Por Leo Gonçalves, no Suplemento de Pernambuco
Esta história começa nos anos 1950, em torno a um certo negro comunista de nome Walter Miranda, que circulava por São Paulo provavelmente à procura do poetas negros locais. Homem misterioso para muitos, Walter Miranda tinha um forte sotaque, embora tentasse ser um brasileiro entre brasileiros. Parece que era amigo de Pablo Neruda e Jorge Amado, esses dois comunistas que se lançaram, como Walter, de exílio em exílio por suas militâncias. O tempo de permanência em São Paulo, no entanto, não parece ter sido muito longo. Pouco tempo depois, Walter sequer existia mais. O dono de seu nome se encontrava em outra parte do mundo, mais precisamente em Paris, onde publicaria, em 1956, o livro Minerai noir (Minério negro). Seu nome verdadeiro: René Depestre.
Neste exato instante de 2022, momento em que este texto vai sendo escrito, René Depestre é uma peça-chave desencaixada (ao menos no imaginário brasileiro, que ainda não figurou as peças deste jogo) do grande quebra-cabeça insular da literatura das Antilhas. Por sua longa trajetória. Por seu percurso literário, que começa no importante movimento da Negritude. Por ter sido amigo próximo de Aimé Césaire e íntimo de Édouard Glissant. Por ter aberto o caminho para autores e autoras das copiosas ilhas da região, verdadeiro Exu da linguagem. E principalmente: por estar hoje próximo dos 95 anos de sua vida voltada para a literatura, a poesia, a luta pela liberdade, pelo fim das desigualdades deste mundo.
O ano agora é 1945. Em busca dos fragmentos de memória, a linearidade cai inteira por terra. René Depestre tem dezenove anos, está em seu país natal, o Haiti, e publica seu primeiro livro de poemas, Étincelles (Fagulhas), o que faz girar em seu redor as efervescências do momento. O jovem poeta organiza um semanário chamado La Ruche e nele saem poemas, artigos, crônicas. Tudo caminha para que a passagem de André Breton pelo país signifique um verdadeiro abalo sísmico: o surrealismo representava para aquelas gerações o que havia de mais subversivo em termos de criação poética e artística. O jornal La Ruche dedica todo um número à chegada do poeta que, em sua passagem pela capital, Porto Príncipe, deixaria marcas nas mentes da juventude.
Mas o Haiti de então está em polvorosa. Revoltas pipocam pelo país. O presidente Elie Lescot foge para os Estados Unidos, deixando em seu lugar o general Franck Lavaud. Parte da juventude efervescente se vê na situação de fugir de seu país. “[Foi] O batismo de fogo da minha geração”, ele declara em seu livro Le métier à métisser (O ofício de mestiçar). “A partir de 1946, militares sem lei nem recolocaram o Haiti nos modos da escravidão e da colonização”, continua. Não restava outra opção senão a errância e o exílio. Depestre declara ter sido parisiense em Paris, brasileiro no Brasil, chileno no Chile, cubano em Havana.
Mas o destino de qualquer pessoa despatriada é sempre o mesmo: a esperança de um retorno ao país natal. Há quem diga que essa esperança ganhou força em 1957, quando ele tenta passar um ano no Haiti. O novo homem forte do país é ninguém menos que seu amigo de infância, um certo François Duvalier. Este chega a lhe propor um cargo no Ministério das Relações Exteriores. Mas seu velho conhecido já tinha revelado sua grande tentação para se juntar ao “lado sombrio da força”. François Duvalier era já conhecido como Papa Doc, e se tornaria um ditador de longo curso. Se tornar o responsável no ministério, não: dar no pé o quanto antes. E enquanto foge, milicianos ligados ao chefe de Estado irrompem pela sua casa, vasculham sua biblioteca. O comunismo naquela época era uma bruxa de Salem.
