Mulheres que existem e resistem contam suas trajetórias na luta antirracista nas Américas

Ativistas de diferentes países destacam a importância da data e a capacidade de organização coletiva das mulheres negras

Coletivo que faz a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo tem como pilares a formação, o acolhimento e a incidência política. – Agência Brasil

Por Fernanda Paixão.

As marcas do passado e da diáspora persistem em forma de união e reconhecimento mútuo na forma que as mulheres negras têm de construir, articular e lutar. Por isso, afirmam: “Nossos passos vêm de longe”. Os saberes ancestrais acompanham o caminhar de mulheres afro ainda que em diferentes países, com realidades e prioridades também distintas.

Há 29 anos, cerca de 400 mulheres afrodescendentes se reuniram na República Dominicana para debater sobre suas demandas políticas e construir pontes para que fosse possível impulsionar mudanças em conjunto. Desde então, cada ano remonta àquele 25 de julho, data que marca o Dia Internacional da Mulher Afrolatina, Afro-caribenha e da Diáspora.

Neste ano, em meio à pandemia, os movimentos de mulheres afro da região levantam suas bandeiras, demandas e conquistas que, apesar das diferenças territoriais, possuem muito em comum.

Como bem remarca a comunicadora afroequatoriana Jaqueline Gallegos, a diáspora não se resume à América Latina e o Caribe. Portanto, a luta e a história unem as mulheres afrodescendentes para além das demarcações territoriais.

Os pilares da luta

Aos três anos de idade, Patricia Gomes já testemunhava os debates acalorados nas reuniões da comunidade afrodescendente em Buenos Aires. Quem a levava era sua tia, Miriam Gomes, também descendente de Cabo Verde e uma reconhecida militante na capital argentina.

“O ativismo afro antirracista vem de família e nossa história de compromisso com a causa vem da sociedade cabo-verdiana”, conta Patricia, que desde os 20 anos forma parte das diversas comissões diretivas da Associação Cabo-verdiana, cujo objetivo é cultivar a cultura e as tradições da comunidade em Buenos Aires.

Patricia também integra a área de gênero da Comissão 8 de Novembro, cuja data refere-se ao Dia Nacional dos/as Afroargentinos/as e da Cultura Afro e representa uma grande conquista da militância negra, em um país onde a questão do racismo é extremamente invisibilizada.

“Muitas companheiras integram também outras organizações, o que conflui em um espaço de articulação”, descreve.

“Pensamos estratégias de ação e propostas políticas, mas também é um espaço onde resgatamos nossa ancestralidade e exercemos o autocuidado. Sabemos que os efeitos do racismo afetam a nossa saúde mental, e esse é um espaço onde nos cuidamos, refletimos, nos encontramos”, conta a advogada e professora, que também atua no Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI) e no Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidades.

Nos últimos anos, a articulação entre movimentos afro no país foi fundamental para conquistas recentes como a inclusão da categoria “afrodescendente” no censo demográfico, o reconhecimento institucional de Maria Remedios del Valle e a primeira cátedra sobre racismo na faculdade de direito da Universidade de Buenos Aires, ditada pela própria Patricia e seu colega, Alí Emmanuel Delgado.

Neste ano, as organizações afro armam um projeto de lei para que o 25 de julho seja integrado como data nacional no calendário argentino, e traz uma série de propostas.

A primeira já começa pelo título: Dia Nacional das Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Trans, Não Bináries, Intersex e outras identidades e expressões de gênero Afrodescendentes, Afrolatinas e Afrocaribenhas. “Um nome muito longo, mas necessário”, diz Patricia, com um sorriso.

Ela destaca a importância de que os debates e avanços na sociedade e nas políticas públicas sobre gênero e direitos reprodutivos devem chegar também ao interior dos movimentos. “Em geral, seguimos sendo ciscêntricos”, diz, referindo-se às pessoas cisgênero, que se identificam com o gênero assinalado ao nascer. “Precisamos incorporar todas as identidades de gênero, inclusive políticas, como a lésbica”, ressalta.

