A Fundação Nacional do Índio (Funai) resgatou da ditadura militar a ideia de eliminação de indígenas por meio da “heteroidentificação”, palavra de prefixo grego que significa “outro” ou “diferente” – e no contexto da Resolução nº 4, publicada em 22 de janeiro, representa mais um ataque aos povos originários do Brasil, à Constituição Federal e a diversos tratados internacionais, da Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo. A Funai quer novos critérios para identificar etnias.
“Eu sou índio e me autodeclaro índio. Não será a Funai que vai me dizer se sou índio”, assevera Deoclides de Paula, coordenador Kaingang do Conselho Estadual de Povos Indígenas (Cepi), respondendo à determinação que o órgão do governo federal alega ter sido editada “para evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais”.
Os novos critérios exigem comprovações como “origem e ascendência pré-colombiana”, além de “vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro”.
Lideranças e movimentos de defesa dos indígenas veem a medida como uma clara tentiva de excluir o acesso à vacinação prioritária.
MPF – O Ministério Público Federal (MPF) também manifestou-se nesta quinta-feira, 4, “firmemente contra os termos da Resoluc?a?o nº 4” e “recomenda a revogac?a?o”. O MPF acentua que a medida é “infundada” e se torna mais grave no “contexto da crise sanita?ria ocasionada pela pandemia da Covid-19”.
A nota pública foi elaborada pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF). No documento, o colegiado ressalta que a Constituição Federal de 1988 garantiu aos povos indígenas o direito à autodeterminação, o que implica reconhecer sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Dessa forma, “está no plano da autonomia dos povos indígenas a definição, implícita na própria cultura, de critérios de pertencimento ao grupo e, portanto, a capacidade de reconhecer quem são seus membros”, aponta o documento.
Artifício para impedir o acesso à terra
Mas os índios sabem que o principal objetivo é travar especialmente os direitos sobre as terras tradicionais.
“No Rio Grande do Sul somos 33 mil indígenas, em 100 mil hectares de terras, enquanto um único fazendeiro aqui no estado chega a ter sozinho 30 a 40 mil hectares. Há terras indígenas em processos de demarcação há 40 anos, há várias aldeias em processos de demarcação há 20 anos. Muitas. E territórios com 10 anos de luta que os processos nem começaram”, relata Deoclides de Paula.
Uma nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) compara a Resolução nº 4 ao regime da tutela estabelecido pelo antigo Código Civil, que considerava os índios “relativamente incapazes” e que deveriam ser tutelados até que estivessem “integrados à comunhão nacional”. A Apib conclama organizações indígenas e lideranças a estarem alertas para exigir o cancelamento desse ato.
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) também se manifestou em nota, afirmando que “a heteroidentificação não encontra qualquer acolhida seja pela ciência antropológica contemporânea seja pela legislação (nacional e internacional)” e reforça que a “a identidade étnica é única e exclusivamente definida por meio da autoidentificação”.
A ABA ainda ressalta que o dispositivo se soma a tentativas anteriores do órgão de espoliação de territórios indígenas e “às disposições relativas ao plano de vacinação contra a Covid-19, recentemente apresentado pelo Ministério da Saúde, que promove a exclusão justamente destes mesmos indígenas a ter acesso às vacinas”.
A morte por covid-19 avança nas aldeias
Nesta quinta-feira, 4, são 948 índios mortos por coronavírus no Brasil, de 161 povos, com 47.752 contaminados. Os números são acrescidos diariamente pela Apib, por meio de levantamentos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, que não faz atendimento a indígenas que moram em áreas urbanas. Os dados são também repassados por lideranças nas comunidades. E são considerados muito menores do que a realidade.
O Rio Grande do Sul está em 11º lugar, com 19 mortes, entre 24 estados com ocorrências registradas pela Apib. Dos estados do Sul, o RS é superado por Santa Catarina, onde ocorreram 21 mortes. O total de óbitos em SC supera o de Tocantins, com 14, que também faz parte da Amazônia Legal, constituída por 10 estados, sendo nove deles no topo da lista. Entre os povos mais afetados, aparecem 23 Kaingang, povo que vive nos estados da região Sul e também em São Paulo. Os Guarani Mbyá são 12, contando com aldeias localizadas em vários estados, com grande população no Mato Grosso do Sul.
Excluídos do plano de vacinação
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também divulgou nota técnica, ressaltando que, a se basear no novo ato administrativo da Funai, metade da população autodeclarada indígena perderia a identidade. O Cimi cita que o Plano Nacional de Vacinação do governo federal inclui no grupo prioritário 410 mil indígenas de povos “vivendo em terras indígenas”. Segundo o Censo do IBGE de 2010, “há 11 anos, a população era de aproximadamente 900 mil índios”.
No Rio Grande do Sul, pelo menos 2 mil índios vivem à beira de estradas, à espera da demarcação de territórios. Deoclides explica que eles habitam 30 acampamentos na luta pelas terras. Alguns são mantidos há 40 anos, como os Guarani Mbyá que vivem nas margens da BR-290. Os 100 mil hectares das terras que habitam não comportam todos. Cerca de 50% desse território são áreas de preservação ambiental, essenciais para a manutenção de suas tradições culturais, mas não podem ser utilizadas para a produção de alimentos. “O pessoal tem que sair em busca de alimentos. Alguns vão pra cidade, acham serviço, e assim ficam ainda mais vulneráveis”, ressalta a liderança.
DESINDIANIZAÇÃO – A antropóloga Lúcia Helena Rangel, coordenadora de pesquisa do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Cimi desde 1996, relata que a Resolução nº 4 se configura em ameaças que “periodicamente retornam ao cenário da Funai”. Ela cita processos emancipatórios dos anos 1970, em que comunidades se tornariam não índias por falta de estigmas que as caracterizassem. Em processos de “desindianização jurídica” da história do órgão chegou a ser proposta inclusive a análise de sangue para comprovação de etnia.
Um delegado da PF à frente da Funai
Marcelo Augusto Xavier da Silva, presidente da Funai do governo Bolsonaro, é uma figura controversa. Delegado da Polícia Federal, foi nomeado em julho de 2019 por Onyx Lorenzoni, no lugar o general da reserva do Exército, Franklimberg Ribeiro de Freitas, afastado por criticar Bolsonaro que havia colocado o pecuarista e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia, na Secretaria de política fundiária do Ministério da Agricultura.
Sem qualquer vinculação com a questão, Silva foi rejeitado na avaliação psicológica do primeiro concurso que prestou para a PF devido à sua personalidade agressiva e descontrolada. Acabou entrando para a corporação na segunda tentativa, em 2008. Ligado a deputados ruralistas, foi afastado de uma operação de expulsão de invasores de terras indígenas por suspeita de colaborar com os grileiros. Em janeiro de 2019, foi acusado de agressão pelo próprio pai, em um boletim de ocorrências registrado na delegacia Novo São Joaquim, no Mato Grosso.