Mobilização Nacional Indígena pela terra e pela vida

Por Elaine Tavares.

Fotos: Rubens Lopes.

Representantes dos povos originários, de várias etnias, estiveram em Brasília na semana que passou para uma série de encontros e manifestações na luta pela demarcação de suas terras e pelo direito de viverem suas culturas. Esse já é o décimo segundo ano que eles realizam essa mobilização nacional, chamada de “acampamento terra livre”, entendendo que é na união e na ação direta que podem avançar na conquista de suas demandas. 

Hoje, no Brasil, com mais de 300 etnias ainda vivas, os povos originários chegam a quase um milhão de pessoas, depois de um tempo de quase extinção, e ocupam apenas 12% do território brasileiro, pouco mais de 106 milhões de hectares. Uma grande parte das famílias ainda luta por demarcação e um número expressivo vive na beira das estradas, em batalhas cotidianas com fazendeiros e jagunços.  Os latifundiários, ao contrário, com apenas 2,8 das propriedades, são donos de mais de 60% das terras e ainda tem a cara de pau de dizer que foram “dadas” muitas terras para pouco índio.

Mas, essa cara de pau não deve ser novidade para quem conhece o processo de acumulação primitiva do capital, que, em bom português, é a expressão da origem do sistema capitalista. Tudo, afinal, começou com o roubo da terra, a partir do qual foram tirados dos trabalhadores os seus meios de trabalho e de subsistência. Sem a terra para plantar e garantir a vida, os camponeses foram obrigados a vender seus corpos, ou sua força de trabalho.

Esse sistema, que começou na Europa, foi implacável e é muito bem narrado por Karl Marx no texto “a acumulação primitiva”. Ele mostra que o fim do feudalismo significou a liberdade para as famílias camponesas que vivam nas terras como servas de um senhor. Mas, essa liberdade lhes tirou a terra onde viviam e os meios para garantir a existência. Com a “liberdade” na mão, eles foram expulsos dos feudos e jogados nas cidades que nasciam, sem nenhum outro bem que não os seus próprios corpos, os quais precisavam vender para poderem comer e sustentar as famílias. 

Tudo estava bem orquestrado. Os senhores enchiam os campos de ovelhas para garantir a lã, e os trabalhadores se amontoavam nas cidades, onde agora fiavam nas fábricas, para um patrão, a custa de um salário de fome. Só que o volume de gente expulsa do campo era bem maior do que o número de postos nas fábricas, e surgiam então, levas e levas de miseráveis sob os quais caia o peso da lei. Chamados de “vadios”, esse pobres seres eram presos ou transformados em escravos por força da lei.

A terra tirada das gentes foi acumulando na mão dos poucos que já eram seus donos e passou a ser, não mais um lugar onde se planta comida para gerar vida, mas um espaço para ser especulado, para gerar renda aos seus donos sem que eles precisassem fazer qualquer esforço. E os trabalhadores que nelas viviam, agora, livres, eram obrigados a trabalhar por um salário miserável, que mal dava para manter a si mesmo. Naqueles dias, do início do capitalismo, as famílias precisavam vender também as mulheres e as crianças para o capital. São bem conhecidas as narrativas da exploração dessa gente nas fábricas nascentes, onde morriam lentamente, trabalhando mais de 15 horas ao dia. 

Quando Cabral chegou às terras brasileiras esse era o sistema que se estava se consolidando na Europa e, ao tomarem de assalto Pindorama, os portugueses seguiram a mesma receita europeia. Doavam as terras aos fidalgos e esses varriam do espaço as gentes que lá estavam vivendo desde sempre, no caso, os povos indígenas. Não sem luta, é claro, mas muita violência, dor e morte foram gestadas nesses cantões. De 1500 para cá, muito pouca coisa mudou. A terra segue sendo um bem que unicamente visa o lucro e continua no modelo de “capitanias”. Poucos são os donos de longas extensões de terra, e grandes são as levas de agricultores sem-terra. As duas faces da mesma moeda, que é o sistema capitalista de produção.

