Mulheres na tela: representatividade importa

Por Laura Rodrigues Benda.

A namorada do jornalista em Cidade de Deus, a dançarina que não falava muito em Lavoura Arcaica, a gostosa selvagem em Macunaíma, a amada do jovem viciado em maconha em Bicho de Sete Cabeças e a mulher que apanhava do marido e era estuprada por cangaceiros, e gostava, em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O que essas mulheres têm em comum? Todas compõem filmes icônicos do cinema nacional. Todas, igualmente, não são mulheres com nome, história e consistência e, portanto, não se parecem efetivamente com nenhuma de nós. A lembrança foi da cineasta Petra Costa em uma provocação lançada em mesa de debates do Rio Content Market, no último mês de março.

A diretora de “Olmo e a Gavoita” não foi a primeira a observar o fenômeno. A atriz e advogada Geena Davis criou, há anos, o Geena Davis Institute on Gender in Media, cujo objetivo é averiguar a sub-representação de mulheres no cinema, em especial o assim chamado cinema para a família. De 5.554 personagens analisadas em filmes do gênero, pelo Instituto, 71% são masculinas. Não por acaso, em Hollywood os homens correspondem a 93% dos diretores, 87% dos roteiristas e 80% dos produtores.

No Brasil, o Sistema Ancine Digital, por meio do relatório de CPBs (certificado de produtos brasileiros) emitido em 2015, analisou 2.606 obras, das quais 889 eram documentários, 756 ficção e 547 videomusicais. Nessas, havia apenas 19% de mulheres na direção, 23% em roteiro e 41% em produção executiva.

Se o cinema (e o audiovisual, em geral) é dominado por homens cis, brancos e heterossexuais, não é de se espantar que não apenas a grande maioria das personagens corresponda a esse conceito de homem como, quando não é o caso, que sejam representadas de forma absolutamente rasa. Particularmente no caso das mulheres, que é do que trato nessa coluna, basicamente se pode constatar que as personagens femininas costumam ser uma espécie de versão mal acabada de personagens masculinas, definidas primordialmente por suas relações com essas e identificadas por distinções visuais estereotipadas. Em suma, as mulheres nas telas se movem, perante nossos olhos, basicamente reproduzindo clichês de gênero.

O teste de Bechdel

Ninguém soube exprimir tão bem o absurdo dessa situação quanto a cartunista americana Alison Bechdel. Ainda em 1987, Alison produzia uma tirinha chamada “Dykes To Watch Out For”, um dos primeiros quadrinhos a abordar com naturalidade a questão da diversidade sexual. Na história, reproduzida abaixo, uma personagem diz à outra que só assiste a filmes que atendam aos seguintes requisitos:

  1. tenham ao menos duas personagens femininas
  2. que conversem entre si em alguma cena
  3. sobre algo que não seja homens

bedchel

Se o efeito inicial é humorístico, aos poucos ele é substituído pelo espanto de constatar que, em verdade, quase nenhum dos filmes a que assistimos, incluindo aí os grandes ícones da sétima arte (como “Lawrence da Arábia”, “Casablanca” ou “O Poderoso Chefão”, entre muitos outros), seguem parâmetros tão simples. Não por acaso, a tirinha acabou dando origem ao chamado “Teste de Bedchel”, que ainda hoje reprova a grande maioria das películas[1].

Foi também uma americana, a autora feminista Katha Pollitt, quem, em 1991, em artigo publicado no New York Times, cunhou o termo “Princípio da Smurfette”. Referindo-se, é claro, à única mulher em Smurfville, o “Princípio da Smurfette” é a tendência verificada em obras de mídia de incluir apenas uma mulher em um conjunto de personagens masculinas. A conseqüência disso é fatal, nas palavras de Katha (em tradução livre):

“A mensagem é clara. Meninos são a norma, meninas a variação. Meninos são centrais, meninas periféricas. Meninos são indivíduos, meninas são tipos. Meninos definem o grupo, sua história e seu código de valores. Meninas existem apenas em relação aos meninos”[2].

Em uma sociedade patriarcal, homens tornam-se sinônimos de seres humanos em geral. Em outras palavras, homens tendem a ser vistos como o padrão da espécie inteira. As mulheres, no entanto, não obstante sejam tratadas como não-sujeitos, atuam permanentemente como sujeitos, seja ratificando o ordenamento social machista, seja solapando-o. As mulheres também fazem, portanto, a história. Já passou da hora dessa história estar encravada também nas telas de cinema.

Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de assuntos legislativos e institucionais da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Gosta de política, de cinema e de gastronomia. Acredita que a luta é coletiva e que o amor é revolucionário. Compõe a coluna Sororidade em Pauta, em conjunto com as magistradas Célia Regina Ody Benardes, Daniela Valle da Rocha Müller, Elinay Melo, Fernanda Orsomarzo, Gabriela Lenz de Lacerda, Juliana Castello Branco,  Patrícia Maeda, Renata Nóbrega e Sofia Lima Dutra.


[1] Nesse site, há uma seleção de filmes e séries que passam no teste, com as respectivas notas.

[2] Hers; The Smurfette Principle. The New York Times, April 7, 1991.

Fonte: Justificando.

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