Mas não nos façamos de rogados, porque 1959 é o ano da Revolução Cubana “e é para lá que eu vou” (terá ele dito assim?). Sobre este momento, o poeta e editor francês Bruno Doucey comenta: “Com a cumplicidade do poeta Nicolás Guillén, Depestre chega a Cuba para uma conferência sobre a poesia. Ele encontra Che Guevara, que lhe propõe organizar um movimento insurrecional contra Duvalier a partir de Cuba. O poeta se engaja em uma guerrilha de curta duração, mas que importa: ei-lo cidadão das Antilhas, vivendo no calor da hora das suas utopias; pela primeira vez, talvez, as palavras do poeta têm o poder de mudar a vida.”[nota 1]
Mais tarde, Depestre seria afastado do regime de Fidel Castro, e sua errância permanente alcançaria novamente o continente europeu, onde ele encontraria, de novo, seus espaços de inserção. A trajetória exiliar sempre pode encontrar um caminho sem volta, e é o que parece ter ocorrido a partir dos anos 1970, quando passa a adotar a França como terra de acolhimento. Em uma emissão da rádio France Inter, concedida a Jacques Chancel, em 1980, o vemos despreocupado de retornar à terra natal. “Nesses últimos 30 anos, vivi apenas um ano no Haiti. Mas como você mesmo disse, o Haiti está em mim, eu levo o Haiti por onde vou. E de algum modo eu sou apegado a meu exílio, que é para qualquer homem uma doença, eu tento fazer dele uma espécie de saúde. A saúde de meus poemas, se é que têm saúde, e minha própria saúde pessoal.”
René Depestre é o autor de uma alentada coleção de poemas que poucas vezes foram publicados no Brasil. Não é, no entanto, um absoluto desconhecido de quem aprecia a poesia negra do mundo. Seu poema Minério negro, que dá título a seu livro de 1956, fala com firmeza e profundidade da condição das pessoas negras e do processo escravista que assombrou os corpos e almas de todo mundo, com um rosto especialmente monstruoso para os países caribenhos:
Quando o suor do indígena se viu bruscamente seco pelo sol
Quando o frenesi do ouro drenou para o mercado a última gota de sangue indígena
De modo que não restou um único indígena nas imediações das minas de ouro
Viraram então rumo ao rio muscular da África
Para assegurar o tempero do desespero
Então começou a corrida rumo ao inesgotável
Tesouro da carne negra
Então começou o tumulto desgrenhado
rumo ao radiante meio dia do corpo negro
e toda a terra retiniu com o estrondo das picaretas
na espessura do minério negro […] [nota 2]
É também autor de uma bela coleção de obras de ficção em prosa, algumas delas galardoadas com prêmios conhecidos, como Alléluia pour une femme-jardin (Aleluia para uma mulher-jardim), que levou o Goncourt de contos em 1982, e um romance que foi grande sucesso de vendas e ganhou o prêmio Renaudot de 1988, Hadriana dans tous mes rêves (Hadriana em todos os meus sonhos). Mas é provável que poucas coisas lhe tenham rendido tanto valor quanto a amizade que nutriu junto ao poeta Aimé Césaire, que lhe dedicou um poema intitulado O verbo marronar. “Marronaremos Depestre marronaremos”, lhe escreve o inventor da palavra Negritude em sua linguagem desvirgulada.
AIMÉ CÉSAIRE E A NEGRITUDE
Pode-se dizer que a palavra Negritude ganhou seus primeiros usos afirmativos nos anos 1930, em pleno entre guerras, entre os jovens negros que perambulavam pela Paris universitária de então. É do contato entre o martinicano Aimé Césaire e o senegalês Léopold Sédar Senghor que surge uma profunda interlocução (que permaneceria ativa ao longo de mais setenta anos) e as bases daquilo que foi provavelmente o mais importante movimento cultural envolvendo o povo negro de língua francesa. A palavra Negritude apareceu pela primeira vez em 1935, quando Aimé Césaire, em um artigo publicado no jornal L’étudiant noir: […] queremos explorar os nossos próprios valores, conhecer os nossos próprios valores, conhecer as nossas forças por experiência pessoal, cavar a nossa própria profundeza, as fontes eruptivas do humano universal, romper a mecânica identificação das raças, rasgar os superficiais valores, abarcar em nós o negro imediato, plantar a nossa Negritude como uma bela árvore até que ela traga os frutos mais autênticos.”
Em meio às durezas do período pré-Segunda Guerra Mundial, havia uma comunidade negra considerável em Paris. Por ali passavam os artistas da Harlem Renaissance (um assunto que, por si só, merece vários capítulos), exilados e estudantes africanos, caribenhos e de onde quer que houvesse a força do povo negro. Se reunindo na casa das irmãs Paulette e Jeanne Nardal, as martinicanas que viviam na região de Clamart, formou-se ali uma agitação cultural viva e visível. Desses encontros, vieram à tona pelo menos três periódicos: o Légitime Défense, coordenado por Étienne Léro, Jules-Marcel Monnerot e René Ménil, cujo texto introdutório, quase um manifesto, caiu como um golpe nas mentes dos jovens poetas de então. Eles declaram guerra contra esse “abominável sistema de obrigações e restrições, de exterminação do amor e de limitação do sonho, geralmente designado sob o nome de civilização ocidental.” É um texto virulento que marcará a escrita vulcânica de Aimé Césaire.