O povo indígena está no meio dessa lógica e se converte num “problema”, uma pedra no sapato do sistema capitalista existente. Enquanto os sem-terra podem – como homens e mulheres “livres” – se tornar trabalhadores assalariados em algum lugar, nas cidades, ou formar os exércitos de reserva do capital, os indígenas não aceitam esse jogo. Não querem se transformar em assalariados ou subsumirem nas cidades comedoras de gente. Eles querem o direito de viver nas suas terras e seguir vivenciando suas culturas ancestrais. Entendem que seus territórios foram roubados e os querem de volta.

E é justamente aí que o bicho pega. O sistema de especulação da terra – base do capitalismo –  não quer saber de ver a menina dos seus olhos entregue a proteção ambiental. O que quer é ver a terra usada na monocultura, na pecuária extensiva ou na extração de riquezas minerais. E, se os povos originários querem a terra para nela viver e dela gerarem sua própria vida, inclusive protegendo-a da destruição, então essa gente precisa ser destruída. Para o sistema do capital, quem não vende sua força de trabalho é inútil. Quem não produz mercadoria, é inútil. E quem não usa a terra para especular é louco. Logo, não há composição possível entre o capital e os povos indígenas. São duas formas radicalmente opostas de entender a vida.  

Justamente por isso que existe essa queda de braço sem fim, inclusive muito bem incentivada pelos meios de comunicação, que geram na sociedade um consenso sobre o papel dos indígenas. Não é sem razão que se repete à exaustão que existe muita terra para pouco índio, que os índios são preguiçosos, que atrapalham o progresso, que inviabilizam o desenvolvimento, que são atrasados, que querem viver no passado. É tanta repetição desses conceitos que a maioria das pessoas acredita mesmo nisso e passa a hostilizar os indígenas, vendo-os como “ingratos”, que não querem entrar no mundo maravilhoso do capital.

Na verdade, por trás desses preconceitos, esconde-se a visão de rapina dos donos do capital, a necessidade de se apropriar de mais e mais terras, para que elas produzam lucro. Se, para eles, os índios são inúteis, então, nada mais normal do que acabar com eles, por bem ou por mal. Que sejam jogados na cidade, como foram os camponeses lá no século XV, e que vendam sua força de trabalho. 

Os povos indígenas bem conhecem essa verdade pétrea, desde o malfadado 1500. Mas, insistem em não aceitá-la, afinal, originalmente essa terra é deles, de fato e de direito. Por isso lutam e resistem. No modo de viver indígena a terra é mãe, a terra é sagrada, a terra é visceralmente ligada às vidas humanas e não há nada que se faça a ela que não repercuta na vida de todos. Passados tantos séculos, os povos originários seguem afirmando sua cultura e seu modo de vida. Eles não são o atraso, ao contrário. Eles são, talvez, a única chance que a humanidade tem de seguir existindo. Porque ao protegerem a “pacha mama” protegem todos os seres viventes. 

Há quem diga que essa é uma visão romântica do índio. Que ele já não é mais assim, que foi contaminado pelo modo capitalista de ser. Pode até ser verdade, e isso muito mais é responsabilidade dos não-índios do que da gente originária. É incrível como ainda são capazes de torna-los vilões, como se eles fossem os bandidos. O fato é que, como diz Michel Löwy, não há nada de errado em ser romântico, uma vez que isso representa uma oposição radical à modernidade capitalista. Nesse caso, nada pode ser mais radical do que a resistência da gente originária, que, a despeito de toda “contaminação”, não esquece seu jeito de viver. 

A mobilização de uma semana em Brasília trouxe para os não-índios esses rasgos de realidade, essas belezas, essa genuína forma de existir em harmonia. Mostrou, nas cantorias, nas danças, nas cores e na fortaleza das gentes, que há outras maneiras de viver e que elas também devem ser respeitadas. Se há os que querem seguir na ilusão do mundo capitalista, do qual são servos voluntários, tudo bem. Mas, se existem os que querem existir de outra forma, isso tem de ser garantido. Não é coisa fácil, visto o poder destrutivo do capital. Mas as gentes originárias seguem seu caminho, no passo firme do toré, no rumo do futuro, que eles querem de liberdade e de vida plena.  

Muitas terras ainda precisam ser demarcadas, muitas batalhas travadas. E eles avançam, indestrutíveis. 

Imagens colhidas no Acampamento Terra Livre

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PEC 215

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