Por Giovana Romano Sanchez.
Quando alunos do ensino médio das escolas públicas brasileiras leem sobre o Iluminismo no livro “Por Dentro da História”, de Pedro Santiago, Célia Cerqueira e Maria Aparecida Pontes (ed. Escala Educacional), eles aprendem sobre a vida, a obra e a importância de homens como Isaac Newton, Immanuel Kant, Voltaire e Charles de Montesquieu. Nenhuma mulher é citada nas páginas, embora a historiografia tenha amplo conhecimento de várias pensadoras influentes na época, como Mary Wollstonecraft, Olympe de Gouges e Marie Madeleine Jodin. O mesmo acontece em outros trechos, como o que aborda o cangaço, no nordeste brasileiro. Os autores citam Antônio Silvino e Lampião como “principais cangaceiros”, mas não há menção a Maria Bonita e Dadá, que também protagonizaram aquele evento histórico.
A omissão não é exclusividade do livro citado. A maioria dos textos didáticos brasileiros costuma privilegiar uma história masculina, branca e eurocêntrica. E esse cenário tampouco é novo. Há décadas, pesquisadores e ativistas vêm denunciando o machismo e o racismo nos livros escolares. Foi por causa dessas denúncias que em 1993 o Estado brasileiro passou a avaliar as obras compradas e distribuídas nas escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Foi também graças à pressão de ativistas negros – mulheres, principalmente – na Conferência de Durban, em 2001, que o Brasil se comprometeu a implementar políticas de combate ao racismo. Entre as medidas tomadas pelo Estado, estão as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que obrigam o ensino das histórias e culturas africana, afro-brasileira e indígena em todas as escolas do país.
Ao lado dessas leis, a avaliação de livros contribuiu significativamente para alterar o conteúdo das obras na última década. Mas pesquisas recentes mostram que essas mudanças não foram profundas. Embora quase não existam mais casos de machismo e racismo explícitos nos materiais escolares atuais, a presença de mulheres individualizadas nas narrativas históricas, principalmente mulheres negras e indígenas, continua escassa.
Um exemplo é a coleção “História, Sociedade e Cidadania”, de Alfredo Boulos Jr. (FTD), a mais distribuída de história pelo PNLD de 2015 para o ensino médio público. Nos três livros que compõem a obra, 789 dos 859 personagens mencionados são homens e 70 são mulheres – 91,8% e 8,2%, respectivamente. As mulheres aparecem muito mais nos rodapés e caixas laterais de textos, ou seja, fora do eixo central da narrativa. Elas também são proporcionalmente menos nomeadas do que os homens e menos propensas a serem sujeitos de ações na história.
Estes são alguns dos resultados da pesquisa realizada por esta repórter para a dissertação de mestrado “A Ladainha do Homem Branco: Indústria de Livros Didáticos no Brasil e a Reprodução de Velhos Cânones”. A Gênero e Número traz com exclusividade os achados do estudo, defendido em maio de 2017 na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
A análise do conteúdo da coleção revelou que as mulheres são mais citadas como membros de família (“mulher de fulano”, “irmã de ciclano”) do que os homens. Para 75% das mulheres que são mencionadas em função de seu parentesco com um homem, essa é a única forma em que elas aparecem nos livros – muito mais do que os 21,6% dos homens na mesma situação.
De todos os personagens com raça definida, 83,7% são brancos e 13% são negros – indígenas e asiáticos são pouco mais de 1% cada. Dentre os homens, 84,7% são brancos, 12,3% são negros e asiáticos e indígenas são pouco mais de 1% cada. Entre as mulheres com raça ou etnia definida, 72,3% são brancas, 21,3% são negras e 4,3% são asiáticas. Apenas uma mulher indígena é nomeada em quase 900 páginas – 2,1%.
Embora raça e etnia sejam explicitamente mencionadas em apenas 13 personagens, nenhum deles é branco. Quando aborda, por exemplo, o ocorrido em Canudos, o autor diz: “O arraial de Canudos foi arrasado. No dia 5 de outubro havia apenas quatro sertanejos vivos – um velho, um jovem, um caboclo e um negro – que, sem julgamento, foram mortos”. Ao identificar racialmente apenas o caboclo e o negro, o autor estabelece a branquitude como norma, deixando implícito que branco é o “padrão”.
Ao observar a profissão ou atividade de quem aparece no texto, é possível ver que a história narrada privilegia os tradicionais espaços de poder, com 31% dos personagens em profissões de liderança política (presidentes, reis, primeiros-ministros, imperadores e ditadores), 15,6% no espectro político (políticos e servidores públicos) e 7,6% nas forças armadas.
Outra tendência que chama atenção na coleção é a coletivização das narrativas de grupos não-europeus e não-brancos. Não é, por exemplo, que o passado do continente africano ou a história da abolição da escravidão no Brasil estejam ausentes do texto. Mas, enquanto nas duas páginas que abordam a revolução industrial inglesa os alunos são introduzidos a nomes completos e profissão de nove homens brancos que contribuíram para o desenvolvimento da máquina a vapor, nas únicas 30 páginas que tratam dos indígenas brasileiros o escrivão português Pero Vaz de Caminha é o único personagem apresentado com nome e sobrenome.