A articulação em meio às diferenças políticas e territoriais é um desafio, mesmo dentro dos próprios movimentos. As cerca de 400 mulheres que se reuniram em 1992, de 32 países, são referidas por Patricia como “pioneiras totais”.

“É uma questão não só inteligência, mas uma capacidade de articulação entre nós das demandas que temos em comum”, reflete.

“Vem de uma consciência organizativa que sempre tivemos, e a verdade é que a maioria das organizações afro na Argentina foram fundadas ou dirigidas por mulheres afrodescendentes. Por isso, essa lei é mais que merecida. É, principalmente, um reconhecimento da luta das nossas ancestrais.”

Alçando a voz

Comunicadora no Equador, Jaqueline Gallegos fundou com um grupo de companheiras e companheiros: o Afrocomunicaciones. Defende que as pessoas se unem e se identificam através das lutas, e recorda sempre suas ancestrais ao falar sobre a importância do 25 de julho e da organização coletiva das mulheres negras em todo o mundo.

“Nós, mulheres da diáspora, temos formas próprias de fazer, pensar e de construir. Os palenques, quilombolas, são espaços que refletem nossas formas próprias de existência, e que nos permitiram estar aqui”, diz. “Temos um passo adiante na história, ainda que pareça o contrário.”

O 25 de julho para a organização equatoriana Afrocomunicaciones é mais uma data para criar interlocuções ricas em exaltar a cultura afro, ampliar o debate e o conteúdo sobre educação a respeito da população afro e cultivar os laços de afeto.

O coletivo tem o objetivo de criar espaços de comunicação feita por afrodescendentes, uma necessidade latente em toda a região, como destaca Gallegos. “Eu moro em um dos bairros periféricos, onde há uma grande presença negra e todas as organizações são lideradas por mulheres negras. Mas pouco se conhece sobre o que elas fazem porque falta o eixo comunicacional”, diz.

Nascida na cidade de Quito, Gallegos reflete sobre como a vivência em contraste com o racismo é que faz com que uma pessoa se torne “negra”.

“O que nos faz negras são as grandes cidades, onde o outro te diz ‘negra’. Na comunidade, você é apenas uma pessoa, mas, na cidade, recebe insultos de companheiros na escola e é atravessada constantemente pelo viés da racialização.”

Sua militância envolve, portanto, uma forte atuação no campo da comunicação, disputando a representação constantemente negativa da população negra pela mídia hegemônica.

Com o Afrocomunicaciones, realiza a coluna Tambores en la Diáspora, na rádio nacional Pichincha, difundindo a estética, proposta e cosmovisão afro, além de lutar pela permanência da lei de comunicação, que permitiu um pouco mais de espaço para povos originários e negros nos meios de comunicação.

Os frutos desse grande esforço são visíveis. Nas conversas entre mulheres afro, o coletivo observou a recorrência de casos de mulheres ou filhos encarcerados arbitrariamente por microtráfico. “A partir dessas conversas, fizemos uma pesquisa sobre esses casos de injustiça”, conta. Cinco dessas histórias foram contadas em formato podcast.

Jaqueline se expressa com calma e generosidade, e se emociona ao falar das companheiras, seja pelas que estão em condições precárias de existência, seja pelo reconhecimento mútuo que acontece num encontro com aquelas que chama, naturalmente, de “irmãs”.

“Chegamos a esse 25 de julho reconhecendo que somos a resistência e a existência, e, por outro, que ainda seguimos com cargas sociais muito fortes, por serem problemáticas estruturais”, diz. “Ainda há muitos desafios, mas fico com esse sentimento  grande e forte de ver e reconhecer uma irmã. É algo sobrenatural, é incrível.”