Em seguida, viria a Revue du monde noir, organizada por Louis-Thomas Achille e as irmãs Nardal. Revista que teria a duração de dois anos e na qual circulavam também um pouco das ideias feministas das participantes. Nesta revista, um ponto-chave foi a presença de poetas como Langston Hughes, Claude McKay e Countee Cullen, do movimento da Harlem Renaissance, que na ocasião atendia pelo nome de New Negro.
Os movimentos emancipacionistas antilhanos de então, ao menos dos países que ainda se encontravam sob o jugo da França, não vinham pela busca de uma independência, mas daquilo que eles chamavam de assimilacionismo. Uma doutrina que, uma vez imposta pelo colonizador em pleno século XIX, foi ganhando os contornos de uma revolução. Os habitantes das ilhas viam nas leis francesas aquilo que sonhavam para si. Queriam direitos iguais. O Partido Comunista Martinicano (PCM), por exemplo, tinha no assimilacionismo uma de suas principais plataformas.
Para Aimé Césaire, nada mais tóxico: o assimilacionismo seria a maneira mais concreta de se perder no mundo. Das formulações da comunidade negra que se entretinha na França de então, Léopold Sédar Senghor apresentou a seguinte fórmula: “Negritude, o conjunto de valores de civilização do povo negro”. Aimé Césaire, que não se propunha discordar de seu frère, pensava com um olhar mais diaspórico. Para ele, a condição do negro nas sociedades coloniais era a de pessoas em busca de acesso à civilização europeia, como que houvesse uma eterna esperança de um dia poder fazer parte dela, embora todas as tentativas sempre desse em frustração, tal como aponta o interessante livro L’amère patrie: Histoire des Antilles françaises au XXe siècle (Pátria amarga: História das Antilhas francesas no século XX), de Jacques Dumont. A esperança no assimilacionismo conjugou todos os esforços daquele período, e ressignificou aquela doutrina que, em sua origem, se propunha vir para dobrar os sujeitos do processo colonial.
Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor aparecem então com o periódico estudantil L’étudiant noir, que trazia um elemento fundamental de diferença em relação às revistas anteriores: uma crítica veemente e aguerrida contra a doutrina do assimilacionismo.
Assim, para Césaire, a Negritude passa por uma reformulação dos elementos de base surrealistas: pela supressão das camadas superficiais de civilização impostas pelo processo colonial, se chega finalmente ao Negro. Ao “Negro Essencial”.
E qual seria a formulação de Léon-Gontran Damas? Damas foi fundamental. Enquanto os demais se esforçavam em teorizar, Damas publicava seus poemas. Primeiro na revista Légitime Défense e mais tarde, em 1937, tendo sido o primeiro dos três a publicar seu primeiro livro Pigmentos. Damas vinha da Guiana. E a Guiana, sobre a qual ainda hoje pouco sabemos, é também uma sociedade caribenha. Não é uma ilha, mas, segundo Édouard Glissant, faz parte de um modo de ser que ele nomeia como “o discurso antilhano”.
Em 1948, Léopold Sédar Senghor organiza uma famosa antologia de poesia negra e malgaxe de língua francesa, na qual reúne poetas de diversas regiões. O livro, que se tornou famoso por ter vindo a público com um prefácio de Jean-Paul Sartre, trazia poetas como os haitianos Jacques Roumain, autor do belo Senhores do orvalho, publicado recentemente no Brasil, na tradução de Monica Stahel, e Léon Laleau, autor destes versos (tradução minha):
TRAIÇÃO
O coração viciado, que não se molda
À minha língua ou aos meus trajes,
Sobre o qual penduram como à corda,
Sentimentos e costumes que tu trazes
Da Europa, notaste a desesperança
E esse sofrimento sem igual
De aprisionar, com palavras da França,
O coração que me chegou do Senegal?
