive em áreas de preservação permanente, as APPs, e em territórios de povos tradicionais.
No Rio Grande do Norte, as análises são feitas por “estagiários bolsistas” do Conselho Estadual do Meio Ambiente, segundo Moema Hofstaetter. “Os estagiários negam os projetos entendendo que ali tem gruta, comunidade tradicional, figuras rupestres. Mas o chefe diz que pode aprovar, porque a ordem vem de cima e traz desenvolvimento para o estado”, ela afirmou.
Segundo Hofstaetter, a abertura para a implantação de parques em territórios tradicionais, além de inviabilizar o trabalho de pescadores e agricultores nas suas terras, faz com que eles percam a condição de segurados do INSS, o Instituto Nacional do Seguro Social, para aposentadoria especial.
Foi o aconteceu em Oiticica, um distrito do município de Crateús, no interior do Ceará. “Em troca de um contrato de 25 a 30 anos, em que o assentamento recebe R$ 2.138 ao mês, a serem divididos entre 25 famílias, todos os agricultores perderam seus direitos previdenciários. Porque, na hora que você faz um arrendamento da propriedade, você sai da condição de agricultor”, explicou a pesquisadora.
Mulheres em luta
As mulheres são as principais prejudicadas pela instalação das eólicas em regiões de pequenas propriedades rurais. Quem diz isso é a bióloga Adriana Galvão, assessora técnica da associação Agricultura Familiar e Agroecologia, a AS-PTA, que atua para fortalecer o desenvolvimento rural sustentável no país.
“As mulheres sofrem uma quantidade absurda de violência nesse processo: perda de autonomia, exploração sexual, exploração do trabalho, aumento da carga de trabalho. A gente viu cisternas quebradas em regiões com torres eólicas, cisternas que armazenam água de beber, de cozinhar. As mulheres voltaram a ter que buscar água”, descreveu.
Acuadas pela chegada dos aerogeradores no Polo da Borborema, uma região paraibana formada por 13 municípios, mais de 5 mil mulheres participaram de uma marcha contra a chegada das eólicas e entregaram uma carta ao governo da Paraíba.
“Aceitar a implantação desses grandes empreendimentos eólicos em nosso território seria como assinarmos um atestado de desistência da agricultura de base agroecológica, que há 25 anos estamos construindo em nossa região, e colocar em risco a segurança alimentar, hídrica e a propriedade da terra, agravando as desigualdades sociais”, reivindicaram as mulheres na carta.