Mudanças climáticas (um inimigo comum) e transição ecológica (que também é socioeconômica)

Quando vemos a cobertura do desastre gaúcho, muito se fala em medidas de mitigação das chuvas, e muito pouco sobre um plano pós colapso que ataque as raízes do ecocídio

Por Paulo Horta e Raphael Sanz.

O mundo ainda está assustado com a tragédia vivida no nosso Rio Grande do Sul. Cerca de 2 milhões de pessoas afetadas. Prejuízos ambientais, sociais e econômicos se multiplicam. Perdas e danos sem precedentes nos colocam diante de uma realidade de dor inimaginável.

O que se vê por lá é um cenário de guerra com cidades arrasadas ou sitiadas por águas contaminadas, com pontes e estradas destruídas, hospitais e escolas inundados. Estão estampados o pânico e a tristeza nos olhos e vozes de brasileiras e brasileiros que perderam seus entes queridos para as mudanças climáticas. E infelizmente, de forma simultânea, cenários semelhantes abalam a Europa e a Ásia.

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Também lá há refugiados que se acumulam em abrigos adaptados às pressas na ausência de planos de contingência e de infraestruturas adequadas para dar um mínimo de conforto para aqueles que perderam tudo. Hoje estamos diante de uma inquestionável necessidade de mudarmos a postura da sociedade e do Estado, para termos os meios e saberes necessários para enfrentar esse inimigo comum, as mudanças climáticas.

Este inimigo não usa bombas, tanques ou metralhadoras. Com a força de 25 bilhões de bombas atômicas [como veremos a seguir], iguais a que explodiu em Hiroshima, as mudanças climáticas representam um inimigo que usa de fenômenos naturais como armas, e que nos impôs uma derrota amarga.

Lembrando que a tragédia vivida no Rio Grande do Sul é apenas mais uma de uma lista que já nos envergonha como nação, e como seres humanos, pois foram sucessivas. Ainda assim, vemos prosperar pautas negacionistas e do retrocesso ambiental nos municípios, nos estados e na Federação, e em diferentes regiões do planeta. Portanto, é hora do Estado Nacional, em todos os níveis, exercer seu dever constitucional e viabilizar, em regime de urgência, um sistema de enfrentamento da crise climática. Precisamos e podemos direcionar nossos esforços institucionais para fazer esse combate, para resguardar ecossistemas, sociedades (especialmente as frações mais vulneráveis), além de economias mais seguras, saudáveis e justas, agora e no futuro.

Transição energética, econômica, social e ecológica

Um estudo realizado por dezenas de pesquisadores, liderado por Karina von Schuckmann – oceanógrafa, especialista em monitoramento do clima e membro da Academia Europeia de Ciência – e publicado em abril de 2023 revela que os 2 trilhões de gases de efeito estufa dispostos na atmosfera terrestre equivaleriam ao aquecimento proporcionado por 25 bilhões de bombas atômicas como as jogadas sobre o Japão na Segunda Guerra Mundial. O estudo, intitulado “Heat stored in the Earth system 1960-2020: where does the energy go?” (Calor acumulado no sistema terrestre 1960-2020: para onde vai?) está disponível em inglês. Clique aqui para acessar.

Nesse contexto, o processo de adaptação do país precisa ser encarado como uma emergência para preservarmos vidas, em todas as suas formas. Uma ‘economia de guerra’ – ainda que a guerra seja um conceito questionável para nossa luta pela recuperação do planeta, invariavelmente esbarraremos numa espécie de guerra social – é nossa melhor alternativa para viabilizar o investimento nas ações regenerativas e distributivas que precisamos para viabilizar para boas adaptações e projetos de mitigação.

Assim como em outros conflitos, precisamos adequar nosso sistema de produção, de educação, de saúde, e toda a gestão, para minarmos as forças inimigas, implementando bases de fortalecimento da resistência, que elevem a resiliência de nossas socioeconomias e ecossistemas. Agricultura de baixo carbono, com produção de alimento com base familiar e orgânica, com a restauração de áreas degradadas, são exemplos de atividades que vão diversificar e disseminar um contra-ataque articulado. Assim, para dar um exemplo, com esse tipo de ação planejada, ao mesmo tempo que sequestramos carbono, reduzimos a perda de solo, e o consequente o processo erosivo, que em conjunto deixam nossas cidades, sociedades, economias e ecossistemas mais vulneráveis.

