Que importa a morte do pobre, daquele que dorme na praça, da prostituta que não encontra paga,
do viciado que já não recolhe o troco sob o semáforo?
Que importa a morte dos velhos, para o Estado desocupados, que inflam as filas dos atendimentos previdenciários?
Que importa a morte dos acamados, lotando leitos de emergência, curando suas leucemias e suas chagas de tratamentos caros?
Grupos de risco, leio nos noticiários.
Comorbidade associada, indica-se junto aos números das estatísticas.
Subnotificados, claro!
As valas a gente cobre de terra.
A terra apaga a morte do rosto que o jornal não imprimiu e a internet não publicou.
Nem todo RG tem Facebook.
Nem todo RG tem CPF.
Nem todo rosto tem RG.
Faxinal da ignorância, lavrado com esmero.
E se o Banco Central libera algum troco, há de se abrir o comércio, as grandes lojas de departamentos, revendedoras de autos, as funerárias.
Não a quitanda da esquina.
Não o bazar da Dona Maria.
Mas aquela, de enormes gôndolas frias.
Mas aquela, que vende futuros na Bolsa da Paulista.
E se sobrevive a Senhora Zhang Guangfen, de cento e três anos.
Ou a senhora Alma Clara Corsini, de noventa e cinco.
Se acaso sobrevivem.
A gente aplaude, como quem aplaude uma medalha olímpica.
Porque os mortos a gente enterra, e a vida a gente troca na primeira loja de quinquilharias.
(Desterro, 14 de abril de 2020 – em tempos de Covid-19).