Os livros não trazem nenhuma referência à sexualidade dos personagens e ignoram completamente a história do movimento LGBTQI+.
A editora FTD e o autor Alfredo Boulos Jr foram contatados pela Gênero e Número para comentar os achados do estudo, mas não se pronunciaram sobre o tema até o fechamento desta reportagem.
Por que isso ainda acontece?
Há vários fatores que contribuem para a manutenção deste tipo de narrativa nos livros escolares brasileiros. Um deles está relacionado ao fato de que o livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria – e, como tal, está inserida na lógica de mercado das editoras. Segundo a Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, em 2016 os livros didáticos compuseram 48,4% do mercado editorial do país, e as vendas para o governo representaram 26,5% do faturamento total do setor. Em um mercado que lucra muito com a produção de didáticos, mudar uma coleção é um custo que precisa ser bem justificado para valer a pena.
Se com poucas alterações a cada ano é possível ter um livro aprovado pelo Estado e vendido em grandes quantidades, qual é o incentivo para se investir em uma reformulação completa das obras? Em um contexto de constante instabilidade econômica como o brasileiro, em que o Estado é o cliente fiel que garante boa parte dos lucros da editora, a resposta é: pouco ou nenhum. “Quem gera a demanda é o Estado. As mudanças que aconteceram em poucas coleções são fruto dos movimentos sociais”, avalia Ynaê Lopes dos Santos, doutora em História Social pela USP (Universidade de São Paulo) e professora da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.
O edital do PNLD exige que os livros estejam em conformidade com as leis do país – entre elas a lei 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. Também exige que as obras sigam preceitos éticos, sem “veicular estereótipos e preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, religioso, de condição de deficiência, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos humanos.”
Apesar de banir discriminações, não há no edital uma categoria eliminatória que obrigue o livro a fazer uma narrativa balanceada, por exemplo, entre personagens homens e mulheres. “Se o Estado não fizer o mínimo de intervenção ou o mínimo de exigência em relação a isso, que até de certa maneira é feita, pelo PNLD, mas acho que precisa ser ainda mais rigoroso, essas mudanças não vão ser implementadas de maneira tão estrutural como precisam ser”, acredita Santos.
Outro fator que precisa ser considerado quando se analisa a perpetuação de uma narrativa branca e masculina da história é o racismo e o machismo, estruturais na sociedade brasileira. É sobre essa base que todo o material é selecionado, escrito, editado, avaliado, escolhido e usado em sala de aula. “Mesmo que a gente tenha as leis e pessoas dispostas a construir novos livros didáticos, a gente ainda tem uma estrutura racista. Então quando você olha o currículo mínimo de história, você tem isso sendo propagado”, explica Claudielle Pavão, mestra em História Social pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e professora de História da rede municipal do Rio de Janeiro.
A jornalista e escritora Bianca Santana, autora de “Quando me descobri negra” (ed. SESI-SP), ressalta que “o livro didático, de alguma forma, reproduz os valores dessa sociedade, ao mesmo tempo que ele forma a partir desses valores”. “Então essa quantidade de mulheres negras e negros é um reflexo dos lugares que a gente ocupa e do prestígio que a gente não tem. Do quanto a nossa produção é invisibilizada na maior parte dos espaços, isso acaba aparecendo também nos livros didáticos”, diz ela.
Para Juliana Serzedello, mestra em História Social pela USP e professora do Instituto Federal de São Paulo, as discrepâncias raciais e de gênero na representação dos personagens da coleção “História, Sociedade e Cidadania” também refletem “a elitização da produção historiográfica no Brasil”. “São homens brancos que monopolizam a produção do conhecimento histórico, são eles quem definem as linhas de pesquisa, a distribuição de recursos e a escolha do material que será acessado nas escolas”, avalia a professora.
A narrativa excludente desses livros, segundo Santana, ajuda a disseminar a falsa ideia de que o saber branco é o único saber válido. “Quando essa narrativa não apresenta pessoas negras como produtoras de conhecimento, obviamente a gente reforça o estereótipo de que quem produz o saber válido é o homem branco, de que as mulheres só podem estar a serviço – as mulheres negras especialmente”, explica a escritora.
Por trazerem uma versão referendada do passado, os livros escolares contribuem para construir uma narrativa “oficial” da história. E isso impacta a forma com que as novas gerações percebem o mundo. “Se a história narrada nas escolas coloca apenas homens brancos e letrados como condutores do processo histórico, teremos (e temos) gerações de brasileiros e brasileiras que não se sentem parte da história”, diz Serzedello. A solução, segundo ela, passa pela ocupação de espaços na produção de conteúdo histórico. “Penso que a mudança desse quadro só será efetiva quando mulheres negras e indígenas puderem trazer suas narrativas para os espaços de produção de conhecimento”. Assim, “temos a oportunidade de formar pessoas que se sentem parte atuante do processo histórico, não somente espectadores.”