As lutas afrodescendentes analisadas a partir dos feminismos negros será tema de debate impulsionado por Afrocomunicaciones, no Equador, neste 25 de julho. / Afrocomunicaciones

A marcha não para, a luta continua

Foi durante as discussões sobre as políticas de cota racial na faculdade, em 2003, que Juliana Gonçalves se deparou com as estruturas profundas do racismo. Não apenas pelos detratores brancos, alunos e professores, do projeto lançado no governo Lula, mas pelos comentários dos próprios – e poucos – colegas negros que carregavam um discurso fortemente baseado na ideia da meritocracia.

“Sou negra de pele clara, de família miscigenada, e por parte da minha mãe sempre tivemos consciência de que somos mulheres negras”, conta. “Mas a partir dessa experiência, comecei a buscar coletivos. Eu vivia num meio muito branco, e precisava de argumentos para discutir e me colocar.”

Juliana Gonçalves é jornalista e integrante da Marcha das Mulheres Negras desde os seus princípios, em 2015. Tornou-se uma expressão importante da militância afro em São Paulo. A primeira foi em Brasília, pré-golpe que destituiu Dilma Rousseff da presidência do Brasil; a segunda, em um 25 de julho, pelo Dia da Mulher Afrodescendente.

“É essencial que a data seja centrada nas mulheres”, diz Juliana. “As mulheres encabeçam os principais movimentos, fazem política do dia a dia, institucional, estão fazendo política o tempo todo, e muitas vezes, na hora de receber esses retornos, eles não chegam no nosso corpo.”

“A gente sempre fala na marcha: quando a mulher negra avança, ninguém fica pra trás. Enquanto a mulher negra estiver bem, não vai ter branca pobre zoada”, diz.

Nesse sentido, ressalta a necessidade de focar nas mulheres negras ao construir propostas e fazer política. Ela destaca que, se o foco não estiver nas mulheres negras, as políticas chegam até os homens negros, ou até as mulheres brancas. Dá como exemplo a Lei Maria da Penha, cujo alcance é menor entre as mulheres negras, maiores vítimas de violência de gênero.

“Estamos vivendo um ponto de virada, algo que em 2015 pode ter sido um marco, e depois disso, só foi se intensificando. Acho que estamos constuindo, enquanto movimento negro, um lugar em que não dá para debater política sem a gente”, destaca.

Juliana costuma citar mulheres negras que foram e são referências de luta: Nilma Lino Gomes, Benedita da Silva, Lélia Gonzalez, Cida Bento. Mas não apenas mulheres.

“É como o professor Kabengele Munanga diz: o racismo é um crime perfeito no Brasil. Parece que quanto mais a gente avança, mais ele encontra outras formas de estar”, destaca.

“Ainda temos coronéis, senhores de engenho, e essa galera está na política, movimentando o Brasil de um jeito assustador. É preciso muita coragem para encarar essas estruturas de poder, e acho que a militância rompe silêncios que estão aí há tempos.”

Convocatória da 6ª Marcha das Mulheres Negras de São Paulo neste 25 de julho / Marcha das Mulheres Negras

Este ano a Marcha das Mulheres Negras terá sua sexta edição, em forma virtual devido à pandemia. Construída a partir da coletividade e do afeto, a Marcha das Mulheres Negras se baseia em três pilares: formação e autoformação, acolhimento e autocuidado e incidência política.

“Esse 25 de julho vai transparecer essa luta atual, que é por comida, de combate a esse projeto de genocida no Brasil, acentuado pela covid-19, já com mais de 500 mil mortes, com muita subnotificação e muita gente pobre e periférica morrendo”, diz Juliana.

A Marcha irá lançar neste 25 de julho um manifesto que inclui as principais reivindicações atuais, que pontua questões como o crescimento alarmante de famílias negras em situação de rua e inclui também o rechaço ao Marco Temporal, política que atenta contra os direitos indígenas. Como de costume, fecham com o lema “por todas nós e pelo bem viver””.

“O bem viver sintetiza esse projeto político pautado na nossa vida. Queremos viver em plenitude, que vai muito além do conforto material. Estamos falando de cidadania e de um processo coletivo”, descreve Gonçalves, com a expressão de um desejo coletivo que não conhece fronteiras.

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