Restaurando as florestas dos 6,6 milhões de hectares desmatados e degradados em quatro anos (2019 a 2022), uma área que equivale a uma vez e meia a área do estado do Rio de Janeiro, poderemos não só promover boa adaptação, impulsionando economias regenerativas e distributivas, de norte a sul do Brasil, como estaremos realizando importante ação de mitigação das emissões nacionais de gases de efeito estufa e do próprio aquecimento do planeta. Com mais florestas podemos contribuir para a regularização do regime de chuvas, por conta da capacidade que estes sistemas têm de reciclar água, e liberar substâncias orgânicas que induzem formação de nuvens. Nossas florestas podem nos ajudar pois podem funcionar como fábricas de chuvas. Com restauração de florestas marinhas podemos acelerar ainda mais a mitigação das emissões, ao mesmo tempo que potencializamos a restauração de berçários de vida, que protegem a linha de costa e que também contribuem com a formação de nuvens e regularização das chuvas. Uma ação ordenada e de grande escala como esta, tem grande potencial de auxiliar na indução de um ponto de inflexão positivo em nossas sociedades, produzindo justiça a medida que acelera um processo possível de restauração climática.

Mas essa é também uma tarefa política. Impossível de ser atingida se não atacarmos as raízes políticas, econômicas e sociais da cultura do colapso dominante.

A mais óbvia é a distribuição da terra. E o que melhor irá representá-la é o agronegócio. O Brasil tem 80 milhões de hectares destinados a agricultura; 45 milhões estão ocupados com soja e 21 milhões com milho. Outros 150 milhões de hectares são destinados ao gado. Não vimos o agronegócio doar uma cesta básica ao Rio Grande do Sul. Pelo contrário, vimos seus representantes no Legislativo, a chamada Bancada Ruralista, passando mais uma leva de desregulamentações ambientais nas últimas semanas.

Uma recente desregulamentação foi a afronta ao Supremo que fez a tese do marco temporal retornar à baila como pré requisito para a demarcação de terra indígenas. Atualmente as reservas indígenas são as áreas do mundo com a maior concentração de biodiversidade. Se o Estado brasileiro não tiver interesse em preservar essas áreas e lutar com todas as forças para promover a desintrusão de garimpeiros, madeireiros e criadores de gado, aí a extrema direita finalmente terá, enfim, destruído o Estado Nação ocidental, como pretende. Há uma série de terras indígenas a serem demarcadas e homologadas, e uma série de outras como a Apyterewa e a Yanomami – para ficarmos em exemplos mais conhecidos – que precisam ter seu processo de desintrusão concluído. Para ontem.

Mas além disso, é importante ponderar que em se tratando do Rio Grande do Sul muito se fala em medidas de mitigação das chuvas, e muito pouco sobre um plano pós colapso que ataque as raízes das mudanças climáticas. Fortalecer a agricultura familiar em detrimento do agronegócio extrativo é um aspecto. Libertar e demarcar terras indígenas e áreas de conservação é outro. Mas entre os muitos outros aspectos é preciso investir pesado em Ciência e Tecnologia, colocar esse ministério na primeira prateleira de investimentos e começar a pensar desde já uma transição energética, ecológica e social que abandone os combustíveis fósseis, fomente a educação e a produção de ciência e ajude a construir uma certa autonomia nas nossas sociedades em relação às big techs e grandes cadeias logísticas. É necessário o incentivo a uma nova organização da economia, mais local, mais diversa e mais descentralizada. E que o novo modelo energético acompanhe esse dilema.

O Brasil e sua economia, na prática

Entretanto, para esse passo fundamental, para o Brasil e para a humanidade, precisamos de recursos. Essa nova economia pode ser viabilizada com a revisão do financiamento e subsídios que são dados para a indústria dos combustíveis fósseis e, ao agronegócio e outras atividades extrativistas que causam o desmatamento.