Mas voltemos a René Depestre: esse homem de língua crioula, mas de escrita francesa, conta que já era poeta quando conheceu a Negritude. A Negritude, que, por sua vez, não pode e não deve ser considerada o único movimento de poesia negra do mundo – uma vez que o Haiti já tinha vindo, nos anos 1920, com seu movimento indigenista; os Estados Unidos com a Harlem Renaissance; Cuba com a poesia criolla e assim por diante. Ademais, René Depestre, um mestiço em um país que dá aspectos de classe social para a mestiçagem, se declara não como um mulâtre (tal como talvez fizesse seu amigo tirano, Duvalier). Ele se coloca “de pé”, como em um poema de Césaire. Evoca, como Césaire, a máquina de costura Singer com a qual sua mãe alimentou os filhos. Como Césaire, também sonha frequentemente com um retour au pays natal, até que, diferentemente deste, decide um dia declarar o seu Bom dia e adeus à Negritude, mas essa já é uma outra história.
UM PENSAMENTO ARQUIPÉLICO
Uma geografia pouco conhecida, o grande e complexo arquipélago das Antilhas possui, neste século XXI, uma das maiores diversidades humanas do planeta. Objeto de colonização e pirataria ao longo dos séculos iniciais da expansão marítima europeia, foi nas Antilhas que Cristóvão Colombo pisou pela primeira vez. “Não existe descobrimento das Américas”, declara Depestre na já citada entrevista a Jacques Chancel. “A colonização chegou primeiro nas Antilhas.” As ilhas do Caribe, como também são conhecidas no Brasil, são banhadas por vários idiomas e estruturas, e em sua maioria, mostram ainda hoje a cara viva da colonização. E aqui não se trata de metáfora, de colonização psicológica ou consumista.
As ilhas de Martinica e Guadalupe são parte do território francês. Os franceses dizem DOM (Départements d’Outre-Mer, Departamentos de Ultramar). As Ilhas Cayman pertencem ao Reino Unido, assim como as ilhas Turcas e Caicos. Há ilhas que ainda hoje são de posse dos Países Baixos. Já Porto Rico é de domínio estadunidense. Barbados, Bahamas, Trinidad e Tobago, Jamaica, Santa Lúcia e muitas outras, fazem parte da Commonwealth britânica. Cuba e República Dominicana são, hoje, nações livres, dominadas outrora pela Espanha. Uma notícia de 2021: Barbados abandonou a coroa britânica em definitivo e elegeu uma mulher como sua primeira presidenta.
São muitas as personalidades conhecidas pelo mundo afora que são de origem caribenha, embora pouco se fale disto. A mãe de Malcolm X, Louise Little, era uma mulher mestiça, nascida em Granada, a ilha. Um dos poetas fundamentais da Harlem Renaissance, Claude McKay, assim como Marcus Garvey, o líder do movimento, era jamaicano. O pensador Carlos Moore, hoje radicado no Brasil, é cubano.
As Antilhas podem ser divididas entre as “pequenas ilhas” (que formam sua copiosa maioria) e as “grandes ilhas”: Cuba, Jamaica, Haiti/República Dominicana e Porto Rico. Mas nem só de arquipélagos vive o “discurso antilhano”. Para Édouard Glissant, há um modo de ser e de viver marcado pelos processos da história que, embora não forme necessariamente uma “identidade nacional”, é composto pelos mais diversos elementos culturais a convergir na direção de uma “crioulização”. Sistema de plantações, povoamento piramidal: africanos e hindus na base, europeus no topo, fenômeno cultural de crioulização, línguas de compromisso, sincretismo de civilizações, insularidade, para citar os elementos elencados na capa do alentado livro O discurso antilhano (que deverá ser publicado em breve no Brasil, pela Bazar do Tempo). Mas, para Glissant, mesmo as regiões continentais, como Honduras, Panamá, Costa Rica ou Guiana Francesa, formam esse bloco cultural que, ao ser observado de perto, encontrará muitos pontos em comum com o Brasil.
Como não poderia deixar de ser, essa região contribuiu com histórias fundamentais no contexto das Américas. Se o Caribe foi onde a colonização chegou pela primeira vez, também é onde a descolonização chegou primeiro. Na última década do século XVIII, a revolução haitiana realizou um feito inédito: a independência obtida inteiramente como um resultado da luta dos negros. Precisamente aqueles que se encontravam no ponto mais baixo da pirâmide social. Numa sociedade que já começava a se tornar complexa, ao menos no aspecto socioeconômico, os grandes brancos e a burguesia mestiça não foi capaz de ver chegar a grande horda negra que arrasou com as plantations, depôs a coroa francesa (que logo depois se tornou república francesa), expulsou fazendeiros brancos e se declarou livre no ano de 1804. Eduardo Galeano comenta que quando Simón Bolívar pediu ajuda para o Haiti na sua luta pela independência, anos mais tarde, recebeu como principal exigência que também fossem extintas as escravidões dos países libertados. Algo que sequer havia passado pela cabeça dos ditos “Libertadores das Américas”.
