Museu das Favelas ressignifica palácio aristocrático

Criado em 2022, ele afirma: a desigualdade se forja, também, pela segregação dos territórios. Ocupar o centro de SP é, portanto, criar um conector de multiplicidades e memórias. E mostrar que não há futuro que não passe pelas periferias.

Foto: UNESP.

Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes.

Quando o Corinthians foi campeão mundial em 2012, a torcida estendeu uma faixa com os dizeres: “Favela is here”, enaltecendo um orgulho de ser de quebrada ao invés de se sentir menosprezada por conta do seu CEP. Dez anos antes, Cafu, capitão da Seleção Brasileira de Futebol exibiu sua camisa com a inscrição “100% Jardim Irene” ao levantar a taça do pentacampeonato. Inspirado em afirmações de pertencimento desse tipo que foi criado o Museus das Favelas. Inaugurado em novembro de 2022, o Museu ocupa um casarão aristocrático erguido no final do século XIX situado na Avenida Rio Branco no bairro dos Campos Elísios, região central de São Paulo.

Isso mesmo. Se é para ser um museu das favelas, que seja num palácio. Foi essa a percepção que teve Celso Ataíde e os dirigentes da CUFA – Central Única das Favelas ao negociar a cessão do local para nele ser o espaço cultural museológico. O então governador João Dória acolheu a proposição e viabilizou a instalação do equipamento que é da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo e está sob a gestão do IDG – Instituto de Desenvolvimento e Gestão, uma OS situada no Rio de Janeiro, também responsável pela gestão do Museu do Amanhã, atualmente o museu mais frequentado do Brasil.

O imóvel já foi sede do governo do Estado (1915 a 1967) e tem sido alvo de interesse do atual governador. O Museu, porém, pretende se firmar no local. Para isso, tem se esforçado em fazer uma programação intensa e atraente ao mesmo tempo em que prepara sua exposição de longa duração que deve ser inaugurada em meados de 2024. A fim de criar um ambiente de afirmação e acolhida, o Museu das Favelas produziu um manifesto de alto vigor literário. Resolvi disseca-lo e compartilhar minha leitura do texto nesse artigo.

Não há futuro que não passe pelas favelas

O manifesto do Museu das Favelas que pode ser acessado por meio de um folder impresso e também por vídeo é um texto sem título elaborado em primeira pessoa. O recurso sintático acentua a mensagem de que o Museu é sujeito. Um sujeito em construção com duas dimensões fundamentais: a memória e a pluralidade. Não por acaso, são as expressões mais citadas no texto, aparecendo nos três primeiros parágrafos onde está condensada a argumentação do anúncio.

Dessa forma, o texto, com o tom enfático peculiar aos manifestos, declara o que a instituição quer oferecer aos que com ela vêm interagir: uma memória coletiva e viva construída nas lutas do povo das favelas e uma pluralidade que aponta para o futuro: “não existem futuros possíveis que não passem pelas favelas”.

Essa frase, que poderia ser o título do Manifesto, é destacada na comunicação visual externa do Museu, porém, com uma sutil alteração: “novos caminhos possíveis para a mudança precisam passar pelas favelas”. De uma forma ou de outra, ambas se expressam como uma convocação que demarca o propósito político da instituição, algo como o verso do poeta Marco Pezão: “nóis é ponte e atravessa qualquer rio” que por um tempo foi um dos bordões do Sarau da Cooperifa. Uma afirmação assertiva que provoca identificação e engajamento nos que nela se reconhecem e uma inquietação naqueles que não se alinham a esse chamado.

É notável que o texto opte pelo termo pluralidade e não diversidade que é uma expressão que soa como um fim em si mesmo de tanto que é usada, algo que acontece com termos como liberdade ou coletividade. Cabe notar também que o termo pluralidade tem variações no texto e nunca aparece isoladamente, está sempre apoiada por substantivos e adjetivos: “construção dinâmica e plural”; “múltiplas experiências; múltiplas histórias”; “muitas vozes”; “conector da multiplicidade”; “diversos públicos”. Chega a ser exaustivo o uso do recurso o que denota, talvez, um esforço para afirmar algo que não está explícito: que favela, afinal, é essa que o Museu quer mostrar.

Chama a atenção também o fato de não haver citações a negros e negras, tampouco indígenas. Nordestinos também não aparecem no texto. Estariam todos e todas contemplados na ideia de “pluralidade”? Para um Museu que se apresenta como sujeito, “pluralidade” parece um tanto retórico. Nesse sentido, o vídeo do Manifesto procura dar uma solução ao apresentar os corpos que expressam a referida multiplicidade: todos eles pretos; diversos, porém, unidos pela negritude. A favela então é preta, demonstra o vídeo.

Ah, mas nem todo mundo na favela é negro. Sim. Segundo as estatísticas, há um terço que não é. Mas, são pretos de tão pobres, disse o escritor Osvaldo Faustino parafraseando Caetano e Gil. É uma boa questão para ser explorada e, talvez, não resolvida, na exposição de longa duração que está em processo de concepção. Pode ficar como um fator de tensionamento conceitual, uma disputa de sentido que faz bem para esse momento em que o Museu está construindo sua identidade. Dessa forma é instigante o vídeo ao provocar o Manifesto, mostrando o que o texto não quis assumir.