No Brasil, graças a MP da SHELL, são drenados dos cofres públicos cerca de R$ 50 bilhões por ano. Até 2040 a renúncia fiscal em favor das petroleiras somará algo em torno de R$ 1 trilhão. Essas cifras engordam os cofres destas atividades que já drenaram do sistema financeiro cerca de US$ 6,9 trilhões (cerca de R$ 35 trilhões) entre 2016 e 2023. Deste montante, US$ 3,3 trilhões (cerca de R$ 16 trilhões) foram destinados para empresas que estão aumentando a produção, avançando sobre novas áreas, como aquelas representadas pela margem equatorial brasileira.

Nesse contexto, precisamos de medidas que nos permitam flexibilizar o arcabouço fiscal, ou mesmo, em regime de urgência, taxar grandes fortunas, suspender subsídios ao agronegócio ou ainda suspender o pagamento dos juros da dívida pública. Considerando que a soma de todas as riquezas geradas no Brasil em 2023 foi da ordem de R$ 10 trilhões, um pacto nacional para enfrentarmos esse inimigo comum pode viabilizar o financiamento necessário com celeridade.

O Estado é o único ente reúne as armas (meios), os batalhões (servidores) treinados e efetivos para fazermos o enfrentamento na escala e velocidade que precisamos agora. O Estado tem esse dever constitucional de garantir a soberania nacional. Essa capacidade foi colocada à prova na pandemia, e nossos exércitos de cientistas, médicos, enfermeiros, auxiliares, todo o sistema relacionado ao Sistema único de Saúde (SUS) mostrou o seu valor e eficiência.

Mas depois de 6 anos de desmonte e retrocessos a capacidade de resposta do estado foi comprometida. Na ciência e educação o orçamento que superava os 30 bilhões anuais, foi reduzido a metade pelo governo de Bolsonaro. Com isso sofrem universidades e pesquisadores que se vêm limitados em sua capacidade de inovar em respostas, como fizemos na Covid-19.

A recuperação do último ano foi insuficiente para nos darmos os meios e pessoais para respondermos à altura que a emergência demanda. Os limites impostos pela nova versão do teto de gastos compromete nossa capacidade de investimento em áreas estratégicas, que envolvem inclusive ciência, tecnologia, saúde e educação. Isso nos deixa vulneráveis e atenta contra a segurança nacional. Desde o início da vigência do Teto de Gastos, ainda no governo Temer, as despesas obrigatórias passaram a consumir a maior parte dos recursos, enquanto as despesas discricionárias (investimentos em novas obras ou infraestruturas para adaptar contra as catástrofes climáticas, por exemplo) não só congelaram como diminuíram.

Em nosso exercício metafórico mais repleto de realismos, podemos vislumbrar que aqueles que promoveram e continuam promovendo o retrocesso legislativo nas pautas ambientais, ou mesmo aqueles que limitaram a capacidade do estado de salvar vidas e de assegurar o direito das presentes e futuras gerações, são cúmplices ou aliados de nosso inimigo comum, as mudanças climáticas.

Para além de condenar suas ações como tal, é importante lembrar que estamos em ano de eleição. Momento de identificar estes infiltrados, dar o devido julgamento para suas ações criminosas, e garantir uma representatividade que assegure ações concretas e céleres nos municípios. Essa base terá as condições de construir um governo capaz de dar as respostas que esse momento de guerra nos exige. Caso deixemos os inimigos e seus aliados tomarem de assalto o Estado Nacional, estaremos completamente vulneráveis e milhões perderão suas vidas nas próximas décadas para esse inimigo que é cria do sistema capitalista. Aquele que por ‘séculos explora seres humanos e natureza sem piedade ou compaixão’ e agora produz um ecocídio que poderá exterminar com o que resta daquilo que chamamos de pacto civilizatório ou mesmo de humanidade. E sem precisar explodir uma bomba atômica.

Paulo Horta é PhD em Ciências Ambientais e professor de Ecologia da Faculdade de Biologia na Universidade Federal do Pará, em Altamira. Paulo Horta é biólogo, pós-doutor em Ecologia Marinha e professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

Raphael Sanz é jornalista.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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