Nada há de comum entre a lamúria do jogador milionário e o desamparo de mãe pobre da Maré. O artigo é de Angela Alonso, professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em artigo publicado por Folha de S. Paulo
É Copa do Mundo. Os símbolos nacionais deveriam unir a nação, mas o que agrega os brasileiros é menos que aquilo que os aparta.
Por isso, desde a Independência, nossos ícones coletivos vêm da natureza e da cultura, enquanto ficam entre parêntesis os conflitos na política e as hierarquias na sociedade. Nos vemos irmanados por tropicais e festivos e nos dividimos em todo o resto.
Para além dessa representação edulcorada, a nação é sempre objeto de disputa política. Na Copa de 70, o governo Médici pegou carona no sucesso do esquadrão canarinho, enquanto os críticos de seu ufanismo sofriam nos calabouços.
Adiante, o movimento pela redemocratização brigou pelos símbolos nacionais. Na campanha por eleições diretas, estava “todo mundo na rua de blusa amarela”, conforme o verso de Chico Buarque, inclusive o futebol, na versão Democracia Corintiana de Sócrates.
“Todo mundo” é exagero poético, porque nunca sumiram os advogados da nação como regime de lei e ordem.
Em 1992, o presidente acusado de corrupção os conclamou a colorir a rua de verde e amarelo. Não foram. Nem a esquerda chamou para si os símbolos nacionais, preferindo envergar o preto no Fora Collor.
Na disputa pela brasilidade, a versão liberal-autoritária levou a melhor nas Copasrecentes. Na era do esporte empresarial, a dupla Felipão-Dunga lançou novo lema nacional: menos criatividade, mais eficiência; menos tolerância, mais porrada.
Projetos de refundação da nação competem acirradamente desde que o PT chegou ao governo. Uns propõem remodelar a hierarquia social via combate à desigualdade, outros, regenerar as instituições políticas atacando a corrupção. O Bolsa Família conseguiu mais prêmios que a seleção, mas quem ganhou a opinião pública foi a turma da limpeza ética, que capturou os símbolos nacionais.
Enrolada na bandeira, vaiou a presidente na Copa passada para, em seguida, engrossar a campanha por seu impeachment. A única unanimidade nacional hoje é a desaprovação a Temer.
Quando o time de Tite joga, os brasileiros não torcem pela mesma nação. São duas torcidas, porque há duas brasilidades em conflito.
Uma é a dos que apostam na solidariedade e anseiam por igualdade, justiça, direitos, como os que foram às ruas nas Diretas-Já. E há os que valorizam o jeitinho, a malemolência, a malandragem, um individualismo imortalizado na lei de Gerson, o jogador que exortava a levar vantagem em tudo.
Essas representações da nação estão no cerne de três episódios desta Copa.
Um é o da “boceta rosa”. Seus protagonistas são homens brancos de alta renda, o tipo social que defende as leis de mercado e pragueja contra a corrupção.
Vestidos de amarelo, exprimiram a face malandra do Brasil. Sua vítima foi uma mulher, mas podiam ser negros ou pobres, desde que rebaixados, destituídos de dignidade.
A “brincadeira” revela o apego profundo à hierarquia social pelos habitantes do andar de cima, que se aferram com unhas, dentes e celulares à prerrogativa de fazerem o que lhes apeteça com os de baixo.
Outra cena é a do “menino Ney”, catimbento, manhoso, tentando levar em campo a vantagem que leva na vida, ao fugir dos impostos.
Neymar não usa o futebol para falar de democracia, como fez Sócrates. Segue a lei de Gerson. Sua renda astronômica o situa anos-luz à frente do brasileiro médio, uma desigualdade que jamais lhe tira o sono. Sua fidelidade é a si mesmo e ao evangelho do individualismo.
A cena derradeira é a do menino de fato. A camisa de Marcos Vinícius não era a da seleção, mas a da escola.
Sua mãe não leva vantagem em nada, não ganha milhões, nunca sonhou em ir à Rússia postar vídeos engraçadinhos na internet. Reza a outro Deus, o dos humildes. Mas representa a maioria dos brasileiros, que batalha para ganhar a vida enquanto purga toda sorte de injustiças no cotidiano.
A brasilidade está nas três cenas, mas em mundos apartados. Não estamos todos juntos como um só coração, nem parece que todo o Brasil deu a mão. Nada há de comum entre o riso dos patriotas machistas na Rússia, a lamúria do jogador milionário e o desamparo de quem, mais que pobre mãe, é mãe pobre, obrigada a esperar uma hora pela ambulância que não salvou seu filho.
A nação una não existe. Existem os brasileiros, divididos entre o choro do menino Ney e o sangue do menino Marcos Vinícius. Quando acabar mais esta Copa, com taça ou sem ela, precisaremos responder nas urnas qual dessas camisas representa melhor o país.