Favela é uma árvore!

Nesse mesmo diapasão, cabe destacar como a própria palavra favela aparece no texto. São duas citações apenas, ambas de modo genérico e descolado da dimensão local. Ao contrário, favela aparece com uma abstração estatística: “somos mais de 13 mil favelas no Brasil” (terceiro parágrafo). Aliás, na citação anterior o termo também vem acompanhado da referência ao país: “(…) favelas fortalecendo o Brasil”. Tal recurso narrativo denota um afastamento da dimensão do território que é justamente o que dá sentido real e subjetivo ao termo favela. Porém, assim como no vídeo, um outro recurso de comunicação visual tenta resolver essa questão.

Nos banners afixados nas janelas laterais do Palácio há um que explica a origem da palavra favela que vem de uma árvore conhecida como faveleira, cuja descrição tem uma narrativa poética: “uma árvore abundante na região da caatinga que sobrevive em situação de escassez, com flores e frutos nutritivos, mas, também, espinhos”. Não é uma bela definição? “Favela é árvore”! completa o texto. Trata-se de mais um elemento que pode ser explorado na exposição de longa: os imaginários poéticos construídos em torno do termo favela, algo que as estatísticas e o vocabulário urbanístico não dão conta. E as favelas têm nomes muito poéticos: Paraisópolis, Heliópolis, Vila das Belezas, Rocinha, Aglomerado da Serra, Sol Nascente.

Arte é ocupar!

O Manifesto do Museu das Favelas, além de enfatizar o campo temático da memória e da pluralidade, também traz no seu bojo um conceito: “conector de multiplicidade”, um termo que pode ser entendido como “múltipla cidade” e assim afirmar a favela como parte da cidade e não um território apartado. Por sinal, esse apelo citadino está contido em nomes de favelas ou regiões periféricas como Cidade de Deus, Cidade Tiradentes, ou Heliópolis e Paraisópolis como já foi citado. Talvez seja um grito de inclusão: somos cidade também! Desse modo, o direito à cidade, cunhado por Henri Lefebvre como uma ideia baseada no direito à criação e plena fruição do espaço social1, pode ser apropriada por quem foi objeto da reflexão do intelectual francês, os trabalhadores das periferias.

Cabe destacar que a definição de conector é precedida da formulação: “ponto de encontro de territórios” que completa bem o conceito. Trata-se de uma elaboração tão pretenciosa quanto necessária. O Museu das Favelas deveria assumir essa ideia como missão. Nesse sentido, uma estratégia promissora é o da ocupação. Ocupar os jardins com atividades educativas, encontros de dançarinos, feiras, festas e grandes eventos (formação de público) e a parte interna com experimentação (produção artística), ativações e debates. Emicida nos ensinou: “arte é ocupar”! Sendo ponto de encontro, então deve estar aberto e preparado para receber o povo das favelas, periferias e do entorno, onde tem a Favela do Moinho (mais um nome poético) que se encontra a cerca de 500 metros de sua sede.

Um palácio ressignificado

A definição de Museu do ICOM – Conselho Internacional de Museus, exposta em um dos banners afixados na parte externa, diz que se trata de uma “Instituição permanente que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial”. O Museu das Favelas atua mais com o patrimônio imaterial do que o material. Creio que seu projeto não é ser um museu de acervo, ainda que possa ter alguma coleção. O manifesto corrobora essa inclinação para o imaterial quando fala das “múltiplas histórias” que, contadas, formam a sua própria história. Tal formulação remete à filosofia africana do Ubuntu: eu sou porque nós somos. O Museu poderia assumir esse provérbio como visão institucional incorporando-o à comunicação para expressar a coletividade que defende. Importante ressaltar que no texto de apresentação da Exposição Visão Periférica que está em cartaz atualmentehá uma citação do significado do Ubuntu.

Para contar essa história coletiva o Museu das Favelas se vale de um palácio na região central da cidade de São Paulo, cuja concessão pelo poder público deve ser entendida como um gesto de reparação, uma vez que foram os trabalhadores que ergueram suas paredes para o regozijo da elite paulistana. Foi em decorrência da desigualdade na delimitação espacial da cidade que surgiram as favelas e as periferias como refúgio dos mais pobres. Subverter esse passado perverso se apropriando, mesmo que simbolicamente, de um monumento que expõe de modo tão eloquente a desigualdade é um vigoroso ato político, pois a injustiça persiste cada vez mais nefasta na sociedade contemporânea.

Geraldo Filme cantava que a “favela virou poesia na boca de quem nunca soube o que é sofrer”. Hoje o Museu das Favelas ocupa um lugar no qual viveram pessoas que fizeram a favela sofrer. Por isso é preciso ocupar esse espaço com a cultura produzida nas quebradas para enfim dar um novo significado ao palácio burguês e afirmar: “Aqui é favela”!


1 LEFEBVRE, Henri, Direito à Cidade, Centauro Editora, 2008, São Paulo. Edição original, dat do ano de 1968, Paris.

 

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