Na rotação da luta pela terra

    DSC00046Por Elaine Tavares.

    Ele aparece vez em quando. Baixinho, óculos de grau e riso largo. Passo rápido, camisa bem passada e a indefectível maleta preta. Dentro dela, o sonho da terra repartida. Livros, papéis, panfletos e toda a sorte de escritos que tratam da Reforma Agrária. O nome, estranho, ninguém conhece. Dizer Agnor não provoca reação. Mas, o apelido, é sempre seguido de um riso doce, de reconhecimento seguro. Parafuso! O homem do MST.
    Agnor Bicalho Vieira, 68 anos, nasceu no interior do Espírito Santo, na pequena e rural Muniz Freire. De pai português e mãe cabocla, é o oitavo filho dos 13 que vieram ao mundo. Cedo conheceu o trabalho. Desde os seis anos já estava na lida, roçando terra arrendada. Queria estudar, mas nunca passou da terceira série, pois os pais migravam muito, na busca de serviço. Aprendeu a ler sozinho, na marra, tendo como cartilha as escrituras sagradas. “Naqueles dias eu era oprimido pelo credo do ‘Jesus salva’. Tinha que ajoelhar no milho, era obrigado a crer. Sabia de cor a doutrina do catecismo”.
    O menino Agnor, oprimido na fé, acabou sendo um fervoroso pregador. “Eu reproduzia a opressão. Era uma coisa louca”. E foi nesse mundo da igreja que conheceu aquela que viria ser o amor de sua vida, Maria Helena. Numa das andanças pelas fazendas do interior do Paraná, apaixonou-se pela bela catequista. Unidos na fé e no amor, casaram. Queriam andar pelo mundo salvando almas. Era o ano de 1969, a ditadura comia solta, mas eles ainda estavam cegos.
    O casamento tirou Agnor do campo. Como o pai da noiva não queria a união, eles migraram para São Paulo. Lá, a vida foi dura demais. Vieram os filhos e também a miséria. Agnor trabalhou na construção civil. Morava nos alojamentos insalubres enquanto a mulher ficava na cidade, num cômodo alugado. Então veio o desemprego, o despejo, a dor. Os filhos tinham fome. “Foi um tempo difícil, mas de muito aprendizado. Eu era peão, vivendo no meio do povo e isso me ajudou a entender melhor a vida do meu país”.
    Em 1973 veio para Santa Catarina, onde já viviam alguns de seus irmãos. Desde então, a vida mudaria para sempre. Morava em Araquari quando conheceu um desses “padres vermelhos”, que falavam de um outro Jesus e organizavam as Comunidades Eclesiais de Base. Pequenos encontros nas capelinhas que diziam de um deus amigo, irmão, que incitava ao povo a construir aqui, na terra, o paraíso, de terra repartida e vida plena. Foi ali, também, que ganhou o apelido, Parafuso, que o acompanha até hoje. “Meu irmão era conhecido como Prego, eu era menor que ele, então fiquei Parafuso”. Naqueles dias, ele ainda não fazia a ligação entre a teologia da libertação e a política. Mas, meio sem saber, de pregador ortodoxo da palavra de deus, passou a organizador de gentes, um trabalho político coletivo que desembocaria na criação dos mais importantes movimentos populares do país.
    Em Caçador, no ano de 76, é criada a Comissão Pastoral da Terra e lá está o Parafuso, na coordenação. Depois, em 78, em João Pessoa, num encontro nacional, ele, pela primeira vez, ouve falar de Karl Marx. “Tivemos uma conversa com o Leonardo Boff e o que ele disse me levou a outras leituras. Vi que a classe dominante usa a bíblia para oprimir, mas que, lida e comparada com os escritos de Marx, a palavra de deus pode ser revolucionária. Isso iluminou a minha fé, me deu outro rumo. Devo isso ao Boff”.
    É na CPT que Parafuso aprende que, luta mesmo, só no meio do povo. Não é à-toa que, nas reuniões e assembléias ele insistia em discutir a organização dos trabalhadores. “Eu lembro que a gente participava da luta contra Tucuruí e Itaipu e outras questões ligadas a terra. E foi numa tarde de discussão, embaixo de uma mangueira, que nasceu a idéia do MST. Com a construção das barragens, mais de 30 mil pessoas poderiam perder suas terras, outras tantas morreriam. A gente queria que a igreja interferisse, denunciasse ao país. Deu um bafafá, os bispos não queriam fazer a denúncia. Chamei todos de covardes, pois só Dom Pedro Casaldáliga e Dom José Gomes aprovavam a idéia. Quase apanhei”.
