Por Paulo Pagliosa, Alessandra Fonseca e Paulo Horta.
Dizem os cientistas que o “plano de dominação humana total” já deixou sua marca no planeta. Nosso primeiro impacto ocorreu no Pleistoceno, com o uso do fogo e a extinção da megafauna. Mais recentemente, a invasão dos europeus no novo mundo iniciou a homogeneização da biodiversidade, a globalização da alimentação e o extermínio de milhões de americanos originários. A revolução industrial, desde 1760, chega como o estopim da grande aceleração capitalista sobre o planeta. De lá para cá, camadas de plutônio e outras substâncias radioativas se espalharam sobre a superfície do planeta com a realização de testes de bombas nucleares, desde a década de 40. O plástico e o alumínio vieram com a produção de químicos industriais persistentes, a partir dos anos 50, e hoje estão dentro de nossos corpos. O desenvolvimento do agronegócio modificou ecossistemas inteiros, pela retirada da vegetação, extinção de espécies e a alteração dos ciclos biogeoquímicos. Mas, nenhuma outra ação se compara ao recente aumento de carbono, nitrogênio e fósforo resultantes da combustão de combustíveis fósseis, da entrada de efluentes domésticos e industriais, da agricultura e produção de fertilizantes e da pecuária. Embora esses elementos sejam introduzidos principalmente na atmosfera e no solo, eles são transportados e se acumulam em áreas de transição entre os continentes e o oceano, em lagoas e estuários causando eutrofização e alcalinização/acidificação, poluição e, em escala global, mudanças climáticas.
Em geral, a eutrofização resulta na proliferação de algas, o que, por sua vez, colonizam a superfície das águas, impedindo a luz de chegar até o fundo, causando a deficiência de oxigênio e mortandade de animais. Esse tipo de evento tem acontecido com frequência na Lagoa da Conceição, desde o verão passado, quando rompeu a barragem de evapoinfiltração da Estação de Tratamento de Esgoto local. No pequeno “plano de dominação humana total da cidade”, fazendo um paralelo relativista com o que ocorre na escala temporal e espacial do planeta, esse evento representa o estopim que marca definitivamente uma nova mudança de regime ecológico daquele ecossistema.
Nesse nosso pequeno planeta-lagoa as grandes transformações se iniciaram com a alteração na sua barra. Originalmente, a dinâmica interna das águas e da biodiversidade é regida pelo clima. A variação sazonal era uma característica marcante do sistema. Ora ocorria a entrada de água salgada e recepção de organismos marinhos, quando a barra estava aberta, e ora mudava para o regime de acúmulo de água doce e berçário, quando a barra estava fechada. A mudança de uma lagoa de barra intermitente para uma lagoa de barra fixa ocorreu na década de 80, resultando em uma lagoa cuja barra fica artificialmente e permanentemente aberta. Essa modificação marca a primeira mudança de regime ecológico da lagoa. A permanente entrada de água salgada pelo mar e de água doce pelos rios e pela drenagem pluvial causa a chamada estratificação da coluna d´água, ou seja, a água salgada e mais pesada fica no fundo e a água doce e mais leve fica na superfície. Devido ao sistema de circulação das águas induzidas pelas marés e pelo vento, as duas massas de água de densidades diferentes quase não se misturam. Com a atual eutrofização, mesmo sendo um ambiente bastante raso, a luz geralmente não chega até o fundo da lagoa devido ao excesso de material em suspensão e às florações das algas. Isso faz com que na água salgada de fundo não ocorra o desenvolvimento dos produtores primários. Sem esses organismos o oxigênio logo acaba nas áreas onde se concentra matéria orgânica, junto ao fundo lodoso, com elevada atividade microbiana que consome o pouco oxigênio que chega. O vento sul “empilha” a água costeira dentro da lagoa, a estratificação se intensifica potencializando a formação das zonas com baixas concentrações de Oxigênio, as ditas zonas mortas. Essas zonas recebem esse nome porque qualquer ser que respire, como peixe, caranguejo e berbigão, que estiver ou passar por essa área certamente não sobreviverá.
Como dito anteriormente, recentemente ocorreu uma segunda mudança de regime ecológico na lagoa, que foi marcada por um intenso processo de eutrofização agravado pelo deságue de uma massiva e repentina quantidade de esgoto. Mas, tudo pode piorar. A prefeitura e a Associação Comercial e Industrial de Florianópolis estão com planos de dragar o canal da Barra da Lagoa usando como slogan a recuperação ambiental do sistema. As eventuais obras de dragagem podem produzir impactos diretos sobre a fauna e flora que vivem no referido canal. Nestas áreas de transição entre a lagoa e o mar observamos remanescentes de manguezais e bancos de algas e gramas marinhas que, entre outras funções ambientais estratégicas, contribuem para a filtragem da água e absorção de nutrientes que atenuam o processo de eutrofização. A pretendida abertura do canal trará mais água salgada para a região interna da lagoa, ou seja, ao contrário do que se pretende, tenderá a expandir a atual ou criar novas zonas mortas na lagoa. Essa obra de engenharia, se realizada, ficará na história como o grande marco que sela a mudança definitiva da Lagoa da Conceição que ainda vive, ao menos, no nosso imaginário.
Na década de 80, esperava-se que a abertura do canal da barra fosse trazer maior circulação na água da Lagoa da Conceição, mas trouxe a estagnação da água no fundo e a formação da zona morta. Hoje, com a tecnologia e o conhecimento que adquirimos, é possível fazer um estudo detalhado da circulação de água e da dinâmica de areia e lama dentro da laguna. Essa modelagem, se bem feita, pode indicar (com boa probabilidade) se o aprofundamento do canal vai melhorar a circulação no fundo da lagoa, ou não. Além disso, uma dragagem remobiliza sedimento e diminui a luz na coluna da água. A falta de luz diminui a capacidade da lagoa em produzir oxigênio, além de aumentar o consumo desse gás. Ou seja, mais animais poderão morrer. Vale lembrar que uma espécie de alga marinha, a Fibrocapsa japonica, entrou na lagoa e se beneficiou das águas calmas e ricas em nutrientes. Essa espécie é nociva aos animais que vivem nas águas da laguna, matando-os por sufocamento e intoxicação. A abertura da barra poderá aumentar a entrada de organismos desse tipo, incrementando o problema.
Mas, sigamos em frente. Não olhe para a lagoa!
Olhe para o horizonte de oportunidades de empreender que estão surgindo. Se os restaurantes locais não podem mais servir os pescados da lagoa, vamos construir barcos mais potentes e pescar mais longe. Se a comunidade tradicional não sobrevive da sua simbiose com a lagoa, poderão vender seu “pedacinho de terra, perdido no mar” e morar em condomínios habitacionais no pé da serra e se beneficiar de novos ares. Se os turistas não podem mais se banhar nas águas vamos construir o shopping center da lagoa. Quem sabe um parque temático com tecnologia da Universal Studios utilizando braços robóticos e telas 3D fazendo um tour por antigos cenários locais, com mergulhos virtuais em uma Lagoa da Conceição que um dia existiu. Não poderão faltar equipamentos coloridos, que se conectam ao celular e tocam músicas, de última geração, feitos em fibra de carbono e nióbio, destinados a tampar o nariz de moradores e turistas para que estes possam correr e se exercitar nas passarelas pavimentadas ao longo da laguna apodrecida. E, finalmente, o tão sonhado condomínio aquático poderá ser construído no Canal da Barra, agora, quem sabe, com 16 andares?!
*Professores das Oceanografia, Geografia e Ecologia da UFSC