“Haiti onde a negritude colocou-se de pé pela primeira vez”, medita Césaire em seu Diário de um retorno ao país natal, “e disse que acreditava em sua humanidade”. [nota 3] Os personagens dessa etapa heroica aparecem com frequência na literatura antilhana: Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines, Rei Christophe, e muitos outros, como parte de um grande poema épico plurinacional. Mas não só.
De Guadalupe vem uma das maiores escritoras vivas: Maryse Condé. Suas narrativas, atravessadas da ancestralidade negra feminina, contam de mulheres bruxas, como em seu romance Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem, mais um dos poucos livros da vasta literatura antilhana que se encontram disponíveis atualmente no Brasil. Uma literatura exuberante, colorida e feminina, que fala da história negra como poucas. Trata-se de um romance histórico que conta a história de uma mulher negra nascida em Barbados e perseguida em Salem no século XVIII como uma bruxa negra entre as que foram perseguidas pelo puritanismo norte-americano. Segundo Conceição Evaristo, a autora “se apropria do fato histórico, criando uma narrativa em que a voz da personagem-narradora, Tituba, oferece uma outra versão do evento, distinta da oficial.” Trata-se, portanto, da história de uma mulher negra narrada por uma mulher negra.
E assim, para engrossar a longa lista de autores que povoam a literatura do mundo atual, lembraremos de Derek Walcott, o prêmio Nobel de Literatura de 1992. Kamau Brathwaite, da ilha de Barbados, um mestre que perambulava entre a história e a poesia, autor de, entre outros, História da voz, ainda sem edição no Brasil. Frankétienne, outro haitiano fundamental e experimental, em pleno vigor criativo, que perambula entre as mais diversas linguagens artísticas que vão da pintura até o romance experimental.
Frankétienne é o autor do primeiro romance escrito totalmente em crioulo haitiano. E é por isso que ganhou uma homenagem especial no manifesto do Elogio da crioulidade, de Raphaël Confiant, Patrick Chamoiseau e Jean Bernabé.
***
“Nem europeus, nem africanos, nem asiáticos, nós nos proclamamos Crioulos.”
Crioulo, esta palavra que ganhou contornos na cultura brasileira tão diversos daqueles das diversas regiões do mundo.
Crioula, em sua origem, é aquela pessoa que nasce em um local, porém de pais provenientes de outra parte. Por conseguinte, o termo passou a designar as línguas compósitas que surgiram em lugares como as Antilhas, mas também no Cabo Verde, na Guiné-Bissau e em outras partes do mundo – pois, para Édouard Glissant, o mundo em seu processo de globalização se criouliza em escala crescente.
Interessados em repensar a identidade cultural antilhana, na qual Aimé Césaire aparece como figura-chave, os escritores Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant publicaram, em 1989, o Elogio da Crioulidade, com ares de manifesto. Se a Negritude havia proclamado uma unidade para todo o povo negro “o conjunto de valores de civilização do povo negro”, se Césaire se autoproclamava africano, para esses escritores era o momento de declarar uma independência. Embora continuassem escrevendo em língua francesa, por sua função de ferramenta, eles passavam a tratar de temas “crioulos”.
A literatura antilhana, esta sobre a qual falamos neste texto, ela é negra de cima a baixo, da esquerda para a direita e ao redor. Se visitarmos a literatura das Antilhas, essa literatura hoje premiadíssima e galardoada, fundadora de mundos e de imaginários, veremos que ela é a reconquista da carne. “Não mais a exploração dos corpos”, ela proclama.
A literatura antilhana, como numa reconfiguração da força e da potência.
O minério negro, como no poema de René Depestre, em seu melhor.
NOTAS
[nota 1]. Prefácio ao livro René Depestre, Rage de vivre: Oeuvres poétiques complètes. Paris: Seghers, 2006. Todas as traduções (entrevistas, poemas e outros) deste texto são de Leo Gonçalves, salvo quando sinalizada outra tradução.
[nota 2]. Do livro Rage de vivre. Tradução minha.
[nota 3] Do Diário de um retorno ao país natal, em tradução de Lilian Pestre de Almeida (São Paulo: Edusp, 2021).