    Naquela noite de confronto com a cúpula da CPT, em 1981, um grupo de 40 pessoas decidiu ficar até altas horas discutindo como articular uma luta poderosa pela terra. Entre eles estavam Josimo Tavares e João Pedro Stédile. Fizeram listas de endereços, pensaram estratégias e poucos dias depois iniciavam a caminhada para a formação de um movimento. Na volta para casa, Parafuso, junto com José Fritsch, já tinha como missão articular os cinco estados do sul. Um trabalho de organização que durou dois anos.
    Parafuso conheceu a luta dos despejados de Nonoai, dos acampados da fazenda Burro Branco e dos camponeses da Encruzilhada Natalino. Todas eram experiências de luta do povo sem-terra. Foi a partir daí que se pensou na estratégia de montar acampamentos com as famílias que não tinham terra. E então, em 1984, no mês de janeiro, em Cascavel, numa reunião que juntou perto de 80 pessoas, representando 12 estados da federação, nasce o Movimento dos Sem-Terra. A primeira ocupação organizada por eles foi a da fazenda Santa Idalina, no Mato Grosso, envolvendo mais de mil famílias de “brasiguaios” (moradores na fronteira com o Paraguai). “Naqueles dias, a gente era muito transparente, falava das ocupações nos botecos, nas igrejas, então, quando a gente chegava, já estava lá a polícia”.
    Mas, a prática foi qualificando. Onde era detectado o erro, havia a discussão, o estudo. A duras penas foram evitadas as divisões, as tendências, o caciquismo, tudo para que o movimento crescesse de forma unitária, coesa. Parafuso esteve sempre ali, na luta. Acredita que o Brasil, a América Latina, têm um poder imenso na formação de um outro tempo. “No dia em que os campesinos disserem não ao império ianque, nós botamos fogo na América”.
    Hoje ele olha para a caminhada que fez, desde quando era um pregador da palavra de deus, ortodoxo e fanático, até o homem que tem o MST marcado na alma, e se emociona. “Eu me construí na luta. Sofri muito envolvido com o partido, com o trabalho, botando meus filhos para trabalhar na roça ainda crianças, deixei minha família muito só. Mas, hoje, sei que valeu a pena. Tenho filhos maravilhosos, todos envolvidos na luta, e tenho minha mulher, companheira, firme do meu lado”.
    Parafuso, além do trabalho no MST, também foi um dos fundadores do PT e chegou a concorrer a deputado estadual e federal. “Não me elegi e creio que foi bom. Talvez eu tivesse sido cooptado pelo parlamento. Hoje desacreditei da luta via parlamento. Foi melhor ter ficado 100% MST. Foi como fazer mestrado e doutorado junto dos trabalhadores”.
    O homem do MST é um homem duro. Diz ele que nunca havia chorado na vida. Apenas uma vez isso aconteceu. Quando foi homenageado pelo MST e Jaime Amorim falou de sua mulher, Maria Helena. “Ele disse: – Parafuso conciliou a luta e a família. Mas a responsável é a mulher que ele tem. Foi aí que chorei. Porque era verdade. Nas minhas andanças, eu chegava na minha casa, com a mala cheia de roupa suja, e já tinha outra, com roupas limpas, em cima da cama, pronta para eu ir adiante. Minha mulher é tudo pra mim”.
    A família de Parafuso é o seu maior tesouro. Um filho é dirigente do MST, uma é médica em Cuba, outros dois são músicos, outro trabalha no campo e uma filha é professora. Além disso, tem uma garotinha de 16 anos, adotada. “Todos estão na luta”, diz, com orgulho.
    O dirigente do MST segue seu caminho, ligeiro, seguro. Quer a vida digna e não vai descansar enquanto não vier. “Não somos nós que rompemos a ordem. Quem faz isso são os dominantes quando não dão saúde, educação, quando impõem a fome. O sistema capitalista é uma planta de ciclo vencido. Nós, do MST, plantamos uma planta nova, que vai